O sentido de urgência não é de hoje. “Estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”, alertava em 2015 Carlos Neto no Observador, naquela que se tornaria provavelmente uma das entrevistas mais partilhadas de sempre (186531 pessoas leram a declaração e deram seguimento à corrente).
A troca de ideias com um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo surtia assim efeito viral, apesar de o interlocutor não ter até então nenhuma obra dirigida ao grande público — destacavam-se no trajeto de mais de 50 anos de ensino apenas duas obras de cariz académico lançadas no começo dos anos 80. Cinco anos depois, a ameaça do sedentarismo entre as idades mais jovens continua a pairar — e a obra para todos por fim chegou.
“Libertem as crianças” é o mais recente repto do professor jubilado, que reflete sobre estudos e evidências que convocam a atenção de qualquer educador, como esta: cerca de 70% das crianças portuguesas passam menos tempo ao ar livre do que os 60 a 120 minutos que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos recomenda para os reclusos nas prisões. O confinamento e as restrições impostos pela pandemia só pioraram a situação.
Com prefácio de Gonçalo M. Tavares, a obra tem chancela da editora Contraponto e chega às livrarias no dia 6 de novembro. O Observador publica um dos capítulos.
Libertar as crianças significa desenhar uma estratégia de desenvolvimento humano, baseada num modelo ecológico e sistémico, em que predomine a aprendizagem inteligente (curiosidade e felicidade), através de uma experiência mais humanista, naturalista, espontânea, lúdica, prazerosa e participativa no confronto com o risco nas situações quotidianas de vida. A vida é todo um jogo de grande incerteza.
Há estudos que têm vindo a demonstrar que as crianças que não satisfazem as suas necessidades terão dificuldades em percecionar e vivenciar o mundo, e que o brincar de forma plena na infância gera adultos felizes, com sucesso, empreendedores e saudáveis ao longo da vida. Um estudo divulgado pela Unilever, realizado em 2016 em 10 países (EUA, Brasil, Reino Unido, Turquia, Portugal, África do Sul, Vietname, China, Indonésia e Índia), com a participação de 12 170 pais, sobre o valor do brincar livre, veio demonstrar uma situação preocupante nas primeiras idades:
– A maioria das crianças não sai para brincar ao ar livre. Mais de metade (56%) das crianças passa 1 hora ou menos por dia a brincar ao ar livre, 1 em cada 5 crianças passa 30 minutos ou menos ao ar livre e 1 em cada 10 nunca brinca ao ar livre. Em todos os países estudados, as crianças passam 50% do tempo diário em frente aos ecrãs de dispositivos eletrónicos em detrimento de atividades ao ar livre.
– Os pais consideram que isso é um problema. Dois terços dos pais admitem que os seus filhos brincam menos ao ar livre do que a sua própria geração. A maioria dos pais (56%) concorda que é preciso reequilibrar essas rotinas das crianças, para fazer com que o brincar em diversos contextos possa trazer mais benefícios para o seu desenvolvimento.
– A esmagadora maioria dos pais (93%) acredita ainda que a diminuição do tempo para brincar ao ar livre pode afetar a capacidade de aprendizagem escolar dos seus filhos.
Em Portugal, a situação na infância, no que diz respeito a esta questão, não se afasta muito destes resultados médios constatados em termos internacionais. A definição de políticas centradas na família, escolas e atividades extracurriculares, tempo de trabalho dos pais e no planeamento urbano tem vindo criar muitas dificuldades relativamente à disponibilização de tempo e de espaços de qualidade para que as crianças possam brincar de forma livre. Os estudos demonstram que:
– Cerca de 70% das crianças portuguesas passam menos tempo ao ar livre do que os 60 a 120 minutos que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos recomenda para os reclusos nas prisões.
– Observa‐se que apenas 10,8% das crianças que frequentam creches e jardins de infância brincam nos espaços exteriores/recreios durante os três meses de inverno.
– Nas creches, os bebés com menos de 1 ano apenas realizam, em média, duas saídas ao exterior durante os três meses de inverno.
– O número de horas semanais de aulas previstas na matriz curricular do 1.o ciclo para os alunos do 3.o e 4.o ano ronda as 32,5 horas, incluindo as atividades de enriquecimento curricular (AEC).
