“Conheço 360 lagos de municípios por aí, está tudo alagado, tudo inundado.” Francisco Pinto de Carvalho é conhecido como Gavião, ou o Rei do Pirarucu. É o comerciante mais antigo da Feira Coronel Jorge Teixeira, ou Feira Manaus Moderna, como é vulgarmente conhecido o mercado que fica mesmo ao lado do mais antigo, e famoso, Mercado Municipal Adolpho Lisboa. É ao Manaus Moderna que chega grande parte dos peixes pescados no Rio Solimões, a poucos quilómetros da cidade de Manaus. E é este mercado o primeiro a sofrer na época das chuvas.
Francisco aponta para a marca nos azulejos brancos da banca que tem há 16 anos para mostrar o meio metro de água que inundou o mercado no final do mês de Maio. Ele e os outros comerciantes tiveram de sair daqui e ir para outro espaço. “O rio que te dá tudo depois também te complica a vida.”
Manaus, a “Metrópole do Amazonas”, em tempos “Paris dos trópicos”, é banhada pelo Rio Negro. O Amazonas, nunca toca a capital do estado a que dá nome. O Negro é o maior afluente da margem esquerda do Amazonas e os dois dançam uma estranha dança de 16 quilómetros ao longo dos quais correm lado a lado, sem nunca se misturarem. Esse ponto, chamado “encontro das águas” é a primeira passagem obrigatória dos passeios turísticos que centenas de lanchas oferecem, e que milhares de turistas requisitam.
Manuel Dieb Fernandes, 46 anos, trabalha no rio há 20. A ligação ao Amazonas e ao Negro é de sempre, uma vez que nasceu no interior, a poucos quilómetros de Manaus. O saber vem-lhe da experiência, da vivência. “O meu pai era pescador e eu ia com ele para todo o lado, fui aprendendo.” É com esse saber que Manuel explica que “o Negro tem muito material orgânico, por isso é mais ácido.” A diferença de acidez, de densidade, de velocidade e de temperaturas ditam que água escura e bastante mais clara corram paralelas, só se misturando passados 16 quilómetros de corrida. “Basta meter a mão na água para perceber bem a diferença”, diz o guia e motorista da lancha rápida enquanto leva o barco a lentamente cruzar os dois lados.
A viagem continua já no Amazonas. O nome só é aplicado com propriedade a partir do ponto em que a cor fica uniforme, sinal da junção do Solimões com o Negro. O maior rio do mundo, ao longo do percurso de quase sete mil quilómetros, recebe vários nomes. No Perú, onde nasce, chama-se Carhuasanta, Lloqueta, Apurímac, Ene, Tambo, Ucayali e Amazonas. Ao entrar no Brasil é batizado Solimões e, finalmente, na zona de Manaus, ao juntar-se com o Negro, volta a ser Amazonas.
Manuel acelera a lancha, mas passados alguns metros desliga o motor. Um vulto escuro, ao longe, deu um salto. “É um boto negro!”. Alguns minutos de espera a ver se o animal, semelhante a um golfinho, mas mais escuro, aparece de novo, mas nada. Mais à frente uma árvore tem os ramos cheios de ninhos. São Japins. “É o pássaro que imita o canto de todos os outros pássaros da floresta. Tucano, papagaio… Eles vêm ter os filhotes aqui.”
A comunidade Vila Nova fica alguns minutos à frente. Cerca de 200 pessoas vivem em casas de palafita. As gargalhadas de crianças chegam ao barco apesar dos metros de distância. Com o sol a brilhar intensamente e um calor espesso no ar, os mais novos são atirados ao rio por amigos e familiares, aterrando numa espécie de piscinas naturais, delimitadas por traves feitas de madeira.
A primeira vez que os pés volta a pisar madeira desde que saímos de Manaus é para sairmos num local de observação de vitória-régia, uma planta aquática típica da Amazónia semelhante a um nenúfar.
Saímos num restaurante onde alguns turistas comem tambaqui e pirarucu, os dois peixes mais famosos do Amazonas. Depois de alguns metros de uma passadeira de madeira chega-se a uma espécie de observatório. Dezenas de vitória-régia estão estrategicamente acantonadas em frente à estrutura que serve de miradouro. Não é bem a natureza no estado mais puro, pelo menos ao nível do ordenamento…
A preocupação com o turismo é tão notória quanto um mercado de artesanato antes da passagem que leva até às vitória-régia pode ser. O local onde estamos chama-se Janauari e as pessoas que aqui vivem só conseguem dinheiro de duas formas, pesca e artesanato. Maria, uma vendedora local explica que “é tudo da região. A madeira com que são feitas as estátuas, as penas das aves que enfeitam os brincos…” Maria não é mulher de muitas palavras, só a muito custo lhe sai a sentença de como é viver aqui – “é legal. É calmo, silêncio, não tem poluição.”
“Agora vamos aos animais.” Os animais a que Manuel, o guia, se refere estão a mais alguns minutos de distância e são propriedade de uma família. Antes de chegarmos a advertência: “eles não cobram nada, mas se quiserem dar uma propina (propina no Brasil é gorjeta) eles aceitam.” Na casa sobre o rio moram sete pessoas. Uma jibóia, um jacaré e uma preguiça são o atractivo. Assim que a lancha encosta Aurélia, a dona da casa, traz a preguiça para as fotografias. Vive, há 10 anos, com a família aqui. “Peguei os animais aqui ao pé. É a maneira de sobreviver.” Às “propinas”, Aurélia junta mais alguns reais que faz com a venda de água, refrigerante e cerveja.
Uma lancha cheia de turistas norte-americanos torna o espaço demasiado pequeno e seguimos viagem. O regresso a Manaus faz-se por um cenário deslumbrante, e efémero. Em Maio e Junho estamos na época de chuva, o rio está com o caudal no máximo. À frente da lancha começa a surgir o que o guia, Manuel, chama de “floresta submersa”. Um incrível lençol de água cobre muita vegetação e as árvores estão cerca de dez metros debaixo de água. Outubro e Novembro é tempo da época seca, os metros de água desaparecem nessa altura. A diferença entre o nível durante essas duas épocas, no Amazonas, chega a ser de 29 metros (!). “Em Dezembro isto fica tudo seco.” Nessa altura a vida de Manuel muda, passa a trazer turistas até aqui para fazerem trilhas e pescar.
A frase fica a ressoar na cabeça até ao fim da viagem. “Em Dezembro fica tudo seco.” Milhões e milhões de litros de água desaparecem e ali, onde troncos de árvores com 20 metros estão metade submersos, dá para andar a pé…