Enquanto a vacina não chega para, essa sim, salvar o mundo da pandemia da Covid-19, é preciso tratar os doentes e mitigar ao máximo os efeitos que a doença tem neles. E todas as descobertas nesse sentido são mais do que bem-vindas. As mais recentes foram os anticorpos monoclonais — um possível primeiro passo para o tratamento e cura dos infetados, por ser um exército pronto a atuar contra a infeção. Israel e Holanda anunciaram no início desta semana que os tinham descoberto.
Num estudo publicado na revista Nature Communications na segunda-feira, um grupo de investigadores da Universidade de Utrecht, do Centro Médico Erasmus e da Harbour BioMed, na Holanda, disse ter conseguido interromper a infeção da Covid-19 em laboratório. O presidente da HBM, Jingsong Wang acredita que esta descoberta pode “ajudar a responder a esta necessidade urgente de saúde pública”. No dia seguinte, o Instituto de Israel para a Investigação Biotecnológica, do Ministério da Defesa, anunciou ter também desenvolvido um anticorpo que “o ataca o vírus de forma monoclonal”. O ministro da Defesa de Israel, Naftali Benet, referiu-se mesmo a esta investigação como “uma grande conquista”.
Afinal, que significados práticos têm estas descobertas? O que é, desde logo, um anticorpo monoclonal? Irá permitir tratar doentes ou curá-los? E todos podemos recebê-los? O Observador falou com dois virologistas e um médico infecciologista e juntou respostas a cinco perguntas.
1Afinal, o que é um anticorpo monoclonal?
É “um anticorpo como outro qualquer”, começa por definir o virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), Celso Cunha. “Simplesmente, é feito num laboratório a partir de células que produzem só um tipo específico de anticorpo”, detalha em declarações ao Observador.
Mas, antes disso, o que é “um anticorpo como outro qualquer”? No corpo humano existem “milhões e milhões de células que produzem todas elas anticorpos diferentes e específicos” que nos defendem de “coisas diferentes”. É como se o corpo humano tivesse um exército com “milhões e milhões” de soldados — cada um deles capaz de nos proteger contra um inimigo diferente. “Na nossa corrente sanguínea temos uma panóplia de anticorpos contra desde as poeiras do ar, para as pessoas alérgicas, a outros vírus“, explica Celso Cunha.
E como é que eles fazem isso? “Quando um corpo estranho entra no nosso organismo, o que acontece é que ele vai estimular uma dessas células — que está a produzir um anticorpo específico — a ligar-se a esse corpo estranho e a neutralizá-lo. Quando há essa ligação, há um mecanismo molecular que faz com que essa célula específica se comece a dividir muito rapidamente. Ou seja, vamos ter muitas células a produzir anticorpos contra aquela coisa específica que entrou dentro de nós “, acrescenta o virologista. Estas células vão, assim, “prevalecer em relação à outras”, criando, no fundo, uma grande muralha contra o inimigo, que impede que o vírus se ligue às células e crie uma infeção. No melhor cenário, esta espécie de barreira acabará por eliminar o vírus, seja ele qual for.
Os anticorpos monoclonais têm exatamente esta função, simplesmente são todos iguais: só reconhecem especificamente uma conformação especial de uma proteína — neste caso, a proteína viral da SARS-CoV-2 (o vírus que provoca a doença Covid-19). E são criados em laboratório — uma espécie de anticorpos artificiais — através de “um clone de células únicas e todas e iguais” que vão produzir “um único tipo de anticorpo” que, neste caso, irá reconhecer especificamente este novo coronavírus, acrescenta Celso Cunha. E chamam-se monoclonais porque “são clones de um anticorpo natural, que é produzido pelo nosso sistema imunitário”, explica o médico infecciologista Francisco Antunes, ao Observador.
É como se fossem soldados todos iguais, treinados para identificar e lutar especificamente um determinado inimigo. O que significa que este anticorpo monoclonal contra o coronavírus “não vai funcionar para todos os vírus de classes diferentes ou contra as bactérias”, alerta Francisco Antunes, acrescentando que não são “novidade”: “Já há muitos anos se utiliza para combater as células cancerígenas”, exemplifica. A novidade aqui é são anticorpos monoclonais contra o novo coronavírus, responsável pela pandemia.
2Anticorpos monoclonais podem ser administrados aos doentes?
Sem tirar nem pôr: é exatamente esse o objetivo. “Pode-se produzir grandes quantidades [de anticorpos monoclonais contra o novo coronavírus] em laboratório e administrar passivamente às pessoas, diretamente na veia“, resume Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular (IMM), ao Observador. “É como se fosse possível proceder a uma imunização passiva em que este anticorpo é injetado e bloqueia precisamente a proteína de superfície do vírus que se vai ligar ao recetor que temos nas células do alvéolo pulmonar”, diz ainda o infecciologista Francisco Antunes. Na prática, cria a tal barreira, que impede a infeção respiratória.
