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Carlos Manuel Martins/Global Imagens

Carlos Manuel Martins/Global Imagens

“Aconselho toda a gente a vestir o colete à prova de bala”

Em “Rica Vida” Luciano Amaral descreve dez crises por que Portugal passou. E como sobreviveu a elas. Mas avisa que vamos mesmo de ter de mudar e que isso não será fácil, antes será difícil e demorado.

A lombada do livro indica-nos que ele é historiador, que se doutorou em História e Civilização no Instituto Universitário Europeu de Florença e que se especializou em História Económica do século XX. Que ensina na Nova School of Business and Economics e que é colunista regular de um jornal diário.

O que a lombada do livro “Rica Vida” (Dom Quixote) não diz é que o seu autor, Luciano Amaral, 50 anos, é alguém que pensa bem e observa igualmente bem Portugal, os portugueses e esta caminhada que vai para novecentos anos. Caminhada tão singular e aqui evocada através da eleição de dez “momentos de crise” da nossa história, ocorridos no país entre a sua fundação e a “última crise”, esta, que hoje vivemos. Um pano de fundo escolhido por Luciano Amaral para sobre ele discorrer sobre as razões do país em cada um desses momento e de caminho, nos dissecar a alma.

P: Publicou recentemente um livro no qual olhou para a Historia de Portugal do ponto de vista das crises, palavra de que temos hábito forte, elegendo dez momentos para as ilustrar. Antes de “entrer en matière” pergunto: foi o actual “estado de crise” que o fez desaguar na vontade de aprofundar o tema?

R: A história talvez seja mais simples: foi um pedido da editora, a D. Quixote. O pedido foi vago, do género: falar sobre crises passadas a pretexto da actual crise. Comecei por olhar apenas para as crises económicas, mas aos poucos fui-me embrulhando naquelas crises a que chamei “existenciais”. Isto porque, desde logo, me parece que estamos a atravessar uma crise desse género.

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P: Vamos parar aqui: o que é uma crise existencial? Algo que ultrapassa o político ou o económico para se circunscrever a um perímetro bem mais largo que é o da identidade? A nossa?

R: Sim, podemos dizer que sim. Uma crise existencial é aquela em que a comunidade política tal como a conhecemos pode desaparecer, seja por extinção ou por diluição numa comunidade política maior. Aqui não vale muito o argumento de que nunca fomos completamente independentes, etc. Pois não, mas o que interessa é que os chefes políticos da comunidade mantenham uma capacidade soberana de decisão, sejam os reis de outrora, seja o actual chefe do poder executivo, isto é, o primeiro-ministro. Isto não é o mesmo que viver isolado, é ter uma certa capacidade fundamental para decidir. Nós hoje somos mais americanizados, já fomos mais afrancesados, já fomos mais espanholados… Não é essa a questão. A questão é a capacidade para escolher ser americanizado ou afrancesado.

Portugal não tem assim tantas crises. Veja a Espanha: é um país em permanente crise existencial, com catalães, bascos e galegos sempre a ameaçarem sair, com uma guerra civil trágica no século XX e uma ditadura muito mais feroz do que a nossa, com um século XIX tão ou mais violento do que o nosso. Ou a Alemanha, um país com menos de 150 anos e que é uma espécie de crise existencial permanente.

P: Que pode explicar que haja povos com mais, digamos, propensão para ciclicamente “cair em crise”? A que tipo de factores teremos de recorrer para adquirir a chave de leitura sobre este fenómeno? Ou uma luz que o torne mais claro?

R: Portugal não tem assim tantas crises. Veja a Espanha: é um país em permanente crise existencial, com catalães, bascos e galegos sempre a ameaçarem sair, com uma guerra civil absolutamente trágica no século XX e que deu origem a uma ditadura muito mais feroz do que a nossa, com um século XIX tão ou mais violento do que o nosso. Ou a Alemanha, um país com menos de 150 anos e que é uma espécie de crise existencial permanente. E poderíamos adiantar muitos outros exemplos em que normalmente se pensa pouco…

P: …seja, mas existencial ou não, o facto é que nos últimos quarenta anos recorremos três vezes a ajuda externa.

R: Julgo que isso tem uma explicação um pouco mais simples: quisemos construir o Estado-Providência democrático típico da Europa ocidental a contra-ciclo, quando o crescimento económico era fraco. Muito provavelmente não havia outra solução senão construir esse tipo de regime, mas sucede que tem sido muito difícil financiá-lo. A crise actual acrescenta a isso algo que é específico da União Monetária. Foi ela que nos permitiu um endividamento absurdo nas duas últimas décadas. E foi esse endividamento que nos obrigou a esta correcção pesadíssima.

P: E que faz detonar uma crise existencial? Como se lida com algo que os algarismos não explicam ou que as decisões políticas não resolvem?

