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“Noutro tempo, alimentava-me a doce Parténope, a mim,
Vergílio. Florescia dedicando-me a um ócio sem glórias,
eu que brinquei com poemas de pastores e, na audácia
da juventude, ó Títiro, te cantei à sombra de uma larga faia.”
— Geórgicas, Livro IV
Em abril de 2014, depois de aceitar o desafio de uma antiga professora de latim, Gabriel A. F. Silva, então com 25 anos, começou a traduzir as Geórgicas, aquele que é provavelmente o poema menos conhecido de Vergílio, o grande poeta latino. Cerca de dois anos depois, concluiu o projeto, que saiu recentemente em livro pela editora Cotovia. Há duas décadas que aquele que será o segundo poema de Vergílio não tinha direito a uma nova tradução em Portugal, talvez porque, de todas as obras do poeta, esta seja aquela que é menos apelativa — o tema é a agricultura, mas há muito mais do que nomes de plantas e espécies de animais nas Geórgicas, como explicou o responsável por esta nova edição ao Observador, durante uma entrevista sobre Vergílio, a literatura clássica e a importância de a conhecer.
Apesar de ter estudado literatura clássica na faculdade, Gabriel Silva nunca tinha lido as Geórgicas de uma ponta à outra até dar início ao processo de tradução. O tema não lhe interessava muito e, além disso, não o tinha estudado na faculdade — e “estudar uma coisa é sempre um bom motivo para a ler”, como o próprio admitiu. Hoje, contudo, admite que é um dos seus livros favoritos (ainda que, no que a Vergílio diz respeito, prefira as Bucólicas, que se encontra neste momento a traduzir). Talvez porque, naquela que será a segunda obra de Vergílio, cabe muito mais do que agricultura: “A agricultura é o glacé, é a parte de açúcar que está por cima; por baixo, há um mundo de coisas a explorar, seja aspetos sociais, religiosos, culturais ou o diálogo infinito que existe com outros poetas, não só gregos, mas também latinos. É um texto impressionante”, explicou ao Observador. É só preciso dar-lhe uma hipótese.
Aos 31 anos, Gabriel Silva é um caso raro em Portugal. Licenciado em Estudos Clássicos, uma área que poucos alunos recebe todos anos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, concluiu, no ano passado, o doutoramento em Literatura Latina, com foco em Vergílio. Apesar de ser um apaixonado pela literatura dos antigos romanos, Gabriel só a descobriu depois de entrar para a faculdade, para o curso de português-francês. Até então, sabia apenas alguns nomes, nomeadamente o de Homero, e nunca tinha lido nada “de uma ponta à outra”. Quando lhe foi dada essa possibilidade, mudou de curso. Depois disso, questionou-se várias vezes se o seu percurso teria sido diferente caso a literatura clássica lhe tivesse sido apresentada numa outra altura da vida.
O seu caso não é único, e Gabriel acredita que o problema está no plano curricular do ensino obrigatório, que não oferece aos alunos a possibilidade de lerem autores antigos. “Acima de tudo, é bom saber. É bom conhecer, e não conhecer apenas o nome”, defendeu o tradutor, que procura passar esse conhecimento aos seus alunos de latim. “Não penso que todos os meus alunos devam ser latinistas, helenistas, classicistas ou o que seja, mas a minha função é fazer com que conheçam as coisas. É dar a conhecer.”
Este é o primeiro livro que publica. Porquê começar logo por Vergílio, o maior poeta latino, e pelas Geórgicas?
Vergílio é um gosto que vem desde os tempos da licenciatura. Era um nome que conhecia quando andava na escola mas, até entrar para a faculdade, nunca tinha lido de uma ponta à outra, na íntegra, qualquer um dos três poemas maiores. Depois, [já na faculdade], andei sempre com Vergílio para trás e para a frente, mais com a Eneida, por causa das disciplinas que tinha, mas também com as Bucólicas, que era o meu conjunto de poemas preferido. [É] muito bonitinho, muito simples, muito simpático. As Geórgicas eram uma espécie de parente longínquo que sabia que existia, em que de vez em quando pegava, mas que nunca tinha lido de uma ponta à outra, também por um preconceito que tinha em relação a poesia do campo. É [um poema] muito árido, não me dizia muito e não lhe pegava muito. E também não o estudávamos. Estudar uma coisa é sempre um bom motivo para a ler. Um dia, em dezembro de 2013, estava num jantar com amigos, colegas, professores, um grupo grande, e uma antiga professora de literatura latina e também de latim, Ana Maria Lóio, lançou-me o desafio.
