O livro começou a ser planeado há sete anos por três professores de literatura da Faculdade de Letras de Lisboa — António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen — e tem sido motivo de debate desde que foi apresentado, a 14 de outubro. Talvez não pudesse ser de outra maneira. O Cânone, assim se intitula, propõe uma lista decisiva dos autores mais relevantes da literatura portuguesa, do século XV até à década de 1990, e a exclusão de nomes está a acender paixões entre leigos e especialistas.
Por que ficou de fora Sophia de Mello Breyner Andresen? E Eugénio de Andrade? Ou Nuno Bragança, Urbano Tavares Rodrigues, a Marquesa de Alorna, Francisco Manuel de Melo ou João de Barros? Um dos organizadores dá esclarecimentos ao Observador, sobre um livro que logo na introdução avisa que “não é um repositório exaustivo”, pelo que “não vale a pensa procurar nele o cânone da literatura portuguesa”.
Em entrevista, António M. Feijó, especialista em Teoria da Literatura e doutor em Literatura Inglesa e Americana pela Universidade de Brown (1985), considera que “a exclusão não quer dizer que não se reconheça mérito ao nome” excluído. Sublinha que só deve criticar as ausências quem se dê ao trabalho de perceber a “lógica das inclusões e a estrutura do livro”. Perante o desfiar de nomes possíveis, responde que se trata de “um jogo interessante”, mas “quase um jogo de sociedade”, tão aleatório quanto lançar um dado ao tabuleiro.
Com chancela da Tinta da China e patrocínio da Fundação Cupertino de Miranda (aliás, mentora do projeto), O Cânone é um livro de capa dura e 533 páginas. trata 51 autores através de pequenos ensaios dos organizadores e de outros críticos e académicos convidados. Luís de Camões e Fernando Pessoa têm maior destaque que todos os outros. Constam Agustina Bessa-Luís, Alexandre O’Neill, Almeida Garrett, Cesário Verde, Eça de Queirós, Florbela Espanca, Herberto Helder, José Saramago, Mário Cesariny, Miguel Torga, Sá de Miranda e Vitorino Nemésio, entre outros.
Dos 51 escolhidos, há nove do sexo feminino (considerando como um só nome As Três Marias: Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa). Dos 26 ensaístas, também nove são mulheres. Além disso constam 13 textos sobre temas genéricos: lírica medieval, poetas laureados, críticos e até um sobre escritores considerados homossexuais.
Ao longo de quase duas horas de conversa, António M. Feijó — que é também pró-reitor da Universidade de Lisboa, presidente do Conselho Geral Independente da RTP e administrador não-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian — adotou um tom descontraído e partilhou pacientemente os seus pontos de vista. Revelou uma visão mordaz acerca da polémica que rodeia o livro. Há um “tropel de cave” e um regatear de “migalhas simbólicas”, porque “as pessoas” se agarram “a coisas cuja importância real é relativamente reduzida”. Afinal o cânone é apenas ironia?
Pensaram noutros títulos ou O Cânone estava decidido desde o início?
Realmente, houve outra hipótese. Um de nós [os organizadores], ao andar na Baixa Pombalina, a certa altura vira uma esquina e vê uma inscrição do tempo da reconstrução pós-Terramoto onde se lê “Primeira Divisão do Lado Ocidental”. Chegámos a pensar que poderia ser um título. Era para brincarmos com o livro do [Harold] Bloom que se chama The Western Canon [O Cânone Ocidental].
Porque é que essa hipótese caiu?
Um de nós estava a folhear números antigos de O Tempo e o Modo, à procura de outras coisas não relacionadas com o livro, e encontrou um texto do jovem Manuel Gusmão, quando seria ainda estudante, e ele inseria essa citação: “Primeira Divisão do Lado Ocidental”. Decidimos deixar a frase onde primeiro apareceu. Como estávamos à procura de título, alguém disse que poderia ser apenas O Cânone. Pode parecer perentório, demasiado assertivo. Parece ter uma pretensão demasiado exaustiva, ou pelo menos ter um lado perentório por parte de quem escolhe, dizendo que este é “o” cânone.
E não estão a dizer isso?
