O Vaticano publicou esta terça-feira um relatório de mais de 400 páginas que conclui que grande parte da hierarquia da Igreja Católica — incluindo bispos, cardeais e o próprio Papa João Paulo II — falhou na gestão do caso do ex-cardeal norte-americano Theodore McCarrick, um dos casos mais mediáticos de abuso sexual no clero católico da última década.

McCarrick, de 90 anos, foi arcebispo de Washington entre 2000 e 2006, assumindo um dos cargos mais importantes do catolicismo nos Estados Unidos. Ao longo de décadas, pairaram sobre ele acusações de abuso sexual de menores, que não impediram a sua nomeação para cargos sucessivamente mais relevantes — ao ponto de se tornar num dos prelados mais influentes da Igreja Católica a nível global. Em 2001, foi nomeado cardeal por João Paulo II, numa altura em que o Papa polaco (hoje venerado como santo pela Igreja Católica) já estava a par das alegações contra McCarrick. Em 2019, o Vaticano concluiu que o clérigo era efetivamente culpado de ter abusado sexualmente de vários menores e o Papa Francisco tomou a decisão inédita de o demitir do estado clerical. McCarrick é atualmente a mais alta figura da hierarquia católica a ter sido expulsa do sacerdócio nos tempos modernos.

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Segundo uma nota do secretário de Estado do Vaticano, o relatório agora publicado foi feito a pedido do próprio Papa Francisco, com o objetivo de averiguar até que ponto é que a hierarquia católica soube dos crimes de McCarrick ao longo das últimas décadas — e o que fez com esse conhecimento. A investigação eclesiástica incluiu uma revisão completa de todos os arquivos da Santa Sé, da embaixada do Vaticano em Washington e das dioceses norte-americanas envolvidas no caso, bem como entrevistas a várias testemunhas.

Uma das conclusões mais relevantes diz respeito ao pontificado de João Paulo II, durante o qual ocorreu grande parte da progressão de McCarrick na carreira eclesiástica. Foi nesse período que McCarrick, então bispo auxiliar de Nova Iorque, começou a assumir a solo a liderança de dioceses — primeiro em Metuchen, depois em Newark. No final da década de 1990, foi colocada em cima da mesa a possibilidade de o bispo ser nomeado para a diocese de Washington e elevado à dignidade de cardeal. Para tomar essa decisão, o Papa João Paulo II consultou múltiplos conselheiros “nos dois lados do Atlântico”.

Em 1999, um desses conselheiros, o cardeal John Joseph O’Connor, então arcebispo de Nova Iorque, resumiu numa carta as alegações que haviam sido levantadas contra McCarrick, incluindo: o testemunho de um padre que tinha observado atos sexuais de McCarrick com outro padre em 1987; um conjunto de cartas anónimas enviadas aos bispos americanos a denunciar abusos sexuais de crianças cometidos por McCarrick em 1992 e 1993; a alegação de que o bispo partilhava a cama com jovens na sua residência oficial; e ainda o relato de episódios numa casa de férias de McCarrick em Nova Jérsia, onde o bispo havia partilhado a cama com seminaristas.

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A carta de O’Connor foi enviada ao embaixador do Vaticano nos EUA, que partilhou o conteúdo do documento com o Papa João Paulo II.

Inicialmente, as alegações contra McCarrick foram suficientes para que João Paulo II considerasse que seria imprudente transferi-lo para outra diocese. Porém, no início do verão de 2000, João Paulo II ordenou a realização de um inquérito interno para averiguar a veracidade das alegações. Esse inquérito concluiu que alguns dos bispos tinham fornecido informações incompletas sobre McCarrick. Além disso, o bispo jurou que nunca tinha tido relações sexuais nem abusado sexualmente de ninguém, embora tenha admitido que partilhou a cama com seminaristas. O facto de nenhuma vítima se ter queixado diretamente à Santa Sé contribuiu para que o caso fosse classificado como “rumor”. Mas o relatório do Vaticano identifica ainda outro fator que poderá ter contribuído para a desvalorização das alegações: a amizade entre McCarrick e o próprio Papa. “A relação direta de McCarrick com João Paulo II teve, provavelmente, um impacto no processo de tomada de decisão do Papa“, lê-se no relatório.

Em 2005, McCarrick participou no conclave em que Bento XVI foi eleito como sucessor do Papa polaco. Foi a partir desse momento que a situação começou a mudar de figura, embora o Papa alemão não fique completamente isento de culpas.

De acordo com o relatório, Bento XVI foi posto a par das alegações contra McCarrick e decidiu pedir ao cardeal norte-americano que resignasse às suas funções e adotasse um estilo de vida discreto — depois de, logo no início do pontificado, ter prolongado o mandato de McCarrick em Washington. Bento XVI optou por não abrir um processo canónico, uma vez que as alegações não estavam provadas e McCarrick voltou a jurar que eram falsas, mas ordenou-lhe que abandonasse o intenso ritmo de viagens que fazia em nome da Igreja — muitas vezes como enviado do próprio Vaticano. Porém, o cardeal não seguiu as recomendações de Ratzinger e continuou a vida pública até a idade avançada o obrigar a abrandar.

O Papa Francisco é quem sai melhor na fotografia neste relatório. Durante os primeiros anos do seu pontificado, McCarrick permaneceu discreto. Só em 2017, quando chegou à arquidiocese de Nova Iorque o primeiro relato de uma vítima com menos de 18 anos na altura dos abusos, é que Francisco foi informado de todas as alegações passadas contra o bispo norte-americano. Quando a acusação foi considerada credível, Francisco obrigou McCarrick a demitir-se do Colégio Cardinalício. Um ano depois, quando a investigação interna concluiu que os crimes eram verdadeiros, expulsou-o do sacerdócio.

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O relatório foi elaborado depois de o antigo embaixador da Santa Sé em Washington, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ter exposto numa série de cartas o processo de encobrimento a que o caso foi submetido ao longo de vinte anos. Nas cartas, Viganò acusou o próprio Papa Francisco de ter colaborado no encobrimento, mas o relatório do Vaticano não confirmou essas alegações do antigo embaixador — que entretanto se tornou numa espécie de porta-voz oficioso da oposição interna ao Papa argentino.

Este documento é o resultado da mais aprofundada investigação realizada até agora pelo Vaticano a um clérigo acusado de abusos sexuais de menores, e surge menos de dois anos depois de o Papa Francisco ter convocado os líderes católicos de todo o mundo para uma cimeira urgente em Roma, destinada a debater o problema dos abusos sexuais. Desde a década de 1980 (mas especialmente depois do escândalo Spotlight, em 2002), têm-se acumulado denúncias de abusos sexuais de crianças no seio da Igreja Católica, crimes que durante anos foram ocultados pela hierarquia eclesiástica. Um relatório divulgado em 2018 sobre os abusos cometidos por 300 padres católicos no estado norte-americano da Pensilvânia, envolvendo pelo menos mil crianças, foi a gota de água que levou o Papa Francisco a convocar a cimeira e a aprovar legislação interna inédita com o objetivo de promover a transparência na investigação dos casos de abuso.