– As crianças portuguesas passam 40 horas semanais nas creches e nos infantários, mais 10 horas do que a média europeia.
– Nos últimos 20 anos, as crianças perderam em média 8 horas de brincadeira livre por semana.
(Estudo realizado pela marca Skip: «Os Valores das Crianças», 2016; Aida Figueiredo, «Interação Criança‐Espaço Exterior em Jardim de Infância», 2015; Matriz Curricular do 1.o Ciclo, Direção‐Geral da Educação, 2016)
Neste sentido, foi criada uma campanha internacional para chamar a atenção para a diminuição do brincar livre, intitulada Libertem as Crianças.
Libertem as Crianças, cujo objetivo era comparar o tempo de ócio (tempo livre) fora das celas dos prisioneiros com o tempo que as crianças têm no seu quotidiano para brincar. A divulgação deste vídeo por todo o mundo veio alertar a sociedade e provocar uma reflexão mais aprofundada sobre o paradoxo que é as crianças terem um tempo disponível inferior ao dos prisioneiros – em média, 2 horas por dia. Esta campanha foi também divulgada em Portugal (Jardim da Estrela, 2016), promovida pela Skip Portugal e acompanhada por 10 filmes realizados com a nossa participação (disponíveis no YouTube), com o mesmo propósito: a consciencialização da sociedade para a problemática do respeito pela infância e pelo direito ao brincar livre nos espaços exteriores na Natureza e em diversos contextos de vida (escola, rua, cidade).
Ainda antes do confinamento, as crianças já estavam confinadas, devido a uma confrangedora falta de tempo e de espaço para brincarem em liberdade. Se anteriormente já tínhamos uma situa‐ ção bastante preocupante de sedentarismo e inatividade física, devido a agendas muito preenchidas com atividades organizadas, estruturadas e formatadas, que impediam as crianças de terem espaço e tempo para brincarem livremente, situação essa agravada pelas horas que passam sentadas e em frente a ecrãs e dispositivos digitais, não é de estranhar que o isolamento social obrigatório em casa possa ter agravado a sua saúde física e mental.
Necessitamos de libertar as crianças:
1 – Para poderem brincar mais tempo de forma livre: em casa, na escola, na rua e na cidade;
2 – Para adquirirem maior literacia motora e lúdica: oportunidades de espaço e tempo para brincarem de forma livre e serem ativas, no sentido de combater o sedentarismo infantil;
3 – Para terem mais oportunidades de correr mais riscos: confronto com situações desafiantes de natureza motora, cognitiva, emocional e social em diferentes contextos de ação;
4 – Para deixarem de estar muito tempo sentadas e quietas em casa e na escola: incentivar o jogo de atividade física e diminuir os níveis de inatividade física;
5 – De terem agendas muito estruturadas: aumentar o equilíbrio de tempo entre atividades organizadas e atividades não‐formais (tempo livre);
6 – Da superproteção parental e dos «medos» dos adultos: dar mais liberdade de ação, por oposição a relações parentais demasiada‐ mente protecionistas, e promover a consciencialização dos efeitos negativos dos medos devido a proibições verbais ou não‐verbais relativamente às iniciativas das crianças em situações exploratórias do corpo em movimento (brincar e ser ativo) em situação de risco;
“Estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”
7 – Da falta de autonomia e mobilidade: promover maior independência a nível de mobilidade (casa‐escola‐cidade) e fomentar a conquista de maior autonomia (motora, emocional e social) nas deslocações do corpo na vida quotidiana;
8 – Para o brincar livre promovido pelas escolas: há que atingir um equilíbrio entre experiências lúdicas em espaços interiores e exteriores e modelos pedagógicos mais consistentes na promoção de pequenos pesquisadores a aprender para um futuro incerto;
9 – Para terem contacto com a Natureza: é muito importante facultar experiências às crianças e perceber os benefícios educativos da relação com o ambiente, aprendendo a criar uma consciência de sustentabilidade para o futuro;
10 – Por meio de políticas públicas para a cidade e do aumento dos níveis de participação da criança: implementar dinâmicas participativas e ouvir as crianças nas decisões relativas a projetos que envolvam crianças, famílias, escolas e instituições artísticas, recreativas, desportivas e comunitárias.