Sim e não. O livro consiste em 64 ensaios que cobrem conceitos como “Portugal” ou “poetas laureados”, o que coexiste com os nomes próprios dos autores que tratámos. Decidimos fazer ensaios curtos, de seis, sete páginas, em que alguém tenta totalizar, de modo conciso, o que lhe parece interessante sobre um universo necessariamente amplo.
De modo conciso e opinativo.
E opinativo. Era crucial: que os ensaios não pretendessem dar a opinião generalizada sobre o tópico, mas uma noção particular do que aquele ensaísta entende. Não quer dizer que um ensaio de seis, sete páginas seja tarefa fácil, pelo contrário. É como sorver o Pacífico por uma palhinha, como na expressão que costumo usar com os meus alunos. É preciso sintetizar o que entende ser a particularidade ou a descrição mais precisa, é um desafio.
Os organizadores têm noção de que estão a determinar uma norma que não é reconhecida por todos e que isso é polémico, certo?
A noção de uma norma que não seja reconhecida por todos é um paradoxo, porque em princípio, se fosse algo normativo, teria de ter a aquiescência de todos. Não pretendemos isso. Um leitor inteligente poderá, a partir do que lê neste livro, libertar um argumento implícito que nós nem reconhecemos qual seja. Fizemos as escolhas com relativa desenvoltura, pensando que estes são os nomes que poderiam aqui estar, ressalvando sempre, até entre nós, que muitos outros poderiam cá estar. Houve diferenças de sensibilidade entre os três editores. Num projeto da natureza deste, o conjunto de nomes escolhido não tem o perímetro de um estado americano cortado em linha reta no mapa. Isto é muito mais como o limite de uma omelete, menos preciso ou impositivo. Parte da escolha de quem faz. Por um lado, não declinamos a responsabilidade na escolha. Por outro, poderia haver mais nomes, decerto, se fosse uma coisa em vários volumes ou um curso curricular para cadeiras universitárias, mas não era nisso que estávamos interessados. Olhando para o volume concluído, há possibilidade de deduzir algum argumento implícito, como já disse.
Que argumento?
Uma pessoa fez-nos notar que em relação ao século XIX e XX há muitas descrições possíveis. A partir do momento em que alguém aparece com um número necessariamente reduzido de nomes, isso causa ansiedade nas pessoas. Há quem tenha imensas opiniões sem sequer ter lido. Ter imensas opiniões, aliás relutantes, revela essa ansiedade. O século XX tem alguma preeminência aqui, como disse um colega meu, não porque a literatura portuguesa tenha tido um florescimento tardio, mas por uma razão estatística, quantitativa: há muito mais autores no século XX devido à proliferação da edição, etc.
E porque estamos perto do século XX. Se estivéssemos no século XIX o cânone talvez desse mais atenção a autores do século XVIII.
Claro, claro.
Como chegaram à lista final de nomes? Houve discussões acesas?
Por razões profissionais, os editores têm uma regularidade de encontros, têm afinidades intelectuais. Somos amigos há muitos anos.
São os três professores na Faculdade de Letras de Lisboa.
Sim, embora referir isso, e faz sentido referi-lo porque é um facto, não signifique que haja um espírito de escola por detrás do livro. Não estou nada certo de que outros professores da Faculdade de Letras não tivessem um entendimento radicalmente diferente do que devesse ser a escolha ou a estrutura.
De Camões às Três Marias: estes são os nomes que fazem parte do cânone da literatura portuguesa
Estes três agregaram-se por terem uma amizade? Não foi por proposta da editora ou da Fundação Cupertino de Miranda?
