Quando, em 2006, toda a gente seguia blogues, comentava blogues, criava blogues, Ana Cássia Rebelo também quis ter um. “Ana de Amsterdam” (nome da canção de Chico Buarque) falava sobre o dia a dia, os filhos, o trabalho, o casamento. A linguagem até tinha umas piadas porque era esse registo leve que as pessoas procuravam. Mas Ana Cássia Rebelo, que nunca tinha escrito até ali, estava destinada a muito mais do que banalidades. Os seus textos, que já tinham um tom íntimo, diziam tudo o que não era suposto (em público) sobre sexualidade, depressão e maternidade, mas tudo aquilo em que muita gente se revia. As histórias transformaram-se em livro (com o mesmo nome do blogue) em 2015.
Seis anos mais tarde, as publicações fazem-se agora no Facebook e voltaram a dar origem a uma obra. Babilónia, publicado pela BookBuilders, está nas lojas desde 7 de setembro e tenta afastar-se um pouco da auto-ficção. Aninhas é agora a personagem principal e conta coisas que podem nem sempre representar Ana Cássia Rebelo. Ela pode ser aquela mulher ou muitas, pode ser cada uma de nós.
Jurista numa instituição pública, escreve apenas quando precisa de deitar alguma coisa cá para fora. Agora já pouco lhe importa o que pensam sobre os seus relatos amorosos ou confissões desbocadas, mas em 2015 ficou transtornada quando, no próprio trabalho, circulou um email com as partes supostamente mais escandalosas do livro. Ana Cássia Rebelo escreve as coisas como as sente e com conhecimento de causa e por isso é que os seus textos são, na mesma proporção, tão crus e chocantes como certeiros e incrivelmente poéticos.
Nasceu em Moçambique, cresceu com um pai salazarista e deixou-se fascinar pela emancipação de uma tia comunista. Queria ter sido peixeira ou florista, achava lindo todo aquele ambiente da Praça de Moscavide. Não foi nada disso, mas também é incapaz de se comparar aos “escritores a sério”. Quem ler o que ela tem para dizer, depressa vai discordar. Basta começar por esta entrevista dada ao Observador.
Comecemos por falar de Babilónia. O que é que muda em relação ao primeiro livro, que também reunia uma seleção de textos?
Ao contrário do primeiro livro, que é assumidamente um diário, este é uma tentativa de me desembaraçar de mim. Acho que não é totalmente conseguida porque há muitos textos biográficos e, mesmo aqueles que não são, partem muito daquilo que eu sou. Mas há a tentativa de escrever sobre outras mulheres, noutros contextos, noutros espaços, em eras diferentes. O primeiro livro resultou de uma recolha de textos que tinha no blogue [“Ana de Amsterdam”]. Entretanto terminei o blogue e passei a escrever no Facebook um bocadinho no mesmo registo. O segundo livro junta textos daí. Mas a grande diferença é que tentei não estar tão centrada naquilo que é a minha vida, os meus problemas, os assuntos que eram abordados no primeiro livro, a frustração sexual, a depressão, o peso da maternidade. Mas, olhando para o livro, vejo que continuo a estar muito presente ali.
Nota que quem a segue tenta distinguir o que é ficção do que é a Ana real?
Não sei se fazem isso, acho legítimo. Muitos dos textos do primeiro livro, muito por cobardia da minha parte, eram escritos na terceira pessoa apesar de falarem sobre mim. No prefácio escrito pelo João Pedro George ele assumia que aquilo era um registo completamente autobiográfico e tive uma amiga um bocadinho mais velha, cheia de boas intenções, que me disse: “Não assuma de uma forma tão clara que aquilo é a sua vida. Não se exponha assim”. Quando ela me disse aquilo, fez-se luz para mim. Pensei: quero assumir que sou eu, apesar de falar da dificuldade de cuidar dos filhos, de ser uma prisão — pode ser uma doce prisão, mas não deixa de ser uma e continua a condicionar a vida das mulheres. Vivemos um tempo de igualdade mas depois, na vida da maior parte das mulheres, não é bem assim. A maternidade continua a ser um peso muito grande e gera frustrações. Apesar de falar destes assuntos, de homens que conheço aqui ou ali, da depressão, de uma tentativa de suicídio, isso não me desvaloriza enquanto pessoa e enquanto mulher.