R: Se pegarmos nos exemplos que eu uso no livro, as coisas podem acontecer de várias maneiras. Em 1580, por exemplo, deu-se uma crise sucessória e o sucessor dinástico mais bem colocado (ou, pelo menos, dos mais bem colocados) era espanhol. No princípio do século XIX, Portugal foi varrido pela vertigem do projecto imperial napoleónico e a melhor solução que o seu soberano encontrou foi ir refundar o país na América, no Brasil. Actualmente fomos nós, enquanto povo que escolhe democraticamente os seus chefes, que optámos por este projecto estranho e ambíguo da União Europeia, que não se sabe bem se caminha para se transformar num país ou se vai permanecer como uma junção de países e cuja tensão e indefinição nos deixa com um pé dentro e outro fora da soberania.

P: E podíamos não ter optado? Não me parece…

R: Naquele contexto provavelmente não poderíamos, dada a natureza do debate político interno em que a CEE era igual a democracia e o contrário era o comunismo. Mas há impecáveis países europeus que nunca entraram na aventura: Noruega, Suíça, Islândia… E têm o melhor de dois mundos: têm todas as vantagens (comércio livre, etc.), sem as chatices correspondentes.

P: Vamos então às “outras crises” que podem ser diagnosticadas através da vertente meramente económica ou por factores exclusivamente (ou quase) políticos. Pegando nos “momentos” da vida portuguesa que escolheu “ilustrar”, como se devem articular estes dois tipos de crise?

R: A articulação é muito estreita. Em 1383 e em 1580, o que temos são crises sucessórias (eminentemente políticas, portanto) que desembocam em crises existenciais porque os hipotéticos sucessores queriam fazer desaparecer a comunidade política portuguesa. No primeiro caso, essa comunidade política manteve-se, mesmo contra a legitimidade sucessória; no segundo, não. Em 1807, temos a fuga em pânico do soberano perante um invasor estrangeiro. Actualmente, temos a nossa vontade de participar num projecto político maior. Esta última questão está aliás presente em todas as crises anteriores: o fascínio por qualquer coisa que vai além de Portugal, seja a Espanha, seja o Brasil, seja a União Europeia…

Quase sempre, em momentos decisivos, conseguiu-se reunir um número suficiente de portugueses que achavam que havia aqui qualquer coisa a salvar, e lutaram por isso.

P: Provavelmente isso chama-se destino. E quanto às nossas mal-amadas elites? Eis um tema que tem dividido opiniões e sentimentos ao longo de nove séculos. A gente presta ou não? Parece que há um “defeito” da vontade?

R: Eu acho que a gente presta. Senão não estávamos por aqui há quase mil anos. Acho, aliás, que prestamos mais do que aquilo que estamos muitas vezes prontos a acreditar. E a verdade é que, em diversos momentos decisivos, essa vontade que a Maria João diz que falta esteve bem presente. Quase sempre, em momentos decisivos, conseguiu-se reunir um número suficiente de portugueses que achavam que havia aqui qualquer coisa a salvar, e lutaram por isso.

P: Pegando no exemplo das candidaturas presidenciais – que é um bom exemplo – custa a crer que o país seja obrigado a escolher entre Sampaio da Nóvoa ou Marcelo Rebelo de Sousa. Pergunto-lhe: se houvesse elites, não lhe parece que alguém de entre elas teria achado que Portugal mereceria, digamos, um pouco mais de consideração e um pouco mais de qualidade? Mas lá está, parece que não houve vontade suficiente para essa “chatice”…

R: Está muito pessimista. Se calhar, ainda aparece aí alguém de jeito. Eu acho que não nos podemos queixar dos presidentes até agora, todos eles importantes e dignos de terem ascendido ao cargo: Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco… Não é mau. Esperemos pelos resultados das Legislativas. Só aí aparecerão os verdadeiros candidatos.

P: Refere que apesar das crises, nunca nos sumimos do mapa do mundo e sublinha até a nossa “capacidade de ressurreição”. Remete-a porém, sobretudo a partir do século XVI, para algo que nos foi sempre exterior: do ouro do Brasil à “Europa”, passando pelas Áfricas. Sem isto não teria havido ressurreição?

R: Não tenho a certeza. O que esses factores permitiram foi a ressurreição dessa maneira. Mas não quer dizer que não fossemos capazes de a operar de outra forma.

O ouro do Brasil ou as remessas de emigrantes foram instrumentos para “vivermos acima das possibilidades” (citando os clássicos...) como país, mas também foram os instrumentos utilizados internamente pelas elites para não adoptarem um comportamento competitivo que pudesse melhorar a forma de fazer as coisas.

P: É por isso que o titulo do seu livro é “Rica Vida”? Porque “alguém” de fora nos ia sempre pagando e sustentando?

R: Rica vida refere-se em parte a isso e em parte a um comportamento das nossas elites que têm preferido um certo modo de vida rentista a um modo de vida mais competitivo. Uma e outra dimensões articulam-se entre si. O ouro do Brasil ou as remessas de emigrantes foram instrumentos para “vivermos acima das possibilidades” (citando os clássicos…) como país, mas também foram os instrumentos utilizados internamente pelas elites para não adoptarem um comportamento competitivo que pudesse melhorar a forma de fazer as coisas.