Somos amigos, mas o determinante e quase exclusivo neste contexto foi a afinidade intelectual. A Fundação Cupertino de Miranda fez-nos uma encomenda dupla, de dois projetos conexos. Primeiro, uma exposição permanente de literatura portuguesa, cujos conteúdos e conceção nos foi pedida. O projeto começou há cerca de sete anos. Ao mesmo tempo, encomendaram-nos um livro sobre literatura portuguesa, que é este, e aí decidimos fazer uma série de ensaios curtos. Aliás, na conceção tentámos tornar a estrutura interessante para o leitor. Há três ensaios iniciais: o primeiro é sobre a noção de cânone, o segundo é sobre Luís de Camões e o terceiro é sobre Fernando Pessoa. Pareceu-nos que Camões e Pessoa têm uma centralidade na literatura portuguesa que excede a de qualquer outro nome, pelo que requeriam atenção especial. No fim do livro, temos a mesma estrutura, mas em ordem inversa: Pessoa, Camões e um ensaio sobre o cânone. O primeiro e último são exposições conceptuais escritas por dois dos editores e são bem diferentes entre si na aproximação ao conceito cânone. Não organizámos os autores por ordem cronológica, porque há estereótipos enfatizados pelas histórias literárias e pelos currículos do ensino secundário e universitário, lugares-comuns que as pessoas assumem: agora vem o romantismo, agora o modernismo… Categorias que acabam por ser grandes espantalhos teóricos. A ordem alfabética desconcerta isso, porque coisas de um tempo radicalmente diferente podem estar ao lado de outras, isto se o leitor ler o livro sequencialmente, o que pode não fazer.
Porquê a ordem alfabética do primeiro nome e não do apelido, como se usa nos meios académicos?
Uma razão apenas utilitária: assim o leitor sabe imediatamente aonde se dirigir. Se fosse pelo apelido, teria de fazer algum cálculo.
Houve discussões acesas ou não?
Acho que foi muito pacífico.
Tinham uma lista inicial? Que nomes ficaram de fora?
Alguns ficaram de fora. Chegámos a encomendar ensaios a outras pessoas, que depois não incluímos por razões de estrutura e amplitude do projeto.
Quer dar um exemplo?
Um completamente inesperado. Aliás, era um ensaio muito interessante. Pedimos a uma pessoa que respeitamos muito, Luís Prista, que é também editor pessoano, um ensaio sobre Teófilo Braga, porque o Teófilo é o grande historiador da literatura na passagem do século XIX para o XX. Depois percebemos que a coerência do volume ficava afetada por alguma excentricidade. Houve razões de vária natureza.
Sophia de Mello Breyner, que não tem capítulo autónomo embora seja referida no livro, foi um desses nomes inicialmente pensados?
Falar de nomes que ficaram de fora tem um lado ingrato, porque a exclusão não quer dizer que não se reconheça mérito ao nome. A centralidade atual da Sophia na cultura portuguesa é imensa, porque tem desde logo um acolhimento institucional massivo. Estas questões são curiosas. Portugal parece ter ainda uma noção muito alta do que é a literatura, embora isso coexista com uma ausência de leitura real.
Noção muito alta da literatura é acharmos que ser escritor é uma coisa muito importante e que a grande ficção só está ao alcance de uma elite intelectual?
Sim e não. Portugal tem uma espécie de obsessão com a imagem de Portugal. Comentadores na televisão discutem sobre a morte de pessoas, como por exemplo se tem visto durante a crise [do coronavírus], e uma das primeiras considerações que fazem é “isto é mau para a imagem de Portugal”. Os mortos aparecem depois. Esta obsessão com a imagem é decisiva para a oligarquia, para a nomenclatura. Desse ponto de vista, a Sophia tem um acolhimento institucional muito forte. Mas atenção: não é nada que lamentemos, apenas constatamos. Em Portugal há uma deferência particular em relação à literatura, é uma coisa que acontece em países pequenos. Em países de maior dimensão, com culturas mais intensas ou vibráteis, a literatura não tem tanta importância, não é tão necessária à autodefinição do país. Não estão tão obsessivamente dedicados a uma auto-descrição de si mesmos através de nomes prestigiados. Por isso, as discussões em relação a este livro, prévias à leitura dele, foram muito intensas, ao que parece até nas redes sociais. Este tropel de cave tem a ver com isso — estou a usar a expressão de um escritor checo, que quando falava da Checoslováquia dizia que tudo se transformava em pequena guerra civil. As pessoas agarram-se a coisas cuja importância real, no sentido da vida das pessoas, é relativamente reduzida. São migalhas simbólicas e há um mundo pequeno à volta dessas migalhas.