Pelo contrário. Assume aquilo de que muita gente tem vergonha.
Sim, não faz de mim pior mãe, pior pessoa. Se eu confessasse ali que era mentirosa, velhaca, egoísta, violenta, talvez. Agora, eu não confesso nada que não seja comum a muitas mulheres. Não sei se as pessoas andam à procura do que é real ou do que é ficção mas, quando falo de frigidez, é porque de facto sexualmente há coisas que comigo não funcionam, seja a sentir desejo, seja a atingir um orgasmo. Escrevo porque sei falar sobre isso. Se escrevo sobre depressão, é porque sou depressiva há muitos anos. Neste livro há uma novidade em relação ao outro, quando digo que, às vezes, quando os miúdos se deitam, em vez de escrever ou ver televisão, preciso de naquele silêncio beber três ou quatro copos de vinho, fumar uns cigarros. Isso é verdade, é isso que eu sou. Depois há quase uma militância, digo que estes assuntos se baseiam na minha vida porque são meus, mas também são de muitas mulheres que se identificam com eles.
Que temas é que continuam sem ser falados?
Há um pudor muito grande em relação ao que se passa dentro de uma casa. Uma casa e uma família podem ser um espaço de uma violência tremenda, frustração, tristeza, mas diz-se sempre que não temos nada a ver com aquilo que se passa na casa dos outros. E, portanto, vivemos sozinhos — e sozinhas — aquilo que é determinante nas nossas vidas. Para mim não faz sentido nenhum que continue a existir pudor em relação à sexualidade, aos problemas psicológicos, mesmo ao peso da maternidade. Vivemos num tempo em que nós, mulheres, trabalhamos exatamente o mesmo que um homem. Por exemplo, sou advogada, vou a um tribunal e as juízas são maioritariamente mulheres, as advogadas são mulheres, nas faculdades de direito ou medicina a maior parte das estudantes são mulheres e, portanto, fazemos aquilo que qualquer homem faz. Só que depois continuamos a acumular todos os outros assuntos.
As tais obrigações?
Exato, são as obrigações, mas quando digo isso, oiço: “Lá estás tu com as tuas conversas, os homens até vão ajudando”.
Essa palavra, “ajudar”, também é um problema, não é?
Pois é. Quando tive filhos com o meu marido, a decisão não foi minha, foi de ambos. Espero que os meus filhos, quando se casarem, vivam a maternidade de forma diferente. Mas nas mulheres de 40, 50 anos, continua a ser um peso muito grande. Sou muito exagerada, mas acho que, às mulheres de hoje em dia, se exige aquilo que nunca se exigiu na História da Humanidade a ninguém. Têm de lutar profissionalmente para estarem ao nível dos homens, terem uma dedicação exatamente igual àquela que os homens têm, e depois continuarem a ser mães. Elas é que sabem se os filhos precisam de cuecas ou de T-shirts, fazem máquinas de roupa, estendem roupa, elas é que falam com a empregada, se tiverem a sorte de a ter, para dar as indicações. Tudo isto esgota uma pessoa. Sei que há muitas mulheres que gostam de vestir o figurino da super mulher e da super mãe. Conseguem tudo, as vidas delas são extraordinárias, os filhos têm todos ótimas notas, mas acho que a vida não é assim. A minha, decididamente, não é assim. E quando dou a ler os meus textos, percebo que a vida da maioria também não é assim.
Não escreve a tempo inteiro. Tem colegas que certamente leem as suas histórias. Nota que alguns ficam incomodados ou estranham certas coisas?
Ah, sim, noto. Sou jurista num instituto público há muitos anos. Na altura em que saiu o primeiro livro — não dizia a ninguém que escrevia, era uma pessoa um bocado macambúzia —, lembro-me que correu um email anónimo com as partes mais picantes, onde se falava sobre sexo, masturbação, pornografia. Lembro-me de ficar muito incomodada com isso. Nunca soube quem é que se deu ao trabalho de ler e de fazer essa recolha. Fiquei irritada, mas depois não quis saber. Da mesma forma que esse email serviu para apontar o dedo, “olha aquela que passa ali no corredor e vai a estas horas buscar cafezinho, em casa dela faz isto”, também serviu para me aproximar de pessoas no sítio onde trabalho, pessoas das quais nem gostava particularmente, que leram e se identificaram.