Na altura, ela era diretora de uma das áreas do Centro de Estudos Clássicos da faculdade [de Letras da Universidade de Lisboa] e um dos projetos do centro para um determinado período era traduzir as obras completas de Vergílio, portanto, as Bucólicas, as Geórgicas e a Eneida. Ela perguntou-me se não queria fazer a tradução das Geórgicas e, na altura, mais ou menos inconscientemente, disse que sim, que fazia. Comecei no ano seguinte, na Páscoa de 2014, em abril. Demorou mais ou menos dois anos a fazer. É um texto que não é fácil de entrar, não é uma coisa de amor imediato, mas vamos entrando nele e fica. Agora, é um dos meus livros [favoritos], não só porque o traduzi e porque felizmente está publicado, mas porque me apaixonei por ele. Volta e meia recorro a ele para uma série de coisas, porque é muito útil, de facto.
O tema das Geórgicas é a agricultura, o que, à partida, não entusiasma muito possíveis leitores.
Exato, e toda a gente me diz isso. Quando acabei a tradução e a imprimi para ter uma noção de conjunto, mostrei-a a uma pessoa que me disse que tinha ideia de que [o livro] era maior. Se calhar porque, por vezes, é muito aborrecido [risos], então dá a ideia de que nunca mais acaba. Mas a agricultura é o tema aparente, digamos assim. É o pretexto. Como escrevi na introdução, esta obra nasceu num contexto de revoluções sociais em Roma. A simplicidade do campo surge como uma reforma que se pretende para a época, levada a cabo por Octaviano [filho adotivo de Júlio César e seu herdeiro legítimo], que viria a ser Augusto. A agricultura é o glacé, é a parte de açúcar que está por cima; por baixo, há um mundo de coisas a explorar, seja aspetos sociais, religiosos, culturais ou o diálogo infinito que existe com outros poetas, não só gregos, mas também latinos. É um texto impressionante. E depois há o conhecimento brutal de árvores, de animais e de diferentes espécies.
Escreveu na introdução que o melhor exemplo das verdadeiras intenções de Vergílio é a história de Orfeu e Eurídice, que surge no Livro IV, que é o último.
O Livro IV é a cereja no topo do bolo. As Geórgicas são um texto que custa traduzir por causa da questão técnica, mas depois, quando já estamos quase a morrer de exaustão, aparece o Livro IV, que é uma lufada de ar fresco. Penso que nem se devia começar a traduzir pelo Livro IV, que é para uma pessoa ganhar ânimo para o resto.
Esse epyllion — uma palavra grega que quer dizer “epicazinha” — de Orfeu e Eurídice surge como uma alegoria para explicar outros fenómenos, outras coisas. [No poema, Vergílio conta que] as abelhas de Aristeu [apicultor e pastor, filho de Apolo e da ninfa Cirene] estavam a morrer porque ele estava a ser perseguido pelas ninfas por causa de um crime que cometeu — foi por culpa dele que Eurídice [uma dríade, mulher de Orfeu] morreu, mordida por uma serpente, então tem de apaziguar as ninfas. Tem de fazer a paz com as ninfas, estabelecer a pax nympharum. A mãe [Cirene] ensina-lhe as técnicas que deve usar para que as abelhas possam renascer. Esta “paz das ninfas” é, no fundo, a paz dos deuses, a harmonia entre o homem e a divindade que se pretende para a sociedade romana que estava fragmentada por causa das lutas [que se seguiram ao assassinato de Júlio César, em 44 a.C.]. Esperava-se que tudo voltasse a estar em harmonia. Esse é um dos principais objetivos das reformas que Octaviano começa a pôr em prática quando se assume como princeps. Em português, [a palavra] deu origem a “príncipe”, mas ali era usada no sentido de “primeiro”, de “o principal”. A “paz das ninfas” que Aristeu deve conseguir pode ser passada para a sociedade romana de então.
