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Aos quase mil dias de guerra, o relógio estava a contar na frente de batalha da guerra na Ucrânia. Para ter vantagem diplomática numa possível negociação de paz, ter vantagem no terreno será fundamental. Vladimir Putin, cujos avanços no terreno são lentos e as perdas de soldados recorde, recorreu a militares norte-coreanos para poder mudar o jogo, antes das eleições dos EUA com uma vitória imprevisível. Volodymyr Zelensky, em perda depois da incursão surpresa em Kursk, pode ter recebido este domingo um importante apoio do Presidente cessante norte-americano, Joe Biden, que permitiu que Kiev utilizasse mísseis de longo alcance ATACMS para atacar alvos até 300 quilómetros em território russo, há tanto tempo reclamados pelo líder ucraniano.
É difícil perceber como tudo isto pode mudar as coisas na frente de guerra. A Rússia tem estado a fazer lentos avanços no campo de batalha para alcançar um dos “principais objetivos” deste conflito estabelecido pelo Presidente russo, Vladimir Putin: o controlo do Donbass, do qual fazem parte as províncias de Lugansk e Donetsk. Há intensas batalhas em toda a linha da frente — Siversk, Chasiv Yar, Toresk ou Kurakhove. A Ucrânia tem resistido e mantido controlo de alguns territórios em Kursk, mas reclamando mais apoio e armas internacionais, com Zelensky a desdobrar-se em contactos internacionais, a apresentar o seu plano de vitória, a garantir que não cede território e a pedir o que Biden lhe entregou só agora, antes de passar a pasta a Trump (e que França e o Reino Unido já tinham defendido).
“A nível tático, continuam a assistir-se a progressos russos, embora os ganhos sejam relativamente lentos e fragmentados”, define Julian G. Waller, professor do Departamento de Ciência Política na Universidade George Washington. Em declarações ao Observador, o especialista em política russa assinala que Moscovo “está a obter ganhos” em vários pontos, ou está, pelo menos, a “pressionar” as forças ucranianas, que se mantêm na defensiva.
Mas se os avanços são lentos na linha da frente, no campo diplomático podem ser mais rápidos com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. E todos tiveram consciência disso. O republicano declarou na campanha que desejava terminar o conflito em 24 horas: “Vamos trabalhar arduamente na Rússia e na Ucrânia. A Rússia e a Ucrânia têm de parar”, afirmou já esta quinta-feira o Presidente eleito, recordando a promessa eleitoral. Em breve, podem iniciar-se negociações entre Moscovo e Kiev com a mediação norte-americana. Perante esta possibilidade, o Kremlin terá intensificado a ofensiva — como se viu com o ataque massivo contra estruturas energéticas este fim-de-semana.
Além do Donbass, as tropas russas estão focadas noutro ponto quente da guerra: Kursk. Após a ofensiva fulminante em agosto de 2024, a Ucrânia tem resistido e ainda controla partes daquela região russa na fronteira perto de Sumy, ainda que com custos. A Rússia não esconde o desagrado com a ocupação ucraniana: não só pelas populações que vivem na região e que tiveram de ser deslocadas, como também por dar a Kiev alguma vantagem em eventuais negociações. O Kremlin quer retirar esse trunfo do adversário e terá, segundo indicou o Presidente Volodymyr Zelensky, 50 mil homens prontos para expulsar os ucranianos, mas o apoio recente norte-americano pode tornar a tarefa mais difícil e deixado a situação “muito desafiante”.
Atravessando dificuldades no campo de batalha, a Ucrânia não quer dar parte fraca e mantém a esperança de que será capaz de terminar com a guerra de acordo com os seus termos, e os dos aliados — como a administração Biden ou a União Europeia (UE) — têm insistido que aconteça. Para Kiev, uma vitória seria evitar quaisquer cedências territoriais à Rússia, regressando às fronteiras estabelecidas após o fim da União Soviética. Mesmo que isso pareça cada vez mais difícil e que exista quem já admita que a paz não aconteça sem cedências.
Lugansk quase controlada pela Rússia, Donetsk, Zaporíjia e Kherson ainda vão demorar. Como está a linha da frente cerca de mil dias depois da guerra?
Desde o dia 24 de fevereiro de 2022, a guerra já passou por várias fases. No início do conflito, as tropas russas avançaram sem grande oposição em territórios ucranianos. Cerca de seis meses depois, a Ucrânia assumiu a ofensiva, recuperando a totalidade da província de Kharkiv, no norte, e reconquistando a margem direita do rio Dniepre, no sul, em Kherson. No leste, as forças de Kiev também registaram alguns sucessos, mas a Rússia foi fortalecendo-se defensivamente a partir do inverno de 2023.