Voltando à Sophia…
A Sophia tem um prestígio institucional e cultural em Portugal completamente estabelecido e fundado. Não questionamos isso, é um facto. É citada em vários ensaios do livro e em partes importantes de alguns.
Mas porque é que não teve direito a um capítulo autónomo?
Volto ao ponto inicial. Na escolha que fizemos assumimos que há um argumento implícito na escolha destes nomes, que se calhar explica a sua coerência. Um nome pode ser excêntrico a essa coerência sem que estejamos a contestar que possa ser invocado noutro contexto, de modo muito forte. É este o caso. O Miguel Tamen escreve no último ensaio que uma lista pode ser prospetiva ou retrospetiva. Uma lista prospetiva é a lista de compras, aquilo que vou comprar daqui a umas horas ou uns dias. Uma lista retrospetiva é o que temos aqui. Um cânone, diz o Miguel Tamen, é exclusivamente retrospetivo. Ele entende que a natureza prospetiva do cânone, a sua robustez futura, não está assegurada. Ninguém faz ideia de qual vai ser o cânone daqui a 50 anos.
Essa é uma das razões pelas quais só têm autores mortos?
Exatamente. Escrevo no livro que em Portugal se fala muito de cânone, mas se aparece um livro com esse título é sempre motivo de grande agitação na capoeira, através de um falar muito peculiar. Com o lado esquerdo da boca, as pessoas falam da noção de cânone, de quem está nessas listas, do livro do Bloom, etc. Compram teorias vindas do exterior, segundo as quais o cânone tem uma lógica conspirativa; por exemplo, de natureza insidiosa ou patriarcal. “Escolhem estes nomes porque a cultura patriarcal secular privilegiou homens.”
Pelo menos duas ensaístas no livro defendem essa teoria.
Com certeza. Aliás, a liberdade dos ensaístas foi total. Mas há pessoas muito ferozes em relação à noção de cânone. Depois, pelo canto direito da boca, a proposta de alteração de nomes do cânone é muito, muito pequena. Ou seja, há quem tente, às vezes com êxito, repor mulheres na história da literatura portuguesa, até no Barroco português, para tentar reconfigurar o cânone. Acho esse movimento completamente justificado. Por exemplo, incluir Irene Lisboa, um nome maior do século XX. Mas as alterações no cânone são muito poucas. Ou seja, fala-se com tanta ferocidade sobre a noção de cânone e depois a implicação prática dessa reflexão é nula, é mansamente insurrecional.
Porquê?
O Reagan tinha a teoria trickle-down economics, as coisas vêm em cascata. Nos EUA, o debate sobre cânone foi de uma ferocidade total nas últimas décadas, por razões políticas muito precisas, mas as alterações práticas no cânone também foram muito intensas. Houve uma violenta redistribuição de nomes. O D.H. Lawrence, que parecia inamovível, desapareceu dos currículos do ensino universitário, que reproduzem o cânone. Lá há uma adequação conceptual às implicações práticas. Por razões estritamente políticas.
Políticas no sentido da afirmação de identidades e de grupos sociais?
Exatamente, e de minorias, etc. Faz parte de uma luta política em que um grupo, que se federa, quer mentores, quer ver-se replicado em figuras que de algum modo representam orgulho próprio.
Em Portugal o estabelecimento do cânone literário não tem essa natureza política?
Não. E não estou a fazer um juízo de valor, estou a constar uma diferença. As diferenças na sociedade portuguesa passam abaixo do radar. Ora, importamos um discurso teórico e conceptual, que é adversarial, sobre a noção de cânone e adotamo-lo — há referências ao cânone no jornalismo literário, na academia, etc. —, mas depois não decorre daí nenhuma consequência prática. A taxa de mudança do elenco de nomes é quase nula.
Anna Klobucka e Cláudia Pasos Alonso falam dessa rasura histórica das mulheres e apresentam uma proposta prática de alteração, dão nomes.
Uma é professora na Universidade de Massachussets Dartmouth e a outra em Oxford. Não quer dizer que defender a inclusão de literatura feita por mulheres seja uma coisa que só possa ser feita, em relação à literatura portuguesa, por expatriados ou lusitanistas. Seria injusto para as investigadoras portuguesas que o fazem há anos.