Vai fazer alguma apresentação de Babilónia?
Não. Não é que não tenha disponibilidade, não me apetece fazê-lo.
Porquê?
Fez-se a recolha, o livro escreveu-se, saiu para as livrarias. Quem quiser ler, lê. A literatura é uma área como outra qualquer, percebo que um escritor tenha de se desdobrar em apresentações para promover um livro. Já eu, não vivo da escrita, tenho um ordenado que me permite pagar contas e depois publico um bocadinho por vaidade.
Depois o livro torna-se independente, faz o caminho dele?
Exato. E não tenho muita vontade nem de fazer apresentações nem de falar com as pessoas que leem. Com sessões de autógrafos também tive uma má experiência. Com o primeiro livro, fui para a Feira do Livro e estavam lá os escritores a sério, com aquelas filas de pessoas à espera. Da primeira vez que fui assinei um livro e da segunda não assinei nenhum. Portanto, para quê? Acho que não vale a pena.
A Ana nasceu em Moçambique em 1972. Tem memórias de lá?
Vivi lá até aos quatro anos. Depois deu-se o 25 de Abril e tivemos de voltar. Às vezes escrevo sobre essas memórias, mas são tão distantes que parecem sonhos. Só lá voltei uma vez por causa de trabalho. O meu pai e a minha mãe viveram lá grande parte da vida deles, o meu irmão mais velho [tem outra irmã, mais nova] tem memórias fortes desse tempo. Nos jantares de família é certo e sabido que, depois de o meu pai estar um bocadinho bebido e tal, a conversa vai sempre parar a Moçambique. O meu pai é goês e esse lado oriental também está muito presente. As raízes são uma coisa muito forte e desde que ele se aposentou voltou lá cada vez mais vezes e durante mais tempo. Agora, aos 87 anos, está lá oito meses, passa aqui o verão e pouco mais. Todos os anos tento ir com ele e a minha escrita também é muito marcada por Goa. Neste livro há muitos textos que partem de coisas que ocorreram lá.
O seu pai era salazarista, tinha uma tia comunista. Havia discussões constantemente. O que é que esse ambiente lhe provocava?
Essa tia era solteira e viveu connosco a partir do momento em que viemos de África para Lisboa. A minha tia Adélia sempre foi uma inspiração muito grande para mim e para a minha irmã. Lia, falava-nos de outras coisas, tinha vivido o 25 de Abril e era muito engajada politicamente. Depois tínhamos aquele pai salazarista, retornado, muito magoado com o que se tinha passado. Durante a minha infância e juventude tomei sempre o partido da minha tia e não tinha a capacidade de compreender porque é que o meu pai era violento às vezes, porque é que ele ficava tão irritado. Foi preciso crescer para perceber um lado e o outro. Mas lembro-me de ser pequena e de estar mais próxima da minha tia e de o meu pai dizer: “Ó Ana, tem de ler jornais de toda a espécie, de esquerda, de direita — ele comprava o ‘Tempo’ —, e depois tem de fazer a sua escolha. Tem de pensar sobre os assuntos”. Acho que isso é uma lição de vida muito importante, pensarmos pela nossa cabeça, ler.
Nessa altura já escrevia?
Nunca quis ser escritora. Quando era miúda queria ser peixeira.
Porquê?
Porque ia à praça de Moscavide com a minha mãe e adorava tudo aquilo. Então a banca da florista, achava lindo. Pensava: “Que bom um dia poder trabalhar num sítio assim”. Adorava o ambiente e a alegria. Acabei por ser jurista, mas decididamente nunca quis ser escritora. Só comecei a escrever quando criei o blogue [em 2006]. Foi uma altura da minha vida em que o casamento já ia por água abaixo, tinha três filhos pequenos, havia aquele peso da rotina do emprego. Naquela altura toda a gente tinha blogues e eu também decidi ter um.
Era uma espécie de terapia?