O mito de Orfeu e Eurídice é um dos mais famosos da Antiguidade Clássica. Ficou muito conhecido na versão de outro poeta latino, Ovídio.
Ovídio inspirou-se também em Vergílio. Num dos poemas da Appendix Vergiliana [que se acreditava reunir os poemas da juventude de Vergílio], há um chamado “Culex”, que quer dizer “mosquito”. É também um epyllion, e esse episódio volta a aparecer. Tanto que há quem diga que aquele “Culex” é de facto Vergílio e que o episódio de Orfeu e Eurídice foi um ensaio para uma coisa posterior que viria a ser as Geórgicas. Não creio.
Porque é que Vergílio recorreu a esse mito? Por que é que não escolheu outro?
Uma das coisas que os poetas faziam era utilizar as versões menos conhecidas dos mitos que eram conhecidos de toda a gente. É uma coisa muito alexandrina, que começou com [o poeta grego] Calímaco e outros. Os mitos tinham várias versões. Geralmente conhecemos a mais consensual, mas os mitos são um problema, um labirinto com várias encruzilhadas, e os poetas recorriam às versões mais rebuscadas para mostrar a sua erudição, que eram pessoas que liam, que conheciam. Vergílio poderá ter usado Orfeu e Eurídice para ligar a Aristeu e ao mundo das abelhas [o Livro IV é dedicado ao mel, considerado divino porque se dizia que as abelhas recolhiam o orvalho do céu]. Poderá ser uma das razões. É uma questão que é passível de discussão, sempre foi e sempre há-de ser. Acho que ninguém tem a veleidade de encontrar a solução. São problemas que são debatidos desde sempre, há mil, dois mil anos. Muitos dos contemporâneos de Vergílio — e estamos a falar dos séculos I a.C. e I d.C. — já levantavam essas questões. Se já as levantavam 200 anos depois de Vergílio, muito mais se levantam agora. O que temos são hipóteses.
O poema termina com essa história, mas de forma um pouco brusca. Há algum motivo para isso?
Quando a mãe de Aristeu lhe está a ensinar o ritual que ele deve fazer para que as abelhas possam renascer das vísceras de um boi, ela diz-lhe para ele fazer isto, isto e isto, e, logo a seguir, o poeta diz que Orfeu fez isto, isto e isto. É uma repetição. Ele pegou no que tinha escrito em cima e colou em baixo, quase como um copy paste. Poucos versos depois, o poema acaba. De facto, quando estava a terminar a tradução, senti isso. Pensei: “Isto está a ir demasiado rápido. Não sei se é por já estar muito perto do fim, de estar quase a tocar no areal”. No Livro IV, Vergílio diz que, se não estivesse já com constrangimentos de tempo, falaria sobre jardins. Estaria a ser alvo de pressão para começar a escrever a Eneida? Não se sabe. Se admitirmos que as Geórgicas foram publicadas em 29 a.C. e que, logo a seguir, Vergílio começou a escrever a Eneida, podemos ver aqui uma espécie de incitamento para que largasse uma e começasse a outra. Nesta altura, não havia ainda um poema épico que celebrasse o regime augustano.
Sabe-se porque é que Vergílio escolheu a agricultura para abordar as questões sociais e políticas de que falou há pouco? Podia certamente ter escolhido outra temática. A Eneida também tem um subtexto político, ainda que numa outra escala.
Essa é uma pergunta que, creio eu, não pode ter uma resposta óbvia. Pensa-se que tenha sido um pedido de Mecenas, que pediu a Vergílio para escrever sobre este assunto. Mecenas era um dos homens fortes do regime, era o braço direito de Octaviano. À partida, podemos apontar esta como uma das razões. O poema é dedicado a Mecenas.
É logo referido nos primeiros versos.
Exato. E até nos primeiros versos dos vários Livros e ao longo do texto. É sempre referido em momentos programáticos — ou seja, em momentos específicos. Não é uma coisa metida ali [num verso qualquer], é sempre no início, no meio ou no fim de um Livro. E a mesma coisa se passa com Octaviano. Assim, as Geórgicas nascem, em parte, de um pedido ou de um suposto pedido que foi feito ao poeta. Não sabemos até que ponto é que podemos confiar nas palavras de Vergílio.