Está a dizer-nos que a Sophia não consta porque os organizadores do livro não quiseram ceder a critérios políticos?
Não é isso. No que descrevi agora não estava a pensar na Sophia. É um nome entronizado na cultura portuguesa.
Então é um nome canónico, por isso é que muita gente acha que deveria estar num livro chamado O Cânone.
O livro não está a reconhecer os juízos canónicos feitos. O livro tem muito mais a ver com os nomes que, fazendo parte da tradição, da sequência de textos, nos parecem a nós por razões de vária natureza, constituir uma série coerente. Qual o critério de coerência? O que torna um autor digno de acolhimento no cânone, ou não? O que é que faz Shakespeare ser central no cânone da literatura inglesa? Um autor do século XVII diz que o que faz um autor ser admirado é a sua cooptação por pares. São outros autores, contemporâneos ou seguintes, e alguns críticos fortes e influentes que olham e têm a convicção de que aquele autor faz parte da série e articula um modo expressivo inédito e singular.
Logo, para os organizadores deste livro, Sophia não é inédita e singular. Será isso?
Não digo isso. Sophia é uma poeta importante.
Eugénio de Andrade também ficou de fora. Lobo Antunes também.
Lobo Antunes nunca poderia entrar, só autores mortos é que estão.
Apesar de haver um ensaio sobre as Três Marias e uma delas, Maria Teresa Horta, estar viva.
Duas delas já morreram, infelizmente, mas neste caso a razão da inclusão foi diferente. A literatura portuguesa fora de Portugal é um objeto diferente do banho de exaltação continuada. Lá fora os nomes da literatura portuguesa que têm acolhimento são Pessoa, Camões, Saramago, Lobo Antunes e As Três Marias. O texto de As Três Marias [Novas Cartas Portuguesas, 1972] quebrou qualquer fronteira que Portugal tivesse. pela singularidade, pela conjuntura, pelo brilho que tinha.
E por critérios políticos?
Sim, mas reconhecemos aqui não só esses critérios políticos, mas também uma implicação muito mais ampla, de cultura literária, de construção de um posicionamento das autoras em relação à literatura.
E a Marquesa de Alorna?
Podia perfeitamente estar. Começar a dizer o que poderia estar ou não é um jogo interessante, mas torna-se quase um jogo de sociedade.
Mas como é que aquilo que não está poderia não ser motivo de conversa?
Claro que a inclusão é a determinação de que alguma coisa está, e traz associada a exclusão. Portanto, a partir da inclusão podemos falar da exclusão, num exercício infinito. Mas o que acho interessante, num crítico que faça uma crítica séria, é eventualmente falar das exclusões, mas só o deve fazer, penso eu, depois de ter delineada a lógica das inclusões e a estrutura do livro. Tem de analisar à luz das inclusões, ou seja, das determinações. O conjunto tem uma lógica. Qual é? E depois jogar isso contra as exclusões. Agora, se alguém contesta as exclusões, e o Miguel Tamen já disse isto, deve apresentar uma proposta alternativa e argumentar contra as escolhas feitas.
A editora fez notar que os nomes “não representam nenhum consenso”. Parece haver um jogo de toca e foge. Ao mesmo tempo que se chama O Cânone, o livro parece querer libertar-se desse peso. É um livro da regra, mas parece não querer ser visto como a regra. Concorda?
O cânone pode ser visto, do ponto de vista plástico, como o corpo perfeito, como O Homem de Vitrúvio, com a anatomia perfeita. Aí o cânone tem a noção de medida, de padrão. Um livro que se apresenta como o cânone está a apresentar uma medida, mas a medida é articulada em parte nos ensaios que descrevem e analisam a noção de cânone. A partir do momento em que o cânone é estabelecido, tem uma coercividade. Isso acontece no cânone religioso. O fiel subscreve um conjunto de textos religiosos. Um programa do ensino secundário também tem uma natureza coerciva: “Estes são os textos que o aluno tem que ler.” Ora, aqui não há coercividade. Não temos capacidade coerciva nenhuma, nem interesse coercivo nenhum. Absolutamente nenhum.
