O fado chegou à União das Repúblicas Soviéticas pela voz de Amália Rodrigues em 1969 e, embora os soviéticos desconhecessem quase por completo a música portuguesa, as salas de espectáculo das cidades onde atuou encheram-se com milhares de pessoas.
A digressão da cantora na URSS, com quem Portugal não tinha relações diplomáticas, decorreu entre 6 e 26 de Maio de 1969, tendo ela atuado em Leninegrado, Moscovo, Tbilissi (capital da Geórgia), Erevan (capital da Arménia) e Baku (capital do Azerbaijão).
Os contactos culturais entre Portugal e a União Soviética não eram, na época salazarista, nada intensos, reduzindo-se a atuações de alguns músicos e bailarinos russos em Lisboa e no Porto e de pianistas lusos naquele país comunista. Por isso, o aparecimento de Amália nos palcos soviéticos parece ter sido possível graças às mudanças políticas ocorridas em Portugal nessa altura.
Os primeiros contactos com a cantora pelos organizadores soviéticos tiveram lugar em 1960 e apenas se realizou nove anos depois, quando António de Oliveira Salazar já estava afastado do poder. O nosso país vivia a “Primavera marcelista” e na longínqua cidade de Moscovo acreditava-se que o regime político se poderia tornar mais aberto.
A 14 de maio de 1969, ou seja, a meio da digressão da rainha do fado, o jornal Literaturnaya Gazeta, órgão da Direcção da União dos Escritores da URSS, publicava um artigo traduzido da imprensa francesa com o título “Mas a sombra do “velhote” [Salazar] paira sobre Portugal”. Na introdução escrita pela redação pode ler-se: “Há muitos anos que em Portugal reina um regime reacionaríssimo abertamente fascista que reprime sem piedade os democratas, oprime com repressões desenfreadas o desejo de liberdade do povo. Hoje, o governo de Lisboa, que veio substituir o gabinete do ditador Salazar, dá passos cuidadosos, claramente demonstrativos com o objetivo de “incluir Portugal na Europa”, mostrar que podem soprar ventos de mudança também nesse país do terror”.
Amália Rodrigues estreou-se na Grande Sala de Concertos “Outubro” de Leninegrado (hoje São Petersburgo), onde deu oito concertos nos dias 6,7,8,9,10 de Maio, tendo o de 9 de Maio começado às 12 horas. Esta hora pode parecer estranha para o início de um concerto, mas é de salientar que, nesse dia, a União Soviética celebrava o dia da vitória do Exército Vermelho sobre o nazismo germânico. Todos os 4 mil lugares estiveram ocupados durante os oito concertos, o que significa que mais de 30 mil pessoas foram ouvir a “voz do fado” na cidade berço da revolução comunista de 1917.
Este grande número de espectadores não significava que o fado fosse uma música popular na União Soviética. Não, poucos eram os soviéticos que conheciam este género musical que, pelas letras, ritmos e estados de alma, aproxima-se muito das romanças russas. Na URSS não se vendiam os discos da cantora, nem os soviéticos conheciam os filmes em que ela participou, apenas um pequeno círculo de pessoas que sabiam falar português conheciam a sua obra através de gravações, que passavam de mão em mão.
Numa entrevista concedida a Natália Rumiantseva, historiadora russa que dedicou parte da vida ao estudo do fado, Elena Golubieva, uma das primeiras professoras de língua portuguesa na URSS, recordou como é que a música portuguesa chegava a um estreito círculo de soviéticos: “Como? Gravávamos de discos, transmitíamos uns aos outros. Então, era difícil, porque em Portugal governava Salazar e nós ainda vivíamos por detrás da “cortina de ferro”, mas, não obstante, as canções infiltravam-se. Recebíamos, tínhamos contactos com os portugalistas de Moscovo, éramos amigos, trocávamos coisas. Eles podiam consegui-las nos mais diferentes lugares, por exemplo, dos imigrantes que aqui viviam”.
