O último ano da vida de Ana Paula Martins, ainda presidente do Hospital de Santa Maria, tem sido marcado por várias mudanças e desafios — uns bastante complexos e a envolver as mais altas figuras do Estado. Desde a polémica com uma farmacêutica para a qual trabalhou, até aos problemas na gestão interna no maior hospital do país, passando pelo caso das gémeas, pela demissão do cargo e, agora, pela entrada nas listas do PSD (num lugar que lhe dará entrada, pelo menos, na Assembleia da República), foram 12 meses, no mínimo, atribulados.
Escolha pessoal de Fernando Araújo (o diretor-executivo do SNS) para dirigir o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, Ana Paula Martins — e a respetiva equipa — assumiram funções a 1 de fevereiro de 2023, quase há um ano, substituindo a equipa de Daniel Ferro, o anterior presidente, cujo mandato tinha terminado há muito. A ex-bastonária dos farmacêuticos aceitou o lugar, sabendo que se adivinhavam dificuldades na gestão daquele que é, de longe, o maior hospital do país. Ainda antes de tomar posse, a sua atuação enquanto presidente do Santa Maria ficaria limitada devido à posição que Ana Paula Martins ocupava numa das maiores farmacêuticas do mundo: a Gilead.
Antes de tomar posse, um problema chamado Gilead
Quando a nomeação da ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos foi tornada pública, em dezembro de 2022, Ana Paula Martins ocupava o cargo de diretora dos Assuntos Governamentais em Portugal da Gilead, uma das maiores farmacêuticas do mundo (com grande presença nas áreas das infeções víricas, das hepatites e da oncologia) e à qual o CHULN comprava (e compra) muitos fármacos. No meio de um incompatibilidade flagrante — uma vez que foi presidir a um organismo que tem uma relação comercial com a empresa para a qual trabalhara — Ana Paula Martins só tinha um caminho: pedir escusa nas decisões que envolvessem as relações comerciais daquela instituição com a Gilead, como noticiou, à época, o Observador, que ouviu vários especialistas sobre este assunto. Para além da questão moral e ética, a escusa era também obrigatória à luz das regras plasmadas em dois documentos do próprio centro hospitalar: o Código de Conduta Ética e o Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas.
Ultrapassado o conflito de interesses, com o pedido de escusa em decisões que envolvessem a Gilead, Ana Paula Martins teria pela frente um ano de funções recheado de dossiers complexos: o fecho da maternidade do hospital e a instabilidade no serviço de Obstetrícia; a falta de capacidade de resposta no serviço de Urgência Geral; e a alegada cunha para as gémeas luso-brasileiras com atrofia muscular espinhal.
‘Guerra’ com o serviço de Obstetrícia acabou mal
Depois de uma primavera de 2023 relativamente tranquila, o verão trouxe a tensão em torno do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia. Com o encerramento da maternidade do Hospital de Santa Maria para obras, a partir de 1 de agosto, a administração decidiu estabelecer um protocolo com o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que previa que a urgência obstétrica e ginecológica passasse a funcionar no Hospital São Francisco Xavier, assim como a maternidade.
A decisão, que previa que os obstetras do Santa Maria se deslocassem para a parte ocidental da cidade, para preencher escalas na urgência do SFX, causou mal-estar interno no Santa Maria. Diogo Ayres de Campos, à época diretor do Serviço de Obstetrícia, e a diretora de Departamento, Luísa Pinto, foram os porta-vozes do desagrado que grassava entre os médicos. No final de junho, foram exonerados dos cargos. O Conselho de Administração do CHULN, presidido por Ana Paula Martins, justificou o afastamento com o facto de os médicos terem, “de forma reiterada, colocado em causa o projeto de obra e o processo colaborativo com o Hospital São Francisco Xavier, durante as obras da nova maternidade do HSM [Hospital Santa Maria]”.
Numa carta entregue à administração, uma larga maioria dos especialistas do departamento (34 em 37) explicava as razões pelas quais discordava do plano de colaboração. Os clínicos questionavam a capacidade do Hospital São Francisco Xavier para para receber todas as grávidas; alertavam para as dificuldades de deslocação das grávidas para a zona do Restelo; criticavam a coincidência de datas entre o início da obras (previsto para 1 de agosto) e a Jornada Mundial da Juventude e criticavam também a pressão a que foram sujeitos para assegurar a colaboração com o São Francisco Xavier.