Mas sabe-se com certeza da ligação a Mecenas.
Sim, claramente. Aliás, era uma ligação bastante forte.
Era um grande patrono das artes.
Era um dos [patronos que existiam em Roma], mas o nome principal que ficou foi o dele.
De tal forma que ainda hoje o usamos.
Sim, para falar de “mecenato” ou de “ser mecenas de alguém”.
No fundo, o que ele fazia era oferecer meios de subsistência aos poetas para que não tivessem de fazer mais nada além de escrever. Ou seja, dava-lhes tudo o que precisavam para que vivessem confortavelmente e a sua única função fosse escrever.
Ou seja, apesar de o associarmos sobretudo com o período do Renascimento, o conceito de mecenato não surgiu aí. É muito anterior.
Sim, e não era o único apoio que existia. Muitas vezes, os poetas agrupavam-se em círculos poéticos onde recitavam as suas obras. Quando estavam a preparar um poema ou um trabalho, liam-no aos seus pares, digamos assim, numa espécie de tertúlia [literária]. Tanto que Propércio, um poeta ligeiramente posterior a Vergílio, escreveu numa elegia que, quando ouviu as primeiras partes da Eneida, disse: “Está a nascer qualquer coisa maior do que a Ilíada” [de Homero]. Essa opinião terá nascido numa dessas leituras feitas nas recitationes, nos círculos poéticos, onde Mecenas era um dos principais [participantes]. Havia também Asínio Polião, e estes são os nomes que conhecemos.
As Geórgicas, o trabalho do meio, e a Eneida, o poema que Vergílio mandou queimar
Falámos nas Bucólicas, um primeiro trabalho, e na Eneida, a grande obra de Vergílio. Em que lugar da carreira literária do poeta se situam as Geórgicas?
É um trabalho de transição. Isto se considerarmos que só existem estes três, porque há um outro conjunto de poemas, chamado Appendix Vergiliana.
Que terão sido os primeiros trabalhos de Vergílio.
Sim, os trabalhos da juventude do poeta, digamos assim. Os biógrafos dizem que foram escritos quando ele tinha 16, 20 anos, mas hoje em dia já quase ninguém acredita que sejam de Vergílio. À exceção de um poemazinho.
Porquê?
Por motivos métricos, literários e estilísticos. Muitas vezes há uma influência forte de autores posteriores a Vergílio, que escreveram obras quando o poeta já tinha morrido. Nesse caso, por uma questão temporal, não se pode considerar [a hipótese de terem sido escritos por ele]. Muito deles são considerados como sendo de Vergílio desde a antiguidade por causa do estilo. Quem os escrevia, queria assimilar o seu estilo ou fazer-se passar por ele.
Mas as Geórgicas são, de facto, um trabalho de transição. Há aqui a questão dos três estilos. Cada uma das obras de Vergílio encaixar-se-ia num — as Bucólicas no estilo mais simples, mais humilde; as Geórgicas no estilo médio, retórico; e a Eneida no estilo solene da épica. Houve uma gradação [no trabalho do poeta] e as Geórgicas estão a meio caminho — não estão no estilo humilde das Bucólicas porque, traduzindo os dois, até mais do que lendo, percebe-se que o próprio latim das Geórgicas é muito mais complexo do que o das Bucólicas, mas não tem o mesmo estilo do da Eneida. Ou seja, não fala de heróis, não fala de combates, não fala de Roma. Quer dizer, fala, mas de uma outra maneira. As Geórgicas são um poema que está claramente a meio de uma carreira poética interrompida precocemente, porque ele morreu bastante cedo [teria 50 anos].
Mas deixou a Eneida.
Mas não a deixou pronta. Se acreditarmos mais uma vez nas lendas dos biógrafos, Vergílio mandou queimar a Eneida se alguma coisa lhe acontecesse e não a conseguisse terminar. Perto de estar acabada, partiu para a Grécia para ver com os próprios olhos muitos dos locais que tinha descrito, para dar assim uma última demão, imagino eu. No regresso, encontrou-se com Augusto e adoeceu enquanto visitava a cidade de Corinto. Depois foi adoecendo mais e mais, até que morreu quando chegou a Itália. Supostamente foi sepultado em Nápoles. Claro que Augusto não deixou que a Eneida fosse queimada e, acreditando mais uma vez nos biógrafos, pediu a dois poetas amigos de Vergílio que a terminassem. Ou seja, temos os 12 cantos, mas não houve uma última revisão do poeta.