A maioria das pessoas foi ver Amália porque era muito rara a presença de intérpretes estrangeiros nos palcos soviéticos e a curiosidade era grande. No caso da cantora portuguesa, pode-se dizer que ela não desiludiu as expectativas, bem pelo contrário. O reportório foi: Fado Português, Gaivota, Maria-Lisboa, Madrugada de Alfama, Verde, A Minha Canção é Saudade, Barco Negro, Estranha Forma de Vida, Erros Meus, Canção Popular, Acho inúteis as palavras, Leonor, Uma Casa Portuguesa, Só à Noitinha, Fuga, Foi Deus, Abandono, As Penas, Dura Memória. E acompanhada por grandes músicos como Raul Nery, Carlos Gonçalves, Júlio Gomes e Joel Pina.
O jornalista Alexei Semionov publica, no jornal regional Peskovskaya Gubernaya, o testemunho de uma jornalista soviética: Nina Gavrilova que presenciou a todos os espectáculos da divã lusa em Leninegrado, embora nunca antes tenha ouvido a voz de Amália ou qualquer fado português: “Fiquei encantada, enfeitiçada pela forma como ela interpretava as canções”.
“Havia concertos todos os dias, mas eram absolutamente diferentes. Durante todos os dias a sala esteve esgotada, a notícia passara de boca em boca”, recorda a jornalista. Além disso, no programa difundido escrevia-se que “a artista nunca canta o mesmo reportório: sentindo o auditório, ela, em cada concerto, interpreta canções que mais correspondem à disposição do público”.
No fim de um dos concertos, Nina Gavrilova dirigiu-se aos bastidores para conversar com Amália a fim de escrever um artigo para um dos jornais de Leninegrado, que não chegou a ser publicado porque, segundo o chefe da redação, “não existem relações diplomáticas entre os dois países”. No fim da conversa, a fadista ofereceu-lhe um cartaz e a irmã, Maria, um disco. Importa salientar que Nina apenas foi assistir ao primeiro concerto por mera curiosidade, prestara atenção a um cartaz colado na rua.
Num dos compêndios de língua portuguesa para alunos russos, uma das autoras, a já citada professora Elena Goluvieva, que foi também tradutora da letra de alguns dos mais conhecidos fados de Amália, recordou: “Era uma mulher muito bela com uma alma grande como o mundo. Cantava o fado como ninguém. Ela foi a única portuguesa que conseguiu tornar-se estrela… Não só a sua voz, toda ela despertava paixões e aplausos em todo o mundo. Ela foi a primeira a vestir-se de preto e a decidir cantar o fado. Ela soube renovar a forma de cantar. Enquanto Portugal sofria durante a ditadura, Amália era um símbolo de Portugal, onde todos podiam ver-se a si, e esse é o maior mérito que ela ofereceu a todo o Portugal”.
O triunfo continuou nos dois concertos que Amália Rodrigues dá a 13 e 14 de maio na Sala de Concertos de Tchaikovsky em Moscovo. A passagem da divã pela capital soviética está bem documentada no livro “Amália: Ditadura e Revolução” de Mário Carvalho, recentemente editado. Têm especial interesse as memórias da cantora Luísa Bastos sobre a forma como os refugiados políticos portugueses acolheram a sua conterrânea. Sensação semelhante se apoderou de mim quando ouvi em Moscovo as vozes de fadistas como Carlos do Carmo, de Ana Sofia Varela e de Mariza, ou o som arrancado das cordas da guitarra portuguesa por Mário Pacheco.
A digressão terminou com atuações da fadista portuguesa na Geórgia, Arménia e Azerbaijão, tendo sido igualmente um êxito. A revista “Teatro” escreveu em Agosto de 1969 sobre a digressão de Amália: “Ela aparece no palco vestido um longo vestido negro, semelhante a uma batina. Canta sem gestos. Amália segura nas mãos o microfone. De tempos a tempos, mexe os ombros, como que dançando ao som do ritmo emocionado das guitarras. Canta com sinceridade, diretamente, de forma surpreendentemente emocional, abrindo para os ouvintes a essência popular das melodias portuguesas. As suas canções são poéticas, nelas canta-se a beleza da moça, da natureza. E o amor que não necessita de felicidade no céu, mas na terra.
Muitas das suas canções são trágicas. Os ouvintes sentem um nó na garganta quando ela fala do destino triste de uma moça que espera em terra o barco negro do amado, que jamais voltará. Nas suas canções, muito populares, há amor e fidelidade ao povo simples. Amália canta a pátria, o mar e as suas costas, a sua Lisboa, refrescada pelos ventos salgados, as suas ruas nas noites de luar e de madrugada”.