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“Se o Jürgen é a pessoa certa para o Liverpool? A palavra certa é: absolutamente. Tudo é natural. Nada é forçado. Ele não faz nada só para parecer bem. É naturalmente cativante. Aumenta o nível de energia de uma sala assim que entra. É grande e imponente. É um homem que abraça. E faz todas estas coisas porque lhe são naturais. Ele não pensa: ‘Vou abraçar o staff e os jogadores’. Fá-lo porque se preocupa com as pessoas. Este é o Jürgen Klopp. E encaixa-se perfeitamente”.
As palavras são de Ian Ayre, antigo CEO do Liverpool que se sentou ao lado de Jürgen Klopp no dia em que o treinador alemão foi apresentado como o novo treinador do Liverpool. O discurso premonitório de há quase cinco anos tem nesta sexta-feira, o dia seguinte à confirmação da conquista da Premier League por parte do Liverpool, uma importância maior. Em poucas frases, e com uma certeza e uma tranquilidade acima da média para quem está a falar de um treinador que nunca tinha trabalhado em Inglaterra, Ian Ayre mostrou ter total confiança em Klopp. Seria o treinador do futuro, o treinador de uma geração, um dos treinadores mais importantes da história do clube. E Klopp aceitou o desafio porque sabia que o poderia cumprir.
30 anos depois, está feita história: Liverpool sagra-se campeão (e tem de agradecer ao Chelsea)
O treinador alemão chegou a Liverpool em outubro de 2015, há menos de cinco anos, para substituir Brendan Rodgers. Assinou por três anos, depois de ter saído do Borussia Dortmund na temporada anterior a dizer que iria tirar uma licença sabática. Autointitulou-se o “Normal One” na primeira conferência, numa brincadeira com a alcunha de José Mourinho, estreou-se com um empate a zeros frente ao Tottenham e ganhou pela primeira vez no final do mês, contra o Bournemouth, num jogo a contar para a Taça da Liga. O impacto da chegada da nova equipa técnica, porém, não seria imediato — até porque Klopp sabia que não é assim que se constroem as grandes equipas. A ideia sempre foi ficar alguns anos, construir algo de raiz, recuperar um grande clube que estava esquecido entre os gigantes europeus e ver Anfield tornar-se novamente a catedral do futebol.
Existem duas maneiras de olhar para os últimos quase cinco anos do Liverpool: ou acreditar que existe uma força superior que agarra em coisas chamadas destino e premonição e juntou clube e treinador porque ambos encaixavam de forma atípica; ou acreditar que tudo aconteceu porque Klopp sempre quis que assim acontecesse. O recente sucesso do Liverpool — que se tornou primeiro campeão europeu, depois campeão mundial e só agora campeão inglês –, assim como o modus operandi do treinador alemão, pode ser explicado e dividido em quatro categorias: a restante equipa técnica; a importância capital dada às bolas paradas; a gestão do plantel e a abordagem ao mercado de transferências; e uma proximidade fora do comum entre jogadores e treinador.
A equipa técnica, entre a ausência de hierarquias e o delegar de tarefas
Quando chegou a Inglaterra, e de forma natural, Jürgen Klopp levou consigo os dois aliados mais próximos do tempo passado em Dortmund, o bósnio Zeljko Buvac e o alemão Peter Krawietz. Ambos tinham e têm alcunhas: Buvac é “O Cérebro”, pela responsabilidade nos detalhes táticos, e Krawietz é “O Olho”, pela capacidade analítica. Klopp é uma mistura entre as tradicionais definições inglesas de manager e coach — se não se limita a dar o treino e a estar nos jogos, como as versões menos ingerentes de treinadores que mantêm a respetiva esfera de influência exclusivamente ligada ao jogo em si, também não arrasta para ele mesmo todas as discussões relacionadas com o futebol do clube. Está em todas as decisões, tem opinião sobre todos os prismas e quer estar presente em todos os quadrantes; mas sempre em trabalho de equipa, com a capacidade de delegar e a confiança naqueles que estão ao seu lado. E se é assim na estrutura do Liverpool, quer o assunto seja contratações, vendas ou marketing, é assim também na gestão da equipa técnica.