Isso quer dizer que a Eneida teve a mão de outros poetas?
Isso já é especulação [risos], como praticamente tudo nos clássicos. O problema das biografias, neste caso das de Vergílio, que tem várias, é que não sabemos o que é verdade e o que é fantasia. São muitas vezes lendas, mitos, que se foram contando e que ficaram.
Os autores dessas biografias eram contemporâneos de Vergílio?
Não, são autores posteriores. Não temos uma biografia escrita [por um contemporâneo] por Horácio, por exemplo, que conviveu com Vergílio e que era seu amigo. Temos de pôr ou não a mão no fogo e ver no que é que acreditamos ou não. Normalmente usam-se os biógrafos — e nesta introdução citei-os algumas vezes — para complementar uma informação. Se se acredita ou não, isso depende de cada um e dos estudos e das leituras que se fazem.
Mas há coisas em que podemos acreditar, penso eu. Há um biógrafo de Vergílio, Donato, que diz que, quando as Bucólicas foram publicadas, o êxito foi de tal maneira grande que foram representadas em teatro. E penso: por que não acreditar nisto? Porque, de facto, são muito boas e estão escritas de forma a poderem ser representadas. Muitas delas são protagonizadas por duas pessoas, há um diálogo e podiam perfeitamente constituir uma representação. Coisas assim, desse género, não me doem em acreditar. Outras talvez seja mais difícil.
Falou na publicação das Bucólicas. O que é que significava publicar uma obra nesta altura?
Na literatura clássica temos um problema, temos, primeiro que tudo, um problema: os textos que temos hoje não são aqueles que saíram da pena dos seus autores. O que aqui está é o resultado de séculos e séculos e séculos de transmissão textual. Quando traduzimos um texto, temos duas hipóteses: pegamos na edição crítica e assumimo-la como está, traduzimos o texto e esquecemos todos os mil problemas de transmissão textual, ou fazemos uma coisa mais rigorosa — mas que não é o que se pretende numa tradução generalista para um público mais generalizado –, que é traduzir tendo em conta as mil variantes textuais que determinado passo tem ou os seus problemas. O que fiz foi pegar na edição crítica e assumir que aquele era o texto [original].
No que diz respeito ao próprio poeta, é preciso ter noção de que os manuscritos mais antigos de Vergílio são do século IV ou V d.C.. Existe uma distância de quatro ou cinco séculos entre o original e aqueles manuscritos. Dentro desse período de tempo, não temos nada. Que alterações podem ter sido feitas? Como se trata de poesia, não se pode “inventar” tanto, porque a métrica não o permite. Se há uma palavra que estraga o hexâmetro, percebe-se logo que aquilo não pode ser original, porque o poeta não daria aquele erro. Em relação ao trabalho de edição, sabemos que, a partir de determinada altura, os poetas em Roma tinham noção do que era organizar um livro, que havia um poema que tinha de ser o primeiro, outro que tinha de ser o do meio e que aquele ia ser o do fim, mesmo que o primeiro não tivesse sido o primeiro a ser escrito. Por exemplo, nas Bucólicas existe a noção de organização dos poemas dentro do livro. Não se limitavam a escrever e depois alguém punha aquilo numa obra.
Dar a conhecer uma literatura que “não é nada obsoleta”
Temos estado a falar de um poema sobre agricultura que foi escrito há mais de dois mil anos. Porque é que ainda vale a pena lê-lo?