Sob pressão, mas respaldada pela Direção Executiva do SNS, Ana Paula Martins não cedeu e o plano de obras e de transferência dos serviços avançou sem alterações. No entanto, as consequências não se fizeram esperar: ao Observador, tanto Diogo Ayres de Campos como o diretor interno do departamento, Alexandre Valentim Lourenço, admitiam que o mal-estar podia resultar na “desagregação das equipas”, o que veio a acontecer. As rescisões de especialistas foram-se sucedendo e, desde julho, saíram do Santa Maria sete médicos ginecologistas e obstetras. Um número que pode não parecer significativo, mas que tem impacto num serviço que já funcionava com carência de recursos humanos.
A saída de especialistas acabou, de resto, por contribuir para o fracasso da colaboração entre os dois hospitais. Quando o protocolo foi firmado, ficou definido que os especialistas do Santa Maria assegurariam metade das escalas das urgência de Ginecologia/Obstetrícia no São Francisco Xavier. Se, entre agosto e outubro, o Santa Maria foi cumprindo o estipulado (ainda que com equipas abaixo dos mínimos), a partir de novembro — um mês que o próprio diretor executivo do SNS antecipou que viesse a ser o “pior de sempre” no serviço público de saúde — começaram as falhas. Por diversas vezes, ao longo dos últimos dois meses de 2023, o São Francisco Xavier viu-se obrigado a fechar a urgência, sempre nos períodos em que as escalas eram da responsabilidade do Santa Maria.
A meio de dezembro, a Direção Executiva do SNS, que tinha delineado a colaboração, reuniu-se com os dois hospitais e decidiu que o protocolo não se estenderia para 2024, como noticiou o Observador. A 1 de janeiro, a urgência de Ginecologia reabriu no Santa Maria (juntando-se às consultas, cirurgias e exames ginecológicas que, mesmo durante as obras, nunca saíram daquele hospital), enquanto a urgência obstétrica e a maternidade se transferiram para o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.
Urgência geral sob pressão obrigou a medidas pouco habituais
Outro dossier complexo, por envolver a colaboração em rede entre os vários hospitais, foi a gestão dos fluxos à urgência geral do Hospital de Santa Maria, uma das mais procuradas do país.
Em outubro, quando as escusas dos médicos à realização de mais horas extraordinárias começaram a atingir em força a zona da Grande Lisboa — a que se somou o tradicional aumento da procura pós-verão –, vários hospitais periféricos da capital ficaram sem capacidade de resposta nas urgências e acionaram o mecanismo de desvio de doentes enviados pelo INEM — o chamado “desvio de CODU”. Por ser um hospital de fim de linha, Santa Maria é chamado a absorver o excesso de procura. Mas, a 6 de outubro, a afluência atingiu valores ingeríveis, obrigando o hospital a tomar uma decisão drástica: acionou o plano de contingência e avisou que não iria prestar cuidados a doentes não urgentes e não referenciados (pelo INEM ou pela linha SNS24) que viessem de fora da área de influência do hospital.
A 11 de janeiro, o Santa Maria voltou a acionar o plano de contingência, devido à sobrelotação do serviço de urgência, que tinha, há vários dias, dezenas de doentes a aguardar vaga para internamento. Para responder às necessidades destes doentes, a administração decidiu reduzir o número de cirurgias não urgentes — de modo a libertar camas para os casos agudos — numa decisão que já não se via, no maior hospital do país, desde o período da pandemia.
Em novembro, e quando nada o fazia prever, uma polémica com vários anos ‘rebentou’ nas mãos de Ana Paula Martins. Duas gémeas luso-brasileiras teriam beneficiado, em 2020, de um favorecimento no acesso, no Hospital de Santa Maria, ao fármaco mais caro do mundo à época, o Zolgensma, usado em doentes com Atrofia Muscular Espinhal. As crianças teriam viajado para Portugal com uma consulta já marcada na Unidade de Neuropediatria da unidade hospitalar.
Caso das gémeas: as referências a Marcelo e a carta desaparecida
As suspeitas de que aquele processo não correu os trâmites habituais viriam a confirmar-se: uma auditoria interna do CHULN revelou que, ao contrário das restantes crianças ali tratadas, as gémeas não foram referenciadas da forma normal (por outros hospitais ou instituições do SNS), mas sim através de uma chamada feita para o Departamento de Pediatria do Santa Maria pelo “Secretário de Estado da Saúde”. Embora o nome de António Lacerda Sales nunca seja referido, não restam dúvidas de que foi o ex-governante a pedir a consulta uma vez que era o único secretário de Estado à época (a outra secretária de Estado de Marta Temido era uma mulher, Jamila Madeira).