“Eu sei que sou bom numas coisas e muito bom noutras coisas e isso chega-me. A minha confiança é grande o suficiente para deixar que as pessoas cresçam à minha volta. Isso não é um problema. Preciso de especialistas ao pé de mim”, chegou a dizer o treinador alemão. O bom funcionamento do trio assentava no planeamento meticuloso de cada sessão, na palestra detalhada dada aos jogadores antes de cada treino e no facto de os três, enquanto pacote, serem o modelo exato da dedicação e da eficiência que exigiam aos outros.
Até porque se Jürgen Klopp é pouco alemão na forma de celebrar golos e vitórias — com gritos, saltos e abraços –, vinga-se no método de trabalho. A pontualidade é obrigatória, as decisões são tomadas depressa e sem procrastinar e o trabalho árduo é a regra. “Vivo a 100% para os rapazes, com os rapazes”, garante o técnico. Ainda assim, a dinâmica alterou-se ligeiramente em abril de 2018, quando ao fim de 17 anos de parceria Zeljko Buvac decidiu deixar Klopp e abrir uma vaga na equipa técnica do Liverpool. O escolhido para fazer companhia a Peter Krawietz foi Pep Ljinders, um holandês que já sido o responsável pelo desenvolvimento da equipa principal antes de sair para treinar o NEC Nijmegen no país natal. Quando Buvac saiu, Klopp escolheu Ljinders automaticamente e o treinador voltou a trocar a Holanda por Inglaterra.
Ambos, Krawietz e Ljinders, são treinadores adjuntos. Não existe hierarquia entre os dois e ambos se ocupam de papéis diferentes e cruciais dentro da equipa técnica. A relação duradoura do primeiro com Jürgen Klopp, porém, dá azo a uma ligação mais próxima que lhe permite ter opinião válida na hora de escolher o onze inicial, de preparar as sessões de treino e de estudar os próximos adversários. E foi também através de mensagens trocadas entre Klopp e Krawietz que o Liverpool descobriu uma das capacidades que acabou por se tornar uma imagem de marca da equipa.
A perfeição das bolas paradas que apareceu de uma troca de mensagens durante o Mundial
No verão de há dois anos, durante o Mundial 2018, Jürgen Klopp e Peter Krawietz estavam a assistir aos jogos do Campeonato do Mundo da Rússia enquanto trocavam mensagens. Chegaram à conclusão de que os lances de bola parada eram cada vez mais influentes, tanto ofensivamente como defensivamente, e decidiram apostar na inovação destas jogadas — até porque estavam agora armados com o poderio aéreo de Van Dijk e a qualidade de remate e cruzamento do jovem Alexander-Arnold. Resultados práticos? Em 2017/18, o Liverpool marcou 13 golos de bola parada e concedeu 12; no ano seguinte, marcou 29 e só sofreu oito.
Ainda assim, a maior eficácia nestes lances, tanto na defesa como no ataque, não encontra mérito apenas no momento de iluminação de Klopp e Krawietz. Antes da temporada 2018/19, em que o clube acabou por terminar a Premier League em segundo e conquistou a Liga dos Campeões, o Liverpool contratou Thomas Gronnemark, um técnico dinamarquês especializado em erradicar os erros e maximizar o potencial de todas as bolas paradas durante um jogo.
A ideia sempre foi aliar o maior nível de perfeição possível à criatividade de cada jogador. E o maior exemplo disso mesmo foi o canto batido rapidamente por Alexander-Arnold, na segunda mão das meias-finais da Liga dos Campeões da temporada passada, em que a atenção ao pormenor e a espontaneidade do lateral direito acabaram por permitir a Origi marcar o golo que eliminou o Barcelona e colocou o Liverpool na final de Madrid.
O plantel: o talento que já existia, as contratações exímias e a aposta nos jovens
Desde que Jürgen Klopp chegou a Liverpool, o clube só vendeu um jogador com que queria genuinamente ficar: Philippe Coutinho, que em janeiro de 2018 se mudou para o Barcelona por valores que terão chegado aos 160 milhões de euros. O brasileiro tinha sido um dos elementos mais influentes da equipa até então mas a verdade é que, à exceção de Coutinho, o Liverpool tem conseguido segurar todos os principais ativos de que dispõe. A lógica de Klopp, desde que assumiu o comando técnico dos reds, tem sido de potenciar o talento que já existe, contratar apenas para posições-chave e não deixar nenhum jogador ao acaso, perdido entre não ser opção mas também não ser cedido.