Acima de tudo, é bom saber. É bom conhecer, e não conhecer apenas o nome. “Vergílio escreveu as Geórgicas.” “E depois? Leste as Geórgicas? Não? Então vai ler!” É a velha questão: o saber não ocupa lugar. Não tem de ser o livro de cabeceira das pessoas, mas é importante conhecê-lo. Leio muitas coisas com as quais não vou andar para o resto da minha vida, mas conheço-as e, se for preciso falar sobre elas, falo. O problema dos Estudos Clássicos em Portugal é que não se conhece. Falo por mim. Quando tinha 17, 18 anos, não conhecia. Conhecia nomes — conhecia o nome de Homero, tinha lido o Ulisses da Maria Alberta Menéres na escola como toda a gente da minha faixa etária, mas não conhecia mais do que isso. Não conhecia a tragédia grega, não tinha lido comédia latina…
Acha que a literatura clássica faz falta no currículo do ensino obrigatório?
Acho, mas não é preciso ler Calímaco na escola.
E a Eneida?
A Eneida deve ler-se. Não toda, mas partes. Obrigo os meus alunos a ler algumas coisas grandes. Obrigo, quer dizer, mais ou menos [risos]. Não digo que na escola seja preciso ler [poetas como] Nicandro, Calímaco ou Lucrécio. Se calhar um bocadinho de Lucrécio não faz mal a ninguém [risos], mas é essencial ler uma tragédia grega. Não chegaram muitas [até aos dias de hoje], mas não é preciso ler todas. É só ler uma para ter noção do enquadramento e já não se estar no vazio quando se chega à faculdade. Quem vai estudar literatura e não só. Lembro-me da primeira aula de Literatura Latina I a que assisti. Na altura era uma disciplina de terceiro ano e eu, que estava no primeiro, fui lá parar por confusões na secretaria. Era com essa professora, Ana Maria Lóio. Era uma turma ótima de terceiro ano, com um nível de latim alto e de grego também. A professora viu-me entrar [e deve ter pensado] “coitadinho, quem é esta pessoa que nunca vi na vida”. Fiquei lá, no meu canto, a assistir à aula. As aulas tinham começado há um mês, e cheguei fora de enquadramento. Ela começou a escrever coisas em grego no quadro e pensei: “Que gente é esta?”. Ainda estava no curso de português-francês, não estava em clássicas. Depois começou a falar de Catulo. Catulo para aqui, Catulo para ali, e eu pensei: “Quem são vocês? O que é que vocês me querem dizer?” [risos]. Porquê? Obviamente que não tinha de saber grego, mas não sabia quem era Catulo. Se o conseguisse situar porque o tinha lido antes, porque alguém mo tinha mostrado, saberia que era um poeta do século I a.C., que viveu em Roma, que escreveu de determinada forma. Nem era preciso ter lido os 100 e tal poemas dele, era só saber isto.
Só precisava de ter tido uma apresentação.
Exato, ter tomado um café primeiro [risos]. Não digo que, na escola, seja vital ir ao pormenor da questão, mas é preciso dar a conhecer. Quando se estuda Os Lusíadas, é vital falar de Vergílio, da Eneida. Nem sei como é que é possível ensinar Os Lusíadas sem o fazer. Haverá quem o faça, mas [o seu estudo] fica incompleto. E um miúdo do liceu, ouvindo falar na Eneida, não poderia ter curiosidade em saber mais sobre isso? Abria-se uma porta. Nem toda a gente tem de ser classicista, helenista ou latinista, até porque o mercado de trabalho em Portugal não consegue absorver tanta gente assim, mas, primeiro que tudo, é uma questão de curiosidade. Muitas vezes esse conhecimento parece estar escondido. Quem o deve transmitir, nem sempre o faz. Isto falando no nível mais elementar da educação.
No ano passado, li Séneca com os meus alunos. Aliás, vimos Ovídio, Propércio e Horácio no primeiro período, a Eneida no segundo e Séneca no terceiro. A Eneida foi mais ou menos consensual, toda a gente gostou.
Que idade têm os seus alunos?
Estes têm 15, 16 anos. São alunos de liceu, no colégio em Lisboa.
O latim é opcional?
No 10.º ano, sim, é opcional.
Costuma ter muitos inscritos?
No ano passado, a maior turma que tive tinha 26 alunos. Era uma turma perfeitamente razoável.