Sim, aliás o meu psiquiatra diz-me isso muitas vezes, que escrever me faz bem porque é uma forma de depois me ver ao espelho e de raciocinar de forma mais clara sobre as coisas.
A pandemia e os confinamentos mudaram a nossa realidade. Mudaram a forma como escreve?
Não senti isso. A minha escrita é muito irregular, escrevo quando sinto que preciso e posso estar um mês sem publicar nada e não sinto culpa. Acho que não me influenciou, acho que nem escrevi nada sobre a pandemia.
Tem um pai austero naquilo em que acredita, uma tia que estava mais à frente da geração dela, nos seus textos fala de coisas que ainda são tabu para muita gente. Um dos temas é a maternidade e todas as suas dificuldades. Que valores é que são mais importantes passar aos filhos?
Tenho uma rapariga, a Madalena (de 20 anos ), e dois rapazes, o João tem 23 e o Joaquim 13. Procurei educá-los da mesma maneira, incutir-lhes os mesmos valores, igualdade, respeito. Curiosamente, a minha filha tem uma visão muito parecida com a minha, enquanto mulher, e acho que eles não. Não sei se foi por terem uma mãe que no crescimento deles insistiu sempre em determinados assuntos, eles acham que sou uma feminista louca. “Lá está a mãe com os assuntos das mulheres”. Não sei se foi uma forma de eles se afirmarem enquanto pessoas, homens, são muito conservadores. Estão sempre a provocar-me com esses assuntos. Eu digo: “Tratei do jantar, agora arrumem vocês a cozinha”. Eles dizem: “Ó Madalena, vai tu que és rapariga”. Eu sei que fazem isso para me irritar. E irritam. Depois acabam por fazer mas acho que pequei um bocadinho por excesso.
Por tentar demasiado alertá-los para essas questões?
Sim, talvez. Mas também acho que nestas gerações mais novas as raparigas são muito diferentes. Eu costumo dizer-lhes: “As vossas mulheres, namoradas, não vão aceitar metade do que eu ainda aceitei”. Para nós, a igualdade estava no papel, mas continuámos a aceitar uma série de coisas. Às vezes para facilitar, para não arranjar problemas, porque é mais fácil fazer o jantar e deixar a cozinha arrumada do que o marido fazer o jantar e deixar a cozinha num caos absoluto. Acho que a geração mais nova de jovens mulheres já não vai aceitar isso. Não é só pela educação que demos aos nossos filhos, é também porque a sociedade mudou muito nos últimos anos. Detesto a palavra empoderamento, mas acho que esta geração mais nova é muito mais empoderada do que foi a minha.
Os seus filhos leem o que escreve?
Têm posturas muito diferentes. Quando o primeiro livro saiu, fiz uma apresentação e o meu filho mais velho, o João, que é o mais conservador, ouviu-me, ouviu a editora, mas no final disse-me: “Mãe, tenho muito orgulho em ti mas não me peças para vir mais. E eu não quero ler o que escreves”. Ele marca bem a fronteira, não lê porque é uma maneira de se proteger. A Madalena, pelo contrário, lê e identifica-se com muitas coisas. O mais novo nem tem noção, está mais interessado em jogar à bola e em “Fortnite”.
Escrever um romance está no futuro?
Gostava de ser capaz de escrever um romance, já tentei até. Quando o outro livro saiu, tinha escrito um romance curto, uma novela, que falava sobre uma geração de mulheres mais velhas, da minha mãe, da minha tia, dessas primeiras mulheres emancipadas. Mostrei-o a duas editoras e nenhuma delas ficou interessada. Talvez o livro seja uma grande porcaria. Por isso, gostava, mas talvez não tenha a disponibilidade e o fôlego necessário para escrevê-lo. Exige dedicação, silêncio, recolhimento. Acabo por escrever textos curtos porque é o que se coaduna com a minha vida.
Mas gostava de viver da escrita?
Idealmente, sim. Porque a escrita dá-me prazer e o meu trabalho, que desempenho da melhor maneira possível — é o que me paga as contas e me permite viver com algum desafogo —, é rotineiro, numa área de que não gosto, o Direito. Faço o melhor que posso e sei, mas é porque tem de ser.