Em janeiro de 2018, o Liverpool surpreendeu o mundo inteiro quando gastou 85 milhões de euros na contratação de um defesa central. E não era um defesa central com grandes provas dadas, não vinha de um gigante europeu nem sequer tinha grande experiência na alta roda do futebol internacional. Virgil Van Dijk, a atuar na altura no Southampton, tornou-se o defesa mais caro de sempre (registo entretanto ultrapassado por Harry Maguire) mas trouxe consigo uma bagagem cheia de dúvidas e questões. Em dois anos e meio, Klopp não teve receios na hora de lhe atribuir responsabilidade, de lhe explicar desde a primeira hora que seria o próximo líder do Liverpool e de garantir a toda a gente que o dinheiro dado pelo central holandês tinha até sido pouco para tudo aquilo que Van Dijk acabaria por dar ao clube. A ascensão do jogador não teve e continua sem ter limites: e é o maior exemplo da política de contratações seguida por Jürgen Klopp desde que chegou a Inglaterra.
Klopp quis Van Dijk para colmatar uma falha evidente do eixo da defesa, quis Alisson no verão de 2018 e depois de ter perdido a Liga dos Campeões graças aos erros de Loris Karius e quis Salah logo em 2017, com poucas preocupações em tornar um jogador que tinha passado pelo Chelsea deixando poucas saudades na contratação mais cara do Liverpool à altura. A estes, acrescentam-se Fabinho, aquisição capital para o meio-campo, Mané, parte fulcral no ataque, e Robertson, um escocês que há alguns anos pedia emprego no Twitter e agora é o lateral esquerdo titular da equipa que conquistou a Premier League. Em comum, Van Dijk, Alisson, Salah, Fabinho, Mané e Robertson têm uma coisa: o facto de nunca terem sido, até chegarem a Anfield, os nomes mais quentes e mais populares de uma janela de transferências. Não eram os mais pretendidos, não eram os mais discutidos, não eram os mais polémicos. Mas para Klopp, eram os mais importantes.
Mas, e mais uma vez, nem só de compras e vendas se faz a política de gestão de plantel de Jürgen Klopp. O treinador alemão sempre mostrou vontade de potenciar a qualidade que já existia quando chegou — mas que estava desacreditada. Roberto Firmino chegou a Liverpool ainda em 2015 e sob orientação de Brendan Rodgers, Jordan Henderson estava no clube desde 2011 mas sem especial relevância no balneário e James Milner tinha ainda o selo de ter jogado cinco anos no Manchester City. Klopp fez de Firmino o melhor falso ‘9’ do mundo, de Henderson um capitão e uma das figuras mais respeitadas da equipa e de Milner um faz tudo que é dos elementos mais queridos dos adeptos. Mas conseguiu sobretudo algo mais: é fácil, para quem de repente olha para esta equipa do Liverpool, acreditar que todos jogam de vermelho desde a formação. A vontade de Firmino, a garra de Henderson, as lágrimas de Milner quando Anfield cantou “You’ll Never Walk Alone” depois da vitória contra o Barcelona, são típicos de jogadores que vivem o clube desde crianças e que realizam um sonho de meninos sempre que entram em campo.
E se essa não é a história de Firmino, Henderson e Milner, é a de Trent Alexander-Arnold. O jovem lateral direito estava à porta de casa, nos arredores do centro de treinos do Liverpool, quando em 2005 viu Steven Gerrard e companhia passarem em cima de um autocarro com a Liga dos Campeões nas mãos. 14 anos depois, precisou de se sentar sozinho e em lágrimas, no túnel de acesso ao relvado do Wanda Metropolitano, para assimilar que tinha acabado de repetir o feito. As imagens do jovem de 21 anos a olhar enternecido para a medalha de ouro correram mundo e o lateral direito tornou-se a grande figura da aposta de Jürgen Klopp na formação do Liverpool.
O treinador alemão renovou em dezembro até 2024, antes de estar confirmada a conquista da Premier League 30 anos depois da última vez, e já deu provas de querer prolongar a bem sucedida política de gestão do plantel. Em janeiro, logo nos primeiros dias de mercado, o Liverpool anunciou a contratação de Minamino, jovem japonês que jogava no Salzburgo com Haaland, a grande figura da janela de transferências de inverno. Além disso, ao longo da temporada, tem apostado regularmente tanto em Curtis Jones como em Neco Williams, ambos com 19 anos, e ainda na última partida contra o Crystal Palace deu minutos de liga inglesa aos dois jovens. Se na primeira história revemos a linha de pensamento utilizada com Van Dijk e companhia, na segunda lembramo-nos automaticamente de Alexander-Arnold.
