Foram apanhados no meio de uma ação revolucionária contra Salazar, o desvio de um avião comercial, por obra do amor. E de um jantar e um espetáculo de dança do ventre em Casablanca.
Ele era um piloto exímio, provavelmente o melhor da TAP naquela altura, um mulherengo inveterado, casado, que se tinha rendido aos encantos de quem não lhe caiu aos pés à primeira. Ela, uma assistente de bordo quase 20 anos mais nova, rebelde, que não se importava de receber chaves de carros de outras mulheres e lhas entregava, deixando-o furioso.
Namoraram, casaram, tiveram uma filha e quatro netos, três rapazes e uma rapariga.
Esta é a história de José Sequeira Marcelino e Maria Luiza Infante. E da “Operação Vagô”.
Ela
Maria Luiza Vasconcelos Infante sonhava ser assistente de bordo da TAP. Uma ideia mal acolhida pelo pai, que não se coibia de mostrar a discordância: “todas as notícias sobre acidentes de avião ele recortava do jornal e deixava em cima da minha cama”.
Assim sendo, Maria Luiza não teve outro remédio, terminado o liceu, que não frequentar o curso de Direito. Durante dois anos partilhou, na Faculdade de Direito de Lisboa, salas e disciplinas com Sá Carneiro e Pinto Balsemão. Depois fartou-se, e fez valer a data de nascimento: “Quando fiz 21 anos (estala os dedos) desisti. Quando houve o primeiro concurso da TAP entrei.” Tinha 22 anos.
Quando foi mãe deixou de voar. “Na altura, as mulheres que tinham filhos não podiam continuar a trabalhar na TAP.” Depois do 25 de Abril de 1974, com o fim dessa regra, pensou, seriamente, voltar a ser assistente de bordo e até chegou a concorrer, mas o marido não permitiu o regresso: “Eram os ciúmes… Tive pena, adorava voar.”
Ele
José Sequeira Marcelino quis, desde criança, ser piloto. Em 1937 consegui-o, na aviação civil. Quatro anos depois, em 1941, completou o Curso de Aeronáutica da Escola do Exército.
Filho de um militar de carreira que combateu na Batalha de La Lys (1918), José Marcelino nunca pareceu interessar-se muito pela política. O mais perto que esteve dela foi ao ocupar o cargo de presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil.
Fez parte dos “11 de Inglaterra”, o grupo de pilotos que fundou a TAP. Foi condecorado com o Grau de Oficial da Ordem Militar de Cristo, grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e com a Medalha de Mérito Aeronáutico Santos Dumond.
Se no ar se tornou quase uma lenda, pela perícia, em terra ficaram famosas as aventuras amorosas. “Era um homem bonito, com uma certa aura. Namorava todas as meninas da TAP”, admite Maria Luiza Infante. Era também um homem apaixonado pelo mar e adorava pescar.
O desvio
O dia de S. Martinho de 1961 ficou marcado na história da aviação civil mundial, e na de Portugal. Nesse 11 de novembro, Hermínio da Palma Inácio e outros cinco operacionais antifascistas, quatro homens e uma mulher, encetaram uma ação revolucionária contra Salazar. A “Operação Vagô”, arquitetada por Henrique Galvão (capitão do Exército que já tinha, em Janeiro do mesmo ano, organizado e comandado o assalto ao paquete Santa Maria) e liderada por Palma Inácio, consistia no desvio do avião que fazia a viagem Casablanca-Lisboa para que fossem lançados sob várias cidades portuguesas 100 mil panfletos com mensagens contra o regime salazarista. Seria o primeiro desvio de um avião comercial a ficar registado na História. E foi.
“Nós pedimos que ao menos escondessem as armas, para que os passageiros não se assustassem.”
Maria Luiza Infante era uma das duas assistentes de bordo escaladas para fazer o voo Lisboa-Tânger-Casablanca, no dia 10 de novembro, e o regresso, Casablanca-Lisboa, no dia 11.
Devido à escassez de aparelhos, o avião previsto para o serviço era um DC-6 francês da UAT, fretado pela TAP. No mesmo 10 de novembro um Super Constellation da transportadora nacional deveria fazer o percurso Lisboa-Porto. O Comandante José Marcelino seria o piloto responsável por essa ligação. Só que por esses dias já Marcelino estava perdido de amores por Maria Luiza Infante, isto apesar de na altura ainda se encontrar legalmente casado e a viver na mesma casa que a mulher, de quem se estava a divorciar. Ao perceber que a namorada estava no outro voo, e recorrendo aos poderes que tinha na TAP, o Comandante decidiu trocar os dois aviões. O Super Constellation Mouzinho de Albuquerque voaria para África e faria o regresso, o DC-6 francês faria o trajeto Lisboa-Porto e Porto-Lisboa. O motivo invocado foi a poupança para a companhia, dada a distância a percorrer. O verdadeiro, o Comandante levar a assistente de bordo a jantar e a assistir a um espetáculo.