No entanto, o caso chegou ao conhecimento do Ministério da Saúde via Presidência da República, através de um email enviado pelo filho de Marcelo Rebelo de Sousa ao pai, dando conta da situação. Depois de algumas diligências, ainda não totalmente esclarecidas, a Presidência acabou por enviar o caso para o gabinete do primeiro-ministro, que o reencaminhou para a área governativa respetiva, neste caso, a Saúde. À TVI, que revelou o caso, o diretor da Unidade de Neuropediatria alegou que o Presidente da República teria influenciado a decisão do hospital de receber e tratar as gémeas. “O que corria nos corredores é que era por influência do Presidente da República”, disse António Levy Gomes. Sobre a alegada cunha interposta por Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Paula Martins disse ter conhecimento de que essa teoria circula no interior do hospital. “Sei que se fala nisso, mas sobre isso não tenho a mínima evidência”, sublinhou.
À época, os médicos da Unidade de Neuropediatria contestaram o tratamento concedido às gémeas, não só porque isso constituiria um favorecimento (uma vez que o hospital tinha muitos pedidos, bem mais antigos, de vários países para tratar crianças com a mesma doença), mas também porque as gémeas já estavam a ser tratadas no Brasil, como outro medicamento, que, embora de administração menos cómoda, era igualmente eficaz — o Nusinersen. A indignação dos neuropediatras foi expressa através de uma carta entregue ao, à época, diretor clínico do hospital, Luís Pinheiro. No entanto, a missiva, datada de novembro de 2019, desapareceu misteriosamente do arquivo da unidade hospitalar. “Não sei o que lhe poderá ter acontecido, [a carta] não está cá”, admitiu Ana Paula Martins, admitindo não ter nenhuma justificação para a carta não se encontrar nos registos do hospital.
Renúncia à gestão hospitalar coincide com a entrada no Parlamento
Menos de um ano depois de ter assumido funções como presidente do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Ana Paula Martins renunciou ao cargo. Em meados de Dezembro, o Observador noticiava que ex-bastonária dos farmacêuticos, e também professora universitária, não tinha aceitado ser reconduzida à frente da nova Unidade Local de Saúde de Santa Maria, o formato de organização dos cuidados que junta cuidados hospitalares e primários, e que foi generalizado a todo o país — substituindo, neste caso, o CHULN.
No último discurso público que fez antes de a decisão de renunciar ao cargo ser anunciada, por ocasião do 69º aniversário do CHULN, Ana Paula Martins considerava que o novo modelo das Unidades Locais de Saúde era “uma simplificação que pode destruir uma obra de décadas”. No entanto, esta segunda-feira, em entrevista ao Público, a presidente do Santa Maria esclarecia ser favorável à “aproximação entre os cuidados hospitalares e os cuidados primários”, embora discorde da aplicação do modelo aos hospitais universitários, como é o caso do Santa Maria.
“Um hospital universitário é muitíssimo diferenciado. Não pode e não deve ser financiado por capitação”, sublinhou Ana Paula Martins, avisando que esse modelo vai agravar o subfinanciamento, já crónico, da unidade hospitalar. “Com o modelo de financiamento por capitação, sem um financiamento significativo para a diferenciação e sem um programa de financiamento para medicamentos inovadores para oncologia e doenças raras, este hospital não sobrevive financeiramente”, realçou.
Ao Observador, fonte do hospital refere que a nova administração do Santa Maria, presidida pelo ex-secretário de Estado Carlos Martins, deve tomar posse entre a próxima semana e o início de fevereiro. A tempo de Ana Paula Martins deixar as funções na instituição e entrar na pré-campanha do PSD. A atual presidente do Hospital de Santa Maria tem lugar garantido como deputada na próxima legislatura (é terceira nas listas da Aliança Democrática pelo círculo de Lisboa, um lugar mais do que elegível) e é vista como ministeriável num futuro governo liderado pelo PSD, partido do qual já foi dirigente.
O Observador contactou (diretamente e através da assessoria de imprensa da ULS de Santa Maria) Ana Paula Martins, no sentido de fazer um balanço dos quase 12 meses de mandato e de perceber se a renúncia ao cargo está relacionada com a inclusão nas listas da Aliança Democrática à Assembleia da República, mas Ana Paula Martins não respondeu.