Qual é então a validade de estabelecer um cânone literário?
É a discussão conceptual e informada. Se deixarmos de lado as noções de autoridade, estamos a dizer “sentemo-nos e discutamos isto”. A autoridade aqui só decorre da força conceptual do que se faz e diz. Essa autoridade não se impõe, mas essa eu reivindico-a. Digo “faço aqui a descrição de um autor particular e espero que o leitor a reconheça como descrição persuasiva ou que introduz um modo inédito de perceber um autor”.
Diria que se trata de um livro científico?
Não, porque não reconhecemos cientificidade nenhuma na análise literária. Nenhuma. As várias pretensões de que a literatura possa ser objeto de uma ciência da literatura revelaram-se todas falidas, sem qualquer efeito real. Os objetos literários são todos singulares e não se pode fazer regra da singularidade. A singularidade é tal, nas obras maiores, as canónicas, que um salto indutivo para uma norma está votado ao fracasso.
Discorda da forma como se ensina literatura no nosso ensino obrigatório? Aí a análise dos textos literários parte de grelhas rígidas.
Discordo, embora não conheça bem a forma como se ensina no secundário. Qualquer ensino de literatura que presume que se pode fazer uma análise científica — com imensas aspas — está votado ao fracasso.
É um erro ensinar literatura impondo uma interpretação no programa escolar, com critérios nacionais de correção de exames?
Se é assim, é um erro completo. Digo que não há nada científico na abordagem à literatura, não pode haver uma grelha de correção da leitura. Mas atenção: não dizemos que, portanto, há uma infinidade de interpretações. Se tenho dificuldade em dizer qual é a interpretação certa, posso detetar o erro na interpretação. Alguém não percebeu a gramática do verso, não percebeu uma alusão, não conhece os outros textos deste autor ou da mesma época, não conhece modos remotos ou mais próximos que determinam este texto em particular.
Ou seja, não resta ao ensino senão canonizar a interpretação, porque o aluno não dispõe de todo o material teórico.
Ainda não dispõe, mas é possível pô-lo a dispor. O meu pai descreveu-me como era o ensino do António José Saraiva em Viana do Castelo nos anos 40, quando era professor do ensino secundário. Uma aula era composição, a seguinte era correção da composição, assim sucessivamente até ao fim do ano. Os alunos não aprendiam nada destacado da prática da escrita. Estamos a falar de português, não de literatura, claro. Mas se há um programa de literatura portuguesa no ensino, o Ministério da Educação e as pessoas que determinam programas têm o problema de saber o que fazer com aquilo, para terem uma aferição da aprendizagem. Como o ensino é centralizado e universal, leva a este tipo de problemas.
Porque é que os organizadores do livro são identificados na ficha técnica como editores?
O uso tem sido organizadores, editores soa a anglicismo. Não estou certo de como surgiu, não sei dar-lhe uma reposta.
Porquê apenas ensaios de académicos e críticos e não, por exemplo, de escritores?
Era possível. Aliás, a melhor crítica literária do século XX foi em muitos casos a de escritores e poetas.
Não se torna um livro académico?
A noção académica funciona como uma espécie de confinamento, porque o mundo académico tem uma conversa própria, idiomas próprios, técnicos e pseudo-técnicos.
Não foi isso que pretenderam?
Não. Houve aliás uma tentativa de não ficarmos fechados nesse tipo de análise técnica, que acaba sempre por ser uma forma de tirar a discussão do que são as preocupações mais alargadas das pessoas. Os ensaios que escrevemos, do ponto de vista académico e em certo sentido, não serão reconhecidos como académicos, por académicos.
João Pedro George escreve contra os prémios literários. Diz que são o ópio dos leitores, que distinguem nulidades, aconselha os escritores a não aceitarem prémios. Qual é a sua opinião?
Optámos por ter um ensaio sobre prémios por ser um modo de falar da existência contemporânea da literatura em Portugal, que vive muito, em termos públicos e de perceção pública, do carrossel de prémios que o ano civil tem. É um lado de análise sociológica.