Situado no cosmopolita quarteirão de Maarif, propriedade do cantor argelino Salim Halali, o cabaret “Coq d’Or” (galo dourado) era uma atração famosa e frequentada pela alta sociedade marroquina e turistas mais endinheirados. Maria Luiza recorda que “era jantar com espetáculo, umas bailarinas. Era aquela dança dos ventres e tal. Saímos de Lisboa de manhã, aterrámos em Tânger, depois fomos para Casablanca, onde devemos ter chegado à tarde, meio da tarde. Fomos ao hotel descansar um bocadinho e depois da sesta ele convidou-me para jantar e ir ver esse espetáculo.”
A dança não impressionou particularmente a assistente de bordo – “O que é que você acha? Talvez um homem ache graça, mas eu… Aquilo era um sítio grande, estava cheio, também havia outras mulheres, mas sobretudo estavam homens.” – que lembra um episódio que até a deixou um pouco desagradada e foi motivo de alguma tensão: “As bailarinas chegavam ao pé das pessoas e os homens punham dinheiro aqui (faz o gesto de colocar uma nota no sutiã), quando chegaram ao pé do meu marido [então namorado] ele também ia fazer o mesmo. Aí eu disse: ‘alto, aí alto! Eu estou aqui!’ Como falo bem francês ainda lhe deixei um palavrão a ela. Enfim, já era demais, se ele estivesse sozinho, aí era diferente, com certeza, agora eu estava ali ao lado, era o mínimo a cumprir…”
Apesar de tudo, quando regressa a essa noite Maria Luiza não encontra nenhum significado excecional: “para nós aquilo era mais uma saída, normal.” Tal como normal era, naquela fase do namoro, o desfecho: “Não dormimos juntos nessa noite. Cada um dormiu no seu quarto.”
Na manhã do dia seguinte, 11 de novembro, a tripulação tomou o pequeno-almoço junta no hotel e seguiu depois para o aeroporto. A bordo do Mouzinho de Albuquerque seguiam 13 passageiros, “quase todos americanos” diz Maria Luiza. Dois seguiam na primeira classe, que ficava atrás, os restantes na parte da frente do avião. Menos de uma hora depois da descolagem Palma Inácio e os restantes membros do grupo tomaram o aparelho de assalto. “Ao princípio uma pessoa assusta-se. Mas depois de falarmos com eles acalmei-me. O Orlloff ficou preso lá à frente, fiquei eu e a Pilar, que chorava que nem uma madalena porque, coitadinha, era o último voo dela, ia casar… Um deles até lhe deu um lenço, ‘não chore, não chore que isto vai tudo acabar bem'”.
No cockpit, Palma Inácio explicou o plano ao Comandante Marcelino: sobrevoar Lisboa, Barreiro, Beja e Faro para lançar propaganda a denunciar as eleições para a Assembleia Nacional que se realizavam daí a dois dias, e depois regressar a África, aterrando em Tânger. O Comandante ainda tentou invocar que o combustível não chegava para aquilo tudo, lembra Maria Luiza Infante, mas Palma Inácio não foi na conversa, tinha conhecimentos de aviação, consultou o plano de voo, e respondeu que era possível.
Na parte do avião onde estavam os passageiros, e com os assaltantes a acederem ao pedido de nunca mostrarem as armas, começaram a ser servidas bebidas alcoólicas como se de uma festa se tratasse.
Pelo meio, com o nervosismo, um dos elementos do grupo de operacionais sentiu-se mal e foi à casa de banho vomitar. Maria Luiza Infante, ao passar pelo WC e deparar-se com o cenário não foi de meias medidas e perguntou: “quem é vomitou isto tudo?” O homem acusou-se. “Então agora vai limpar, disse-lhe. E ele foi.”
O plano foi cumprido e os folhetos foram atirados janela fora, a baixa altitude, por causa da pressão. Apesar de alguns percalços, que incluíram dois caças no encalço do Super Constelletion que fizeram o piloto descer e passar bem próximo dos prédios em Lisboa; e dois navios de guerra ao largo de Faro, que originaram uma corajosa manobra do Comandante Marcelino que passou mesmo muito baixo entre os dois, para assim impedir que disparassem, ou acabariam por fazê-lo um contra o outro.
O grupo dos seis antifascistas ficou em Tânger. A tripulação, quando aterrou em Lisboa, foi interrogada pela PIDE. José Marcelino não conseguiu convencer totalmente com o argumento, financeiro, apresentado para a troca dos aviões e acabou por ser suspenso durante um mês.
Eles
A primeira vez que Maria Luiza Infante viu José Marcelino foi no parque de estacionamento da TAP, no aeroporto de Lisboa, quando ela ainda era assistente de terra. “Eu tinha um carro muito engraçado, que era um Austin azul, descapotável, ele parou o carro ao lado, virou-se para mim e disse: ‘ai se eu tivesse menos 20 anos e se não fosse casado não me escapavas.’ Era pouco atrevido… E eu respondi: ‘era só o que faltava!'”