P: A crise que se vive actualmente, duzentos anos depois da última, provém de quê, e nasceu quando, quanto a si? Os menos avisados ou os mais distraídos remetem-na para a primeira década do século XXI, por aí. Mas não teremos de ir mais atrás? Por exemplo, à introdução da moeda única no país, gerando o que classificou de “mistura terrível” : “o cambio do euro dificultou as exportações e as taxas de juro baixas facilitaram o endividamento, do Estado e das famílias”. Pergunto: ninguém soube ver esta “armadilha”?

R: Tenho lido algumas coisas sobre a fundação da União Monetária e é espantoso como toda a gente na Europa viu que isto iria quase inevitavelmente acontecer. Apesar de tudo, estamos perante um problema clássico da economia, o das chamadas “zonas monetárias óptimas” (e peço desculpa pelos palavrões). Mas a maior parte dos responsáveis políticos decidiu ignorar os perigos, em nome da ideia de um projecto político maior, o da União Europeia. E aqui regressamos à tal indefinição sobre o que essa união é. Quis-se fazer, sabendo dos perigos, mas confiando em que, na altura em que alguma coisa acontecesse, se arranjaria uma solução qualquer.

P: Nem se arranjou, nem se completou o projecto: à união monetária não correspondeu o resto da integração, prometida mas nunca cumprida. Só desvantagens?

R: Julgo que, na altura da criação da união monetária, uma das soluções imaginadas para uma sua eventual crise, seria a passagem para a união orçamental. Mas a união orçamental é um passo gigantesco em direcção à união política e nunca por nunca poderá ser adoptada de forma leviana ou como um mero expediente para resolver o problema dos desequilíbrios criados pela união monetária. Para lhe responder directamente à pergunta anterior: quase toda a gente antecipou a armadilha, mas achou que não cairia nela. Viu-se.

O debate político actual “austeridade vs. crescimento” não significa nada, porque a esquerda também teria de fazer austeridade. O PS cá não seria (não será?) muito diferente. Agora, as virtudes da austeridade esgotam-se aí, se a ela não se seguir outra coisa. E esse passo mais à frente não estou a ver que a união monetária favoreça.

P: E no entanto o país parecia feliz: fazia obra pública, “achava” que tinha dinheiro, passava férias no Brasil, Cavaco Silva fazia “reformas estruturais” e falava de um “homem novo”…

R: Pois parecia. As ilusões pagam-se caro.

P: A quase bancarrota de 2011 fez aterrar a troika e instalou a austeridade. Duas questões: 1) Contesta que a ideia de “austeridade” tenha nascido com a direita e tenha sido por ela acarinhada, citando Eduardo Lourenço que em 1978 escrevia no “Labirinto da Saudade” que “vivemos sempre acima das nossas possibilidades”, como se Lourenço conferisse uma inesperada “legitimidade” às razões e argumentos do governo. 2) Arrasa a possível bondade das medidas de austeridade tomadas desde 2011, e descrendo do método.

R: Eu não arraso a austeridade. A austeridade era inevitável. O que me parece perigoso é confundir a austeridade com a alteração das condições para o país se afirmar na Europa e no mundo de outra maneira. Nas condições em que foi feita, a austeridade serve apenas para satisfazer os credores. E isso era inevitável. O debate político actual “austeridade vs. crescimento” não significa nada, porque a esquerda também teria de fazer austeridade (veja-se Hollande, em França, ou Renzi, na Itália). O PS cá não seria (não será?) muito diferente. Agora, as virtudes da austeridade esgotam-se aí, se a ela não se seguir outra coisa. E esse passo mais à frente não estou a ver que a união monetária favoreça. Lá está a armadilha. Vai ser preciso muito tempo para sair dela.

P: Ficou-me um travo amargo da leitura do seu livro (deve ser o tal “pessimismo”), mas é preciso fôlego para o ler: pegando apenas no “hoje”, temos a armadilha do euro, o falhanço das reformas estruturais, o erro das medidas de austeridade… Então o quê? Para onde vamos? Para a ressurreição de novo? Como e com quem?

R: Ficou um travo amargo porque tem um travo amargo. Este não é um tempo para vendedores de ilusões. É um tempo para viver com colete à prova de bala. Nesta altura, vejo muito dinheiro angolano ou chinês pronto a substituir o antigo dinheiro português, mas preferindo os sectores protegidos, tal como o dinheiro português antes fazia. Não me parece grande coisa. Traz algum investimento mas reproduz hábitos que nos trouxeram aqui. Para além disso, o dinheiro que entra não é muito, não é nenhum ouro do Brasil. Não havendo muito mais, vamos mesmo de ter de mudar. Mas ninguém julgue que será fácil. Será difícil e longo. Aconselho toda a gente a vestir o colete à prova de bala.

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