Na primavera do ano passado, os ucranianos tentaram ainda levar a cabo uma contraofensiva cujo objetivo passava por recuperar os restantes territórios, mas nunca teve sucesso — os ganhos foram marginais. O conflito parecia arrastar-se num impasse durante meses, até que Moscovo colocou-se na ofensiva, principalmente durante a primavera de 2024, uma tendência que se mantém até agora.
Nos quase mil dias que tem o conflito (esse marco será alcançado na terça-feira, dia 19 de novembro), a conquista mais visível da Rússia consiste no controlo quase total que mantém de Lugansk. A Ucrânia ainda mantém uma parcela da região, mas bastante reduzida. Em declarações à Newsweek, Angelica Evans, especialista do think tank norte-americano Instituto para a Guerra (ISW, sigla em inglês), estimava, a 3 de outubro de 2024, que as tropas de Moscovo ocupassem 98,8% desta província que integra o Donbass. Os combates em Lugansk estão centrados na linha Svatove-Kreminna, perto da fronteira com a província de Kharkiv.
Fazendo fronteira a oeste com Lugansk, a província de Kharkiv, que esteve ocupada pelos russos nos primeiros meses do conflito até ser libertada pelos ucranianos, continua a ser palco de intensos combates, o que mostra que a Rússia ainda não desistiu de conquistar esta região em que controla apenas algumas aldeias. Ainda esta quarta-feira, a Ucrânia assegurou ter repelido um ataque em redor da cidade de Kupiansk. “Entraram parcialmente nos subúrbios, na zona industrial e foram expulsos pelas nossas tropas. Foram ações com grupos de assalto que usavam veículos blindados e tentaram trazer a infantaria“, contou à Reuters o chefe da administração militar da cidade, Andriy Besedin.
Mais a sul, em Donetsk, na outra província que integra o Donbass, ao fim de mil dias, a situação é menos positiva para a Rússia em comparação com Lugansk. As tropas leiais ao Kremlin estão longe de controlar a totalidade da província, existindo várias frentes ativas: Siversk, Chasiv Yar, Toresk, Pokrovsk, Kurakhove, os subúrbios de Vuhledar (uma cidade já conquistada pela Rússia) e algumas localidades que estão na fronteira entre o Donetsk e Zaporíjia.
Segundo Julian G. Waller, é perto de Kurakhove e Pokrovsk que a situação está mais complicada para a Ucrânia no Donetsk. Em redor das duas cidades, as tropas russas estão a conseguir fazer avanços significativos. “As táticas russas continuam a evoluir, tal como as posições defensivas ucranianas procuram contra-atacar eficazmente”, destaca o professor universitário, indicando que se tem visto, no campo de batalha, “menos assaltos frontais” e mais “operações” da Rússia que visam cercar as tropas da Ucrânia. “Existe uma considerável heterogeneidade nas abordagens, tirando partido de uma linha da frente dinâmica”, acrescenta.
Em Zaporíjia e em Kherson, duas províncias mais a sul e em que também foi realizado um referendo por Moscovo — contestado pela comunidade internacional — para as incorporar na Federação Russa, a situação está mais estável, se bem que continue a haver combates a um ritmo diário. De acordo com o relatório desta sexta-feira do Instituto para a Guerra, a Rússia está a concentrar a ofensiva na cidade de Huliaipole, em Zaporíjia, enquanto em Kherson continuam os combates junto do rio Dnieper.
Fora do território ucraniano, no sul da Rússia, prossegue a ofensiva na província russa de Kursk. As tropas russas já conseguiram recuperar algum território perdido desde agosto e estão a fazer avanços nos últimos dias, para alcançarem o derradeiro objetivo: terminar de vez com a ocupação ucraniana na região. Para isso, estarão a levar a cabo uma forte ofensiva com 50 mil homens, existindo a possibilidade de a qualquer momento os militares norte-coreanos entrarem em ação.
Ainda que a ocupação de Kursk possa ser usada como moeda de troca e possa dar vantagem à Ucrânia na mesa das negociações, Volodymyr Zelensky já reconheceu que houve algo que falhou na estratégia ucraniana. Contrariamente ao inicialmente esperado por Kiev, a Rússia não diminuiu a ofensiva em Donetsk. “Os objetivos russos não abrandaram”, reconheceu o Chefe de Estado. Ao jornal Le Monde, o Grego, nome de código de um dos líderes dos batalhões ucranianos que estão em Kursk, sublinhou que apenas “56% dos objetivos foram cumpridos” por Kiev.
“Os russos reagiram rapidamente, eles estão a contar com reforços que nós não temos e estão a usar os seus soldados como carne para canhão”, denunciou Grego. Nem todos concordam com esta visão. Por exemplo, Vadym Mysnyk, porta-voz do comando operacional militar da zona norte da Ucrânia, reconheceu ao Le Monde que as altas patentes militares foram “criticadas” por, com a operação militar em Kursk, “poderem enfraquecer a linha da frente no Donbass”.