Depois, uma amiga de Luiza que vivia em Luanda com o marido, convidou-os aos dois para um jantar lá em casa. O Comandante era uma figura famosa nos sítios por onde aterrava, uma espécie de estrela de Hollywood, mas dos ares. “Ele era considerado o melhor piloto da TAP, e era engraçado, um homem bonito”, recorda Maria Luiza. Marcelino “fez-se difícil”, respondendo ao convite “que tinha que fazer nessa noite”, mas depois lá acedeu. “Conversámos muito, começou tudo aí.”
Começou, mas até à concretização ainda faltava. Ela nunca se mostrou tão acessível como outras, mais solícitas, e não aceitava todos os convites. “Comecei a achá-lo interessante”. Mas pelo meio havia uma outra relação de Luiza, que “tinha um namorado lá em Luanda”, o casamento de José Marcelino, e, claro, o feitio de Luiza. “Um dia estávamos no hotel, em Luanda, e ele vira-se para mim e diz: ‘olhe, tem alguma coisa que fazer hoje?’ Eu respondi: ‘claro que tenho! Não era assim'”. Alguns anos mais tarde Maria Luiza ouviu da boca do filho de Marcelino, do primeiro casamento, uma das razões para ter conquistado de forma tão arrebatadora o coração do bon vivant: “O meu pai estava habituado a que todas as meninas se derretessem por ele. Como a Luiza disse que tinha o que fazer, ficou-lhe atravessada.”
A facilidade com que o piloto granjeava simpatia junto do sexo feminino era, admite a antiga assistente de bordo, impressionante. “Já andávamos juntos e as meninas vinham-me entregar chaves, em Luanda ou Lourenço Marques, de carros para poderem ir passear com ele.” E como é que reagia a isso? “Recebia as chaves e entregava (sorri). Ele ficava passado! E papelinhos com mensagens… A mim isso divertia-me imenso.”
José Marcelino lá conseguiu levar avante as intenções, Maria Luiza rendeu-se e os dois começaram a namorar. Existia, no entanto, um pequeno pormenor: ele era, ainda, um homem casado. E que vivia em casa da mulher. A decisão de se divorciar estava tomada, mas demorou. “Naquela altura era uma tragédia, a primeira mulher dele levou 5 anos a dar-lhe o divórcio.” Enquanto o caso não se resolvia, e para que o casal se pudesse encontrar e passear, a profissão dava uma preciosa ajuda: “Olhe (larga e sonora gargalhada), era muito fácil, quem era piloto, vestia a farda e dizia que ia voar. E saíamos juntos. A coisa mais fácil que existe.” Saíam sempre de Lisboa, rumavam invariavelmente a sul, “para a costa Vicentina, Algarve”, onde José Marcelino exercia com grande afinco um dos hobbies preferidos: pescar.
Entretanto Maria Luiza saiu de casa dos pais, onde ainda vivia. Alugou um apartamento, e teve problemas, mas com a PIDE. “Naquela altura eu ganhava muito bem, em 1960 ganhava 7 contos, depois 10, 12 e cheguei aos 20. Então fui alugar uma casa mesmo ao pé da Embaixada de Espanha. Azar. A PIDE entrou-me em casa duas vezes, arrombou a porta, por acaso eu estava a voar, espiolharam-me a casa toda. Só por ser em frente à embaixada… Como eu viajava muito comprava livros que eram proibidos cá, roubaram-mos…” José Marcelino acabou por sair de casa da mulher, e mudou-se para o apartamento junto à embaixada espanhola.
Da casa de onde tinha Luiza saído chegavam outros problemas, os pais dela não encaravam da melhor maneira uma relação com um homem casado, mas aí entrou o Comandante. “Ele foi falar com os meus pais a dizer que morávamos juntos, mas que assim que fosse possível íamos casar. E cumpriu.”
José Marcelino conseguiu o divórcio, mas depois o casal teve de esperar mais algum tempo. “Antigamente fazia-se primeiro a separação de pessoas e bens, e depois tinha de esperar 10 meses. A explicação prendia-se com a possibilidade de a anterior mulher estar grávida. Perante a impossibilidade, e com a vontade de deixar também no papel marca do amor, Luiza Infante e José Marcelino casaram nos Estados Unidos da América. Foi em 1965. E porquê lá? “Porque era permitido (dá uma grande gargalhada)!”
No ano seguinte nasceu a única filha do casal, Maria José. E entretanto aproximava-se novamente um dia 11, mas desta feita de abril. Mais uma data histórica para os dois. Foi no dia de aniversário de Maria Luiza Infante que ela e José Marcelino casaram em Portugal, 11 de abril de 1967.
A união durou um pouco mais de 45 anos. No dia 19 de outubro de 2012 José Sequeira Marcelino morreu, aos 96 anos, no Hospital Militar, em Lisboa. Maria Luiza Vasconcelos Infante tem hoje 80 anos.