No primeiro período, achava que toda a gente ia adorar Ovídio, Propércio e Horácio, porque gosto mais e falava com um entusiasmo gigante — acho eu. No final do ano, pedi que fizessem um balanço e dissessem o que tinham achado daquelas coisas todas. A grande parte dos meus alunos disse que não gostou muito dos poetas do início do ano, mas que tinha gostado de Séneca, quando achava que ninguém ia gostar de Séneca, da filosofia histórica, do rigor. No fim, todos gostaram muito mais e disseram que foi porque se identificaram. Podiam pegar em coisas e transpor para a sua vida, enquanto Ovídio e Propércio pouco lhe diziam. O que importa é que eles ficaram a conhecer aquele conjunto de nomes e, sobretudo, leram. No futuro, têm essa bagagem.
Acha que, se tivesse tido essa introdução no secundário, tinha ido logo para Estudos Clássicos quando entrou na faculdade?
Já pensei muitas vezes nisso, e talvez [tivesse ido]. A verdade é que quando os clássicos me foram apresentados, mudei. Sei porque é que mudei, mas não sei se quando tinha 14, 15 ou 16 anos tinha maturidade suficiente para querer fazer uma licenciatura só de clássicas. Porque há sempre aquelas mil questões do emprego, do mercado de trabalho, disto não ter saída…
Existe essa questão em qualquer curso de literatura.
Sim, mas há um preconceito especial em relação à literatura clássica, porque é demasiado específica. A literatura portuguesa, apesar de tudo, estuda-se, vê-se na televisão e há pessoas com nome que se dedicam a ela. Para os clássicos também começa a haver. Temos o professor Frederico Lourenço que está bastante presente e que está a ajudar muito [na divulgação dos Estudos Clássicos]. Fui bombardeado diariamente com esta questão da empregabilidade durante anos e anos. Acho que fui bombardeado com isso até começar a dar aulas. Quando finalmente arranjei um trabalho, deixaram de me dizer o que quer que fosse [risos]. Por isso, não sei se mudaria… Há pouco tempo, antes de o ano acabar, uma aluna disse-me que já tinha decidido o que ia fazer no futuro, na faculdade, apesar de ainda só ir para o 11.º ano. Disse-me que gostava muito de fazer uma coisa relacionada com clássicos. E eu pensei: “Já ganhei!” [risos]. E é isto — não penso que todos os meus alunos devam ser latinistas, helenistas, classicistas ou o que seja, mas a minha função é fazer com que conheçam as coisas. É dar a conhecer.
Acha que é por isso que se deve ler literatura clássica? Para se conhecer?
Sim. Depois o gosto virá naturalmente. Não sei se tenho uma visão meio idealizada da coisa, ou meio romântica…
Muita gente se deve questionar o que ganhará em ler um autor que viveu antes de Cristo nascer.
Mas depois, ao ler um autor tão antigo, vai reconhecer a sua atualidade. Vai ler Vergílio e vai reconhecer Camões, vai ler Horácio e vai reconhecer Fernando Pessoa, etc., e isso vai tocar-lhe. Não é uma coisa estranha, longínqua, que está atrás do sol-posto. E depois é como puxar um cordelinho — vêm outros atrás e, quando uma pessoa dá por isso, já não consegue sair. Já está enredado nesse mundo da literatura clássica. Depois, claro, cada cabeça é uma cabeça, cada pessoa terá a sua sensibilidade para escolher mais ou menos. Depende de cada um. A mim, os nomes não me chegam. Quero sempre ler e saber mais. Aqueles comentários de que falava há bocado não são literatura, não são um romance, não são para ler duas páginas antes de ir dormir, mas, a mim, agrada-me muito a sua leitura, como se fossem livros normais, porque quero saber mais. Gosto de saber mais sobre as coisas. E depois aproveito isso para as minhas aulas.
Quando se estuda literatura, chega-se rapidamente à conclusão que os problemas colocados pelos autores foram sempre os mesmos. Desde sempre.
Os problemas, os temas, os tópicos.
As pessoas que viveram no tempo de Vergílio — e até o próprio Vergílio — não eram assim tão diferentes de nós.
Daí a famosa atualidade dos clássicos, de Vergílio, de Horácio, ou seja, de autores que trataram da condição humana. As tragédias de Séneca são uma fortuna imensa a onde foram beber autores como Brecht. Quem crê que não temos nada a ver com essas pessoas, desengane-se, porque temos muito. Há aquela famosa frase que diz que não inventámos nada, que já está tudo inventado. À exceção da Internet e essas coisas todas, claro. Não é literatura obsoleta. Há duas certezas [na vida] — a morte e que esta literatura não é nada obsoleta [risos].