Quer partilhar a sua opinião sobre os prémios?
Podem ser interessantes, por darem exposição a quem não a tem, se o que essa pessoa fez tem interesse. E depois têm um lado, e se calhar é isso que o ensaio que refere está a sublinhar, que de uma certa consanguinidade de jurados e premiados.
Sobre Saramago, escreve: “O cómico involuntário da exclusão do seu nome da candidatura a um prémio literário europeu revela como o processo de dissolução do antigo regime está longe de se ter encerrado, e pode, por vezes, ressurgir com virulência.” Parece um recado.
É uma descrição de facto. Estava a pensar no veto ao nome do Saramago por parte de um responsável da Cultura [em 1992 o então subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, vetou O Evangelho Segundo Jesus Cristo de uma lista de candidatos que o Instituto Português do Livro lhe tinha sugerido para o Prémio Literário Europeu, alegando que a obra “ataca o património religioso dos portugueses”]. Houve aí um lado cómico involuntário, porque o Estado se arrogou, na figura desse governante, uma política de gosto, em nome de posições de natureza ideológica. Hoje podemos encontrar o mesmo talvez no Azerbaijão.
Não escreveu aquela passagem para fazer passar um recado atual?
Acho que hoje uma violação tão grosseira seria difícil, embora Portugal tenha muitas vezes discussões intelectuais em que uma pessoa raspa um pouco a pele ou a identidade de alguém e recebe uma iliberalidade imediata. Este iliberalismo é uma parte funda da cultura portuguesa.
A ausência de índice remissivo ou onomástico foi opção deliberada?
Não foi opção deliberada e a haver uma reedição será incluído um índice onomástico. Teria sido importante para se perceber melhor os nomes que são referidos mas não têm ensaios autónomos.
Na ficha técnica diz-se que “foi respeitada a opção ortográfica de cada ensaísta”. Continuamos sem cânone ortográfico. É grave?
Acho que a posição dos três organizadores é de que o atual Acordo Ortográfico é desnecessário. Temos a posição, acho que posso falar pelos três, de que a ortografia não é uma questão de Estado, mas de uso e de estabilidade do uso. Da estabilidade do uso é que se pode deduzir a correção de uma forma ortográfica. Nesse caso, respeitámos a posição dos ensaístas.
Mas não é isso que inviabiliza a estabilização da norma?
Pois, mas o atual Acordo não estabiliza a norma, como é notório. O Acordo não foi necessário porque a norma estava perfeitamente estável até o Acordo chegar.
Tradição, doutrina ou qualidade: o que é e para que serve um cânone literário?
Terminemos com a pergunta que poderia ter sido a primeira: que é afinal o cânone? Uma entidade abstrata?
Pode ser visto desse modo. Mas se for descrito como o descrevemos no livro, através de nomes e obras, fica a ser uma coisa concreta. O cânone, em certo sentido, é a anterioridade que ainda tem uma energia no presente. De um outro ponto de vista, para alguém que seja escritor, que queira escrever, o cânone é incontornável, não pode ser contornado. Quem escreva romances não pode fazê-lo na ignorância dos grandes romances do passado que determinaram a forma romance.
Porquê?
A pessoa que chega e escreve na ignorância dos anteriores peca pela imaturidade, pela irrelevância. Ninguém pode assumir prática nenhuma na ignorância da história dessa prática. Não tem de ser historiador dessa prática, mas tem de ter para si, como algo de acesso implícito, as formas e realizações anteriores. Mesmo o autor despossuído não tropeça na forma, tem de ter lido algo que lhe deu acesso à forma. Ou então é uma personalidade tão singular que o que faz fica a ser excêntrico à forma, um abcesso.
Não pode iniciar uma coisa nova, por ser uma pessoa de génio?
Mas quem inicia uma coisa nova é sempre enxerto num tronco anterior. Não há ninguém que inicie nada de novo na ignorância do anterior.
Aí não estaríamos num caminho de ascensão até à qualidade absoluta?
Não, porque o que é requerido na qualidade do recém-chegado é sempre mais, porque a força da anterioridade está atrás dele. O poeta mais recente é aquele que encontra o espaço mais ocupado.