“Mas temos de nos lembrar que é uma situação de David contra Golias. Vamos fazer o que conseguimos. Lançámos a incursão em Kursk com um número limitado de recursos”, prosseguiu Vadym Mysnyk, acrescentando que as Forças Armadas da Ucrânia não têm o direito “de deixar as gerações futuras uma guerra congelada”. E lembrou que a “Rússia apenas entende a lei da força”.
A permissão de Biden (antes de passar a pasta a Trump) para que a Ucrânia utilize armas do país para atacar alvos a cerca de 300 quilómetros será um bálsamo para as tropas ucranianas manterem Kursk sob o seu domínio, especialmente se as tropas norte-coreanas entrarem em combate na região. Kiev espera usar já nos próximos dias os mísseis ATACMS e pressionar não só russos na linha da frente, como também destruir armazéns de armamento dentro da Rússia.
Avanços russos e o fim do impasse? Entre baixas recordes e avanços de 200 km2 numa semana, nem todos os especialistas concordam
Durante meses, havia uma ideia de impasse associada ao conflito que terá sido quebrada com os avanços russos, principalmente os dos últimos tempos. Tendo em conta este cenário, Julian G. Waller diz que a guerra não está num “impasse”, justificando com as recentes conquistas e com o facto de “não haver sinais de que a ofensiva russa esteja prestes a terminar”.
Opinião parecida tem Pavel Baev, especialista em assuntos militares no Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo. Ao Observador, refere que não existe qualquer impasse no campo de batalha, visto que “as forças russas estão a avançar em diferentes direções”. Ainda assim, o cientista político nota que estes “avanços táticos” não deverão dar origem a um “progresso significativo” que vá permitir o fim da guerra. “A sustentabilidade da estratégia de executar várias operações ofensivas a qualquer custo é bastante duvidosa.”
Para justificar o seu ponto de vista, Pavel Baev recorda o número de baixas entre os militares russos: “Aumentaram significativamente nos últimos meses”. De acordo com os dados divulgados pelo Ministério da Defesa ucraniano, citados pelo Kyiv Independent, a passada segunda-feira foi dia em que mais militares russos morreram em combates — no total, foram 1.770. Além disso, o Chefe do Estado-Maior da Defesa do Reino Unido, Tony Radakin, adiantou à BBC que a média diária de baixas em outubro de 2024 foi de 1.500 — o mês mais mortal desde o início do conflito.
Mobilizando mais homens para a linha da frente independentemente das baixas que sofre, a Rússia parece querer ganhar ainda uma maior vantagem no campo de batalha. Segundo uma análise da Bloomberg, a primeira semana de novembro foi aquela em que Moscovo conquistou mais territórios na Ucrânia — cerca de 200 quilómetros quadrados.
Mas, contrariamente a outros especialistas, Viktor Kovalenko, ex-jornalista e analista na área da Defesa, diz ao Observador que o conflito continua mesmo num “impasse”: “As forças russas não estão a fazer progressos substanciais na Ucrânia e a guerra pode ser descrita como um impasse”, diz. Além disso, sustenta, o conflito armado “não pode durar muito mais”, dado que os dois lados “falharam e nenhum pode alcançar uma vitória decisiva”.
Após a vitória de Trump, pode a Rússia ainda pode intensificar mais o conflito?
Como a solução não deverá passar pelo campo de batalha, Viktor Kovalenko argumenta que a única forma de a Rússia e a Ucrânia chegarem a acordo será na mesa das negociações: “Terão de concordar num cessar-fogo e na resolução da guerra. Talvez Donald Trump vá mediar a resolução do conflito”, conjetura o analista, antes de ser conhecida a decisão de Joe Biden deste domingo. Esta possibilidade tem sido admitida por vários especialistas, juntamente com a outra: a ideia de a Rússia estar a intensificar o conflito.
O ministro da Defesa ucraniano, Oleksandr Syrskyi, já admitiu que a situação é “desafiante” e há “sinais de escalada”. “O inimigo, amparado pela vantagem numérica, está a levar a cabo ações ofensivas”, afirmou o governante.
No terreno, já se nota essa tendência. Ao Washington Post, Yaroslav Galas, um militar na linha da frente em Zaporíjia, disse que os “micro avanços” dos últimos tempos — em que a Rússia conquistava uma localidade e a Ucrânia reconquistava-a dias depois — parece estar a chegar ao fim: “O maior sinal é que há mais forças russas na área. Há unidades adicionais no terreno — não apenas na segunda ou terceira linha, como também na linha da frente. As nossas unidades de infantaria observam tudo isto e entendem que os russos estão a preparar alguma coisa de significativa”. Ainda assim, acrescentou, as tropas russas parecem ser “inexperientes e com falta de treino”.
