A presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte (CHULN), que integra o Hospital de Santa Maria, vai renunciar ao cargo para o qual foi nomeada há um ano, apurou o Observador e confirmou o CHULN, em comunicado. A decisão de Ana Paula Martins foi anunciada internamente ainda esta segunda-feira, sendo que o anúncio público será feito apenas em janeiro.

Em causa estará a discordância de Ana Paula Martins com o modelo das Unidades Locais de Saúde, que se vai generalizar a todo o país a partir do dia 1 de janeiro e substituir os centros hospitalares, juntando, sob um mesmo conselho de administração, cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários. No último discurso público que fez, na sexta-feira dia 8, por ocasião do 69ª aniversário do CHULN, a ex-bastonária dos farmacêuticos considerava o novo modelo “uma simplificação que pode destruir uma obra de décadas”.

Assim, dentro de 20 dias, o CHULN vai transformar-se na Unidade Local de Saúde de Santa Maria, e passar a integrar também o Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Norte e parte do Agrupamento de Centros de Saúde do Oeste, nomeadamente os centros de saúde do concelho de Mafra.

Direção executiva do SNS quer generalizar as Unidades Locais de Saúde, mas médicos garantem que modelo não é eficiente

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Em comunicado divulgado após a notícia do Observador, o centro hospitalar em que afirma que, “após profunda reflexão pessoal, a presidente do CHULN entende que o mandato para o qual tinha sido nomeada no início de 2023 se esgota com a extinção do Centro Hospitalar Lisboa Norte e a criação da ULS [Unidade Local de Saúde] e que não é elegível para dirigir este novo órgão”.

Quando foi convidada, no final do ano passado, Ana Paula Martins aceitou liderar o CHULN, numa altura em que a Direção Executiva do SNS ainda não tinha anunciado a intenção de generalizar o modelo das Unidades Locais de Saúde a todo o país. Perante a mudança de projeto, Ana Paula Martins terá decidido deixar a liderança do hospital, por discordar do modelo que, tendo em consideração as ULS já existentes, não mostrou ganhos de eficiência, como apontou, aliás, um estudo da Entidade Reguladora da Saúde.

O Observador contactou Ana Paula Martins, que remeteu esclarecimentos para o gabinete de comunicação do CHULN. Ao Observador, o gabinete de comunicação disse que o centro hospitalar não tem comentários a fazer sobre o assunto. Mas o Observador sabe que Ana Paula Martins anunciou a decisão esta segunda-feira aos restantes membros do Conselho de Administração do centro hospitalar. Só mais tarde, em janeiro, a saída será tornada pública.

Modelo das ULS é “uma simplificação que pode destruir uma obra de décadas”, disse Ana Paula Martins

A ex-bastonária dos farmacêuticos foi nomeada para presidente do Conselho de Administração do CHULN pelo Ministério da Saúde, sob proposta da Direção Executiva do SNS, a 6 de dezembro de 2022, e iniciou funções no dia 1 de fevereiro deste ano, substituindo Daniel Ferro. Com mandato até final de dezembro de 2025, Ana Paula Martins deixa assim o cargo menos de um ano depois de ter iniciado funções.

O Observador contactou a Direção Executiva do SNS, para perceber se está em curso um processo de nomeaação do próximo Conselho de Administração, mas não obteve resposta.

No último discurso público que fez, na sexta-feira dia 8, por ocasião do 69ª aniversário do CHULN, a primeira mulher a liderar este centro hospitalar já deixava subentendido que se aproximava um fim de um ciclo. “Não nos faltou a vontade, o apoio, a determinação. Não nos faltou a orientação estratégica, a ambição de reiniciar um ciclo económico-financeiro e assistencial virtuoso no CHULN”, disse Ana Paula Martins, revelando, nas entrelinhas, o motivo da saída. “Mas rapidamente percebemos que o tempo se extinguia e que os três anos de projeto para o qual fomos desafiados, convocados e estimulados teria uma outra configuração“, sublinhou.

“O modelo que agora se inicia [o modelo de Unidade Local de Saúde], pelos riscos e oportunidades que comporta, precisa por isso de quem acredite nele, de quem lhe empreste força, vontade, capacidade de juntar duas culturas diferentes na mesma gestão, mantendo a vocação que há 70 anos, enquanto país, quisemos projetar. Acreditamos que deve haver transformação, progresso e evolução. Mas na saúde, ecossistema complexo, o risco da simplificação pode destruir uma obra de décadas e uma visão para o futuro”, disse ainda Ana Paula Martins.

O CHULN sublinha, no comunicado, que “Ana Paula Martins nega categoricamente que na base desta decisão esteja qualquer discordância em relação à Direção Executiva do SNS, a quem agradece toda a cooperação institucional durante o seu mandato, que termina no final do presente ano”.

Nova presidente do Santa Maria impedida de decisões relacionadas com farmacêutica que mais fornece o hospital

Ana Paula Martins foi, durante quase 28 anos, professora da Faculdade de Farmácia de Universidade de Lisboa, e neste momento dá aulas na Universidade Europeia como professora catedrática convidada. Ocupou também o cargo de Bastonária da Ordem dos Famacêuticos durante seis anos, entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2022. No momento em que se soube que iria iniciar funções no Santa Maria, mantinha uma ligação a um dos principais fornecedores de fármacos do hospital, como diretora dos Assuntos Governamentais em Portugal da Gilead.

Hospital de Santa Maria fecha urgência a doentes não urgentes de fora da área por falta de capacidade de resposta

Nos pouco mais de dez meses que leva à frente do maior hospital do país, o Santa Maria, Ana Paula Martins já teve em mãos pelo menos três dossiers complexos: o fecho da maternidade do hospital e a instabilidade no serviço de Obstetrícia daí decorrente (e que levou à demissão do diretor de serviço Diogo Ayres de Campos e à saída de vários médicos do serviço); a falta de capacidade de resposta no serviço de Urgência Geral, e que levou o Santa Maria a ‘fechar a porta’ a doentes não urgentes provenientes de fora da área de influência do hospital; e a polémica em torno de uma alegada cunha para as gémeas luso-brasileiras com atrofia muscular espinhal, tratadas no Santa Maria com o medicamento mais caro do mundo, em 2020 — o hospital abriu uma auditoria, que ainda decorre, para esclarecer os contornos do acesso das crianças ao medicamento.