A proximidade entre Klopp e os jogadores que não apagou a exigência
Na primeira reunião com os jogadores como treinador do Liverpool, Jürgen Klopp entrou no balneário e escreveu “TEAM”, equipa, no quadro branco. “É isto que quero que sejamos”, acrescentou. “‘T’ é para Terrível de enfrentar. ‘E’ é para Entusiasmados. ‘A’ é para Ambiciosos. E ‘M’ é para Máquinas de Mentalidade”, explicou. A mensagem era simples e o objetivo era precisamente esse, simplificar ao máximo o que era pretendido e ser claro nas comunicações.
“Quando cheguei, ninguém gostava da equipa. Nem sequer a equipa gostava da equipa! Eles não o diziam mas nem precisavam, porque eu conseguia ver. Achavam que não eram bons o suficiente para estar no Liverpool porque toda a gente lhes dava essa sensação. A única pessoa que estava contente com a equipa era eu. Era uma boa equipa, especialmente porque era a nossa equipa. Quando não a podemos mudar naquele momento, porque é que vamos pensar sobre isso? Não conseguia perceber”, disse mais tarde o alemão, citado pelo The Independent.
A relação entre treinador e jogadores, assente numa base de confiança mútua e de proximidade acima da média, ficou expressa na última jornada da Premier League da temporada passada. Ainda antes de conquistar a Liga dos Campeões pela sexta vez na história do clube, o Liverpool perdeu a liga inglesa para o Manchester City no último fim de semana, apesar de ter alcançado um registo recorde de pontos numa única época. Quando chegou ao balneário, o ambiente era de óbvia desilusão. Mas o treinador depressa recordou à equipa que o mais difícil já tinha sido feito.
“Não podia estar mais orgulhoso de todos vocês. O que vocês conseguiram fazer esta temporada é inacreditável. Estou tão feliz por ser vosso treinador, não trocava este grupo de gigantes de mentalidade por ninguém. Vocês vão ser vencedores porque é aquilo que todos vocês são”, disse o treinador, que mais de um ano depois se tornou o líder da equipa a conquistar a Premier League mais cedo numa temporada, já que ainda faltam disputar sete jornadas do Campeonato.
A ligação próxima entre Klopp e o plantel, porém, nunca apagou o nível de compromisso exigido pelo treinador alemão. Quando chegou, o técnico acabou com uma tradição que existia há décadas no Liverpool como forma de motivar a equipa. À saída dos balneários e à entrada do relvado do estádio, existe uma placa onde se lê “This Is Anfield”, instalada pelo histórico treinador Bill Shankly de forma a impor desde logo o poderio do recinto ao adversário. Todos os jogadores dos reds, de Shankly para cá, tinham o hábito de tocar na placa antes de entrar no relvado, quase em formato de amuleto da sorte. Quando chegou, Klopp proibiu a equipa de o fazer e disse que só voltariam a tocar no quadro quando conquistassem um troféu para o Liverpool. Em junho do ano passado, depois de vencerem a Liga dos Campeões, Van Dijk, Henderson, Firmino, Salah e companhia puderam tocar na porta de entrada para o relvado de Anfield.
Ainda esta quinta-feira, e já depois de tanto Van Dijk como Henderson terem atribuído grande parte da responsabilidade do título ao treinador alemão, Jürgen Klopp falou à Sky Sports para garantir que “não tinha palavras” para explicar o que estava a sentir. “É a melhor coisa que podia imaginar e com que podia sonhar. É inacreditável. É muito mais do que aquilo que achava ser possível. Ser campeão com este clube é absolutamente incrível. É um feito incrível dos meus jogadores e é uma alegria pura poder treiná-los”, disse o técnico.
Jürgen Klopp chegou a Anfield há menos de cinco anos para mudar tudo e tornar o Liverpool a equipa mais popular, mais poderosa e mais vencedora do mundo. Tem mais cinco anos de contrato para tornar o Liverpool a equipa hegemónica em Inglaterra, na Europa e no mundo.