A partir daí, estão a tratar os doentes. “A ideia é precisamente essa: que aumentem as possibilidades de uma pessoa lutar contra a infeção“, explica o virologista Celso Cunha. Isto porque é precisamente a disseminação do vírus que causa quadros graves da doença e até a morte de algumas pessoas. “Esta barreira que o anticorpo monoclonal coloca entre o vírus e o recetor da célula pulmonar provoca um bloqueio da infeção”, diz ainda Francisco Antunes.
3 Isso não é o que já acontece com o plasma de doentes curados?
Em vários países, incluindo Portugal, já começou ou está a começar a ser aplicada a estratégia de tratar infetados com plasma sanguíneo de doentes já curados. No fundo, esse tratamento consiste na transferência do plasma rico em anticorpos contra o SARS-CoV-2, produzidos pelos organismo de pessoas que já recuperaram da doença, para os doentes infetados pelo vírus. Só que o plasma é também composto por água, proteínas, hormonas, minerais, nutrientes e milhares de anticorpos que de pouco valem no combate ao novo coronavírus, porque são destinados a outros vírus. “O que nós vamos dar [ao administrar anticorpos monoclonais] é uma quantidade muito homogénea de um anticorpo que é específico para ali, para aquele vírus”, acrescenta o virologista Celso Cunha. É essa a diferença entre um tratamento e outro.
No entanto, não deixa de ser uma ferramenta muito vantajosa no combate à pandemia, mais não seja porque já está disponível e vai começar a ser aplicada em Portugal já este mês — enquanto que os anticorpos monoclonais só agora foram descobertos. “Se o plasma for compatível do doador para o recetor, se não houver problemas de rejeição, pegamos no plasma de um dador que já esteve doente e que tem anticorpos e podemos administrar numa pessoa doente, aumentando a possibilidade de lutar com sucesso contra a vírus”, acrescenta Celso Cunha.
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4 Mas o corpo humano não tem já anticorpos? Para que são precisos mais?
Claro que tem. Quando uma pessoa fica infetada com o novo coronavírus (ou qualquer outro vírus) começa logo a combatê-lo, naturalmente, produzindo anticorpos. “O nosso organismo está preparado para isso. Se não estivesse, morríamos logo“, aponta Celso Cunha, acrescentando: “O que nós fazemos é dar à pessoas mais anticorpos e fazer com que tenha uma maior concentração deles. É como se estivéssemos a aumentar o exército, o número de soldados”.
O problema é a falta de tempo. “Naquele contexto de infeção, em que é tudo muito rápido, as pessoas não têm tempo para o fazer ou estão debilitadas. Não conseguem produzir os anticorpos a tempo”, diz o virologista do IMM, Pedro Simas, ao Observador.
Assim, os anticorpos monoclonais são uma ajuda grande e mais uma maneira de neutralizar o vírus. Uma vez administrados, começam logo a atuar. Mais: podem ser administrados mais do que uma vez se for necessário, conforme a evolução da doença, explica o virologista Celso Cunha, alertando que serão precisos, primeiro, ensaios clínicos para, depois, se saber que quantidade se vai dar a cada doente.
Isso garante a cura a qualquer infetado? “Eventualmente sim. Em alguns casos sim, noutros não”, responde Celso Cunha. Isso vai depender da reação de cada pessoa, como já depende com outras terapias. “Há pessoas que são mais recetivas a determinado tipo de tratamentos do que outros e não sabemos bem porquê. Por exemplo, à hidroxicloroquina, ao Remdesivir, etc. Há outras pessoas que são assintomáticas, há outras que têm reações muito graves e que morrem”, conclui.
5 E se dermos anticorpos monoclonais à população inteira?
Não faz sentido — os anticorpos monoclonais não são vacinas e “é muito dificil usá-los de uma forma profilática”, diz Pedro Simas. Porquê? Porque “eles não duram muito tempo no corpo e torna-se ineficiente“, acrescenta.
Neste sentido, “os anticorpos que nós produzimos numa infeção, por Covid-19, por gripe ou por outra doença, conferem-nos alguma proteção durante algum tempo. Os monoclonais também impedem a infeção. Simplesmente não vão permanecer no corpo durante muito tempo. Os outros, criados naturalmente, são produzidos por células que vão lá ficar com a memória. E, quando houver uma nova infeção, já é mais fácil combatê-la”, explica o virologista Celso Cunha.
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Daí que a receita para salvar o mundo da pandemia seja a vacina — que, “no fim de contas, é uma parte ou toda a proteína viral, ou o vírus completo”, diz Celso Cunha. Isto porque a vacina vai “provocar uma resposta do nosso sistema imunitário, das nossas células, contra aquilo que entrou no nosso corpo e que reconheceu como estranho” — no fundo, vai fazer com que o corpo crie naturalmente os tais soldados que, por enquanto, são criados em laboratório. “Essas células vão ficar com memória daquilo que viram e, quando alguém for infetado a sério, essas células já estão melhor preparadas para responder contra a infeção”, conclui o virologista do IHMM.
O problema, lembra o infecciologista Franciso Antunes, é que a vacina “leva anos” e a produção e distribuição de anticorpos “leva apenas alguns meses“. “É um processo até lá.”