Há um ano, quando Alcino Manuel dos Reis saiu da prisão em liberdade condicional, muitos em Calvelhe, uma pequena aldeia a 40 minutos de Bragança, “choraram” com o seu regresso. Mas a reação não era de alegria. Durante anos, os constantes insultos do sexagenário ainda foram sendo tolerados pelos cerca de 100 habitantes da terra. Foram as ameaças — que rapidamente se transformaram em agressões de faca na mão — que instalaram definitivamente o “medo” por ali. Chamavam-lhe “o talibã”. Esta terça-feira, foi morto pela GNR depois de receber os militares a tiro de caçadeira e o Ministério Público já anunciou a abertura de inquérito ao caso. “Já devia ter ido há 100 anos”, desabafavam os vizinhos.
José foi uma das vítimas de Alcino. Há uns anos, tinha-o contratado para uns biscates: teria de arrumar e acondicionar a lenha que, depois, José trataria de vender aos seus clientes. Mas Alcino lesionou-se durante um desses trabalhos, o que o obrigou a várias deslocações ao hospital para tratar os ferimentos. Alcino terá visto aí uma oportunidade para exigir uma indemnização — foi a forma, conta José, que encontrou para “não ter de voltar a trabalhar” e ficar livre de mais tarefas daquelas, passando a viver de uma pensão por invalidez.
Sem surpresa, o plano, frágil, com que pretendia resolver a sua vida não funcionou. José acionou o seguro de trabalho e os tratamentos de Alcino foram pagos pela seguradora, mas nada de pensão. “Vingou-se em mim”, conta ao Observador, enquanto descreve as marcas que traz no corpo: dois cortes na zona das costelas, provocados pelas faca que Alcino esgrimiu vezes sem conta na sua direção, e mais uma abaixo da zona da nuca.
Desse episódio terá resultado a condenação que o atirou para a prisão. Oito anos de pena efetiva, segundo contam os vizinhos. Nunca mais foi o mesmo — veio ainda mais violento.
Alcino costumava “mandar bazucas e explosões”. Mas desta vez era diferente
Junto ao estaleiro da obra onde Alcino se envolveu numa troca de tiros com a GNR, a vida parece ter rapidamente voltado ao normal. Na porta da frente ainda são visíveis as marcas dos estilhaços da caçadeira disparada contra os militares que responderam a um pedido de socorro dos vizinhos. Guilherme (nome fictício) estava ali por perto quando ouviu os primeiros disparos. “Estava a cortar lenha e ouvi uns tiros e soube que eram a sério.” A expressão mostra que não era a primeira vez que o homem de 60 anos lançava o caos.
O primeiro disparo foi para uma mala que Alcino tinha em casa. Habituados a episódios como aquele, os trabalhadores do estaleiro decidiram “continuar a trabalhar”. Mas o segundo disparo já foi direto à porta do estaleiro da obra e ainda acertou de “raspão” no dedo de um antigo colega de turma de Alcino. “Ele disparava para todos os lados”, conta o trabalhador que assistiu a tudo.
Uma vizinha ainda se tentou aproximar depois dos primeiros disparos, para perceber o que estava a acontecer, mas rapidamente recebeu o aviso dos trabalhadores de que o melhor mesmo era voltar para dentro. Mais dois disparos. Rodrigo (nome fictício), outro trabalhador, admite que, nesse momento, estava convencido de que Alcino “tinha matado a mulher” que se aproximara. “A sorte foi ninguém da obra ter saído na hora em que os tiros foram disparados.”
Rodrigo, que vive numa das aldeias vizinhas e que estudou com Alcino na “quarta classe”, recorda que, nos tempos da escola, ele “até era porreiro e inteligente”. Mas ao longo dos anos “perdeu-se” e, nos tempos mais recentes, foi lançando o terror por Calvelhe. Alcino costumava “mandar bazucas e explosões” de vez em quando, mas esta terça-feira algo parecia ser diferente. Em vez dos habituais barulhos que vinham da sua casa, ouvia-se o som de uma arma. “Eu sou caçador e conheço bem o tiro de uma caçadeira”, explica o trabalhador da obra.
A GNR foi alertada nesse momento para o que se estava a passar. Assim que chegaram, os seis militares que responderam à chamada “cercaram” Alcino. “Pediram-lhe para ele pôr a arma no chão, mas ele disparou de seguida”, descreve o antigo colega de escola. Na troca de tiros, Alcino ainda atingiu dois militares, um deles na perna — que ficou com ferimentos graves, mas foi estabilizado e não corre perigo de vida. Os militares puxaram das armas. Alcino morreu ali mesmo.
“Foi melhor assim, senão ele ainda fazia pior”
Os problemas de Alcino não começaram esta semana. Também não começaram há oito anos, quando atacou o patrão à facada. Os vizinhos garantem que há muito que o sexagenário tinha comportamentos violentos. E teria, também, um historial de doença psiquiátrica. Mas foram os anos atrás das grades, conta, que o tornaram ainda mais agressivo.
“Ele dizia que lhe batiam na prisão, estava desesperado”, diz “António”, que considera que Alcino devia ter tido um acompanhamento mais próximo. “Já o deviam ter posto numa instituição mental”, defende. Apesar do historial, António diz que “foi pena” o que aconteceu esta terça-feira, porque Alcino “não era má pessoa”.
A morte de Alcino fez com que a aldeia voltasse a sentir alguma “tranquilidade”. Os receios pela presença de Alcino faziam-se sentir, sobretudo, entre a população mais velha. “Margarida”, que também mora em Calvelhe, voltou a Portugal depois de alguns anos no estrangeiro para acompanhar a mãe, uma das pessoas atacadas na localidade. “Ele chamava os mais velhos porque eles não se conseguiam defender”, conta.
É Margarida quem recorda que, quando o homem de 60 anos saiu da prisão, no ano passado, as pessoas da aldeia “choraram” com medo de voltar a cruzar-se com ele por ali. “Tratava mal os vizinhos, tratava mal a minha mãe. Estragou-lhe a fechadura da porta, que tivemos de trocar duas vezes”, conta.
Uma vez, continua, Alcino chegou a insinuar que “ia deitar uma bomba no arraial da aldeia”. A ameaça foi suficientemente convincente para que Margarida tivesse ficado com “medo de ir” às festividades. Na casa do lado, a porta número 6 está carimbada com três machadadas, outra marca dos acessos de violência de Alcino.
Depois da troca de tiros com a GNR, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais referiu que, ainda em outubro, comunicou ao tribunal a “perigosidade do libertado e o temor da comunidade relativamente aos seus comportamentos e presença na aldeia”. Alcino estava em liberdade desde o início de abril, depois de cumprir a quase totalidade da pena a que tinha sido condenado. “Esta equipa estabeleceu articulação com o Departamento de Psiquiatria e de Saúde Mental de Bragança para encaminhamento/consulta de avaliação clínica no âmbito da saúde mental e sensibilizou o libertado para que comparecesse às consultas, sem que o mesmo o tivesse feito”, refere o mesmo esclarecimento. O Ministério Público instaurou um inquérito para investigar as circunstâncias em que o homem morreu.
Junto ao local onde Alcino foi morto pelos militares da GNR — que dizem ter disparado em “defesa própria” — um dos amigos não esconde um certo alívio. “Foi melhor assim, senão ele ainda fazia pior.”