O comandante de batalhão Roman, que também está em Zaporíjia, também indicou ao Washington Post esse cenário, ressalvando que a missão não será fácil para as tropas de Moscovo, por conta das operações defensivas de Kiev. “Há mais fortificações na área. A segunda linha de defesa estende-se praticamente a toda a linha da frente, além de estar constantemente a ser construída”. O mesmo militar desvenda o porquê de a Rússia estar a intensificar os combates. Com a vitória de Donald Trump e negociações no horizonte, o Kremlin quer ganhar “vantagem” na mesa das negociações: quanto mais bem-sucedido for no campo de batalha na Ucrânia, mais intransigente pode ser.
No entender de Julian G. Waller, apesar de ser ainda ser “especulação”, é “certamente possível” que a Rússia “tente aumentar a pressão ofensiva nas próximas semanas e meses”. “Isto pode ter a ver com a ideia de que uma futura administração pode procurar o fim do conflito rapidamente e, por isso, [os russos] querem fazer o máximo de ganhos territoriais possíveis para uma posição negocial superior”, frisa ainda.
O professor na Universidade George Washington destaca que a Rússia estará a intensificar os combates não apenas por causa do resultado das eleições presidenciais norte-americanas. Moscovo pode igualmente querer aproveitar a falta de homens por parte da Ucrânia e também “antes de que o inverno chegue” — e que as temperaturas negativas e a neve dificultem a conquista de territórios.
Para Pavel Baev, ainda não existem “provas” suficientes para confirmar essa “mudança na estratégia russa”, apenas “dez dias depois das eleições norte-americanas”. O analista assinala que “os russos não têm homens necessários” para um grande avanço e os “ucranianos nas trincheiras também não”. Deixa, no entanto, a possibilidade de haver “outra surpresa” do lado de Kiev, algo parecido “àquilo que aconteceu em Kursk”.
A mesma ideia foi expressa por Viktor Kovalenko. O especialista não “acredita que a Rússia vá intensificar” a ofensiva “contra a Ucrânia”, após a vitória de Donald Trump, “Atualmente, faltam à Rússia soldados e armamento para esse avanço na Ucrânia”, argumenta, desvalorizando o papel das tropas da Coreia do Norte: “É apenas uma solução suplementar e temporária para preencher os vazios na linha da frente e expulsar os ucranianos de Kursk”.
Passados quase mil dias desde o dia 24 de fevereiro, a chegada de Donald Trump ao poder pode no entanto colocar o conflito à beira da mesa das negociações e, por conseguinte, do fim. E ter vantagem no terreno é fundamental para uma vitória diplomática. De acordo com o New York Times, um dos aliados de Vladimir Putin do partido Rússia Unida e membro da câmara baixa do parlamento russo (Duma), Konstantin Zatulin, aponta que Moscovo pode aceitar assinar um acordo de cessar-fogo por volta da primavera de 2025, apesar de outras fontes russas ouvidas pelo jornal norte-americano considerarem que vai demorar mais. Se bem que não terminasse em 24 horas como o republicano prometeu ao longo da campanha, as hostilidades chegariam ao fim.
Segundo Konstantin Zatulin, o conflito terminaria sob duas exigências. A primeira seria a Ucrânia abandonar o controlo de Kursk; a segunda passaria por algo como um “tudo o que a Rússia controla seria da Rússia, tudo o que a Ucrânia controla é da Ucrânia”. E esta espécie de lema apresentado pelo aliado do Presidente russo parece justificar a recente intensificação dos combates na linha da frente pelo lado de Moscovo.
Por sua vez, as autoridades ucranianas têm reiterado a ideia de que não vão aceitar o fim do conflito sob os termos russos, o que implicaria cedências territoriais. Essa ideia que é igualmente rejeitada pela maioria da população: segundo uma sondagem divulgada esta sexta-feira pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 58% dos ucranianos opõem-se a atribuir territórios à Rússia.
A três meses do final do mandato, o Presidente norte-americano também está a tentar dar um último fôlego à Ucrânia, dando meios para as tropas ucranianos susterem a ofensiva russa. Mas Joe Biden está limitado nas suas ações e sabe que, em janeiro de 2025, a história será muito provavelmente diferente.
Donald Trump já garantiu que vai tentar chegar a uma solução negociada entre Kiev e Moscovo. Enquanto isso não acontece, a Rússia, mesmo com o maior número de baixas desde fevereiro de 2022, deverá tentar conquistar mais territórios. E a Ucrânia vai tentando resistir à ofensiva, contando, pelo menos até ao final do ano, com o apoio da administração Biden e da Europa.