Mas nota-se a marca do tempo.
Claro que sim. Vergílio não escreveu que Orfeu apanhou o autocarro e foi ter com a Eurídice. Nada disso. São épocas diferentes, mas o fundo é o mesmo.
E o que é que se segue às Geórgicas? As Bucólicas?
Sim, sim.
Disse isso com um grande sorriso.
As Bucólicas são uma vontade já muito antiga. Estou mesmo, mesmo a acabar a edição. A tradução está feita, a introdução também. [Fiz] uma introduçãozinha para cada um dos poemas, falta fazer algumas notas de rodapé e falta completar o glossário final, no mesmo estilo do das Geórgicas. Foi também um pedido, uma vontade da Fernanda [Mira Barros, editora] da Cotovia que, em muito boa hora, me lançou esse segundo desafio. Tinha as Bucólicas na gaveta há já alguns anos, desde a mesma altura que as Geórgicas, e foi muito bom [que isso tivesse acontecido] porque pude olhar para elas com distanciamento, com a coisa de deixar na gaveta e depois ir lá buscar para ver se está mesmo bem feito ou não, como Horácio e Catulo diziam. E algumas coisas não estavam. Foi bom reler [a tradução], poder limar, poder melhorar. Mesmo depois de publicadas, haverá muitas coisas para melhorar. Mas em algum momento é preciso acabar.
As Geórgicas e as Bucólicas não tinham uma nova tradução há muito tempo.
A última tradução das Geórgicas, se não estou em erro, foi feita por Agostinho da Silva, que também traduziu as Bucólicas e a Eneida. Das Bucólicas, a mais recente é da Verbo, traduzida nos anos 90 pela professora Maria Isabel Rebelo Gonçalves, que já está reformada mas que também era da Faculdade de Letras [de Lisboa]. Houve pessoas que me perguntaram porque é que estava a traduzir as Bucólicas se já havia uma. Primeiro, não há nada que diga que é crime haver traduções do mesmo texto. É verdade que o mercado é reduzido, sobretudo para esta literatura, mas isso acontece porque as pessoas não a conhecem, não lhe dão valor e por isso não a compram! Mas não vejo porque é que não pode haver duas traduções do mesmo tempo. Passaram 20 anos entre uma e outra. As coisas mudaram, o estilo de tradução é outro…
E certamente que surgiram novos estudos.
Sim, por isso não me choca nada. Se, daqui a uns anos, alguém fizer uma tradução das Geórgicas, ótimo. Depois haveremos de as comparar e, oxalá, eu possa aprender com essa pessoa e que ela possa aprender alguma coisa comigo também.
E a Eneida? Sei que já há uma tradução, feita também por professores da Faculdade de Letras.
Exatamente, foram todos meus professores.
Mas é em prosa.
É uma boa tradução, é a que uso com os meus alunos. Gostava muito de a traduzir, de facto gostava. Ficava com os três irmãozinhos, como se costuma dizer.
Faz falta uma tradução em verso…
Gostava muito de fazer. Aliás, o meu doutoramento foi também sobre a Eneida, sobre o Livro IV. Vamos ver! Agora façamos as Bucólicas. Vou ficar com dois terços de Vergílio traduzido. Depois, logo se vê, até porque a Eneida requer um tempo e uma disponibilidade que as Bucólicas não pedem. Pedem toda a seriedade do mundo, obviamente, mas a Eneida é maior, mais complexa. O diálogo literário é muitíssimo maior.
E o próprio latim é mais complicado.
Exatamente, exatamente. Aliás, quando às vezes penso em traduzir a Eneida, penso logo em comprar aqueles comentários todos maravilhosos para ler [risos]. Porque não é só fazer a tradução. Quer seja para publicar ou não, não há nada que me impeça de pegar no livro e começar a traduzi-lo, mas quero saber mais sobre aqueles textos, sobre aqueles escritos. Quem sabe se, um dia, daqui a quatro ou cinco anos não falamos [risos].