Os apoios e patrocínios financeiros da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) ao desporto já terão sido mais reduzidos este ano do que em 2022, mas foi a comunicação às federações de que poderia haver um novo corte em relação aos valores contratados que gerou uma onda de alarme por parte de dirigentes. A onda chegou até ao Governo e levou partidos a anunciarem que vão chamar ao Parlamento a provedora e o secretário de Estado que tutela ao desporto.

Em entrevista esta quinta-feira na SIC Notícias, a provedora anunciou que vai ser revisto o modelo de atribuição dos patrocínios para definir objetivos e dar mais transparência. Sem revelar os valores pagos, Ana Jorge apontou grandes “discrepâncias” nos patrocínios que vão desde os 20 mil euros aos 500 mil euros, sem se perceber as razões para esta diferença. À Rádio Observador, a provedora indicou que os apoios anuais que vão ser revistos para 2024 (na parte que é assegurada pela Santa Casa) são da ordem dos três milhões de euros, sem explicar valores.

Santa Casa prepara “corte transversal” nas despesas com contratos e quer mais transparência na atribuição dos apoios

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O secretário de Estado, João Paulo Correia, reuniu esta quarta-feira, a seu pedido, com a provedora Ana Jorge para discutir os apoios da instituição ao desporto. Deste encontro saiu uma curta nota na qual o Governo garante que a instituição vai manter os apoios planeados para este ano e que se compromete a cobrir eventuais cortes aos patrocínios da Santa Casa no próximo ano, sem indicar valores.

“No que diz respeito aos patrocínios concedidos às entidades desportivas importa desde logo salientar que os mesmos se irão manter em 2023. Já em relação a 2024, os referidos patrocínios serão igualmente mantidos, sendo então assegurados tanto pela SCML como pelo Governo”. Ou seja, há um recuo face a eventuais cortes com efeitos para este ano e fica garantido que o nível dos apoios de 2023 vai ser o mesmo em 2024.

Santa Casa mantém apoios ao desporto em 2023 e Governo compensa eventuais cortes em 2024

De fora da polémica fica, para já, a ministra que tutela a Santa Casa. Ana Mendes Godinho há meses que nada adianta sobre a reavaliação de contas e auditoria às operações internacionais da instituição pedidas pelo Ministério da Segurança Social.

Na carta enviada às federações desportivas, a provedora invocava as  “novas exigências sociais e financeiras à SCML no que diz respeito ao apoio das populações mais vulneráveis”, mas também assumia que a procura crescente dos serviços da instituição está a ser “acompanhada por uma significativa perda das receitas provenientes dos jogos sociais do Estado”, e que “a atual situação orçamental que a instituição atravessa não pode ser ignorada”, o que obriga a reequacionar projetos. A revisão anunciada não se fica pelo desporto e abrange todos os apoios da Santa Casa à cultura, ciência, educação, e outros, mas confirmou o Observador, não iria por em causa os contratos que estão em vigor, alguns dos quais se prolongam até 2024.

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Mas afinal, qual é o peso da Santa Casa no financiamento do desporto e qual a importância destes apoios para as federações? Não é uma pergunta fácil de responder porque estão em causa patrocínios de natureza comercial — ou seja, que envolvem contrapartidas para a instituição — e confidenciais.

De acordo com uma lista provisória a que o Observador teve acesso, os patrocínios da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ao desporto financiados com verbas dos jogos sociais atingiram os 2,7 milhões de euros no ano passado. Os apoios financeiros a modalidades e 19 federações desportivas mobilizaram cerca de 1,9 milhões de euros. O montante sobe para quase 2,2 milhões de euros com os financiamentos aos comités olímpico e paralímpico e está associado aos contratos em vigor no ano passado. Excluindo o IVA, a transferência líquida foi cerca de 1,7 milhões de euros. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) recebeu a maior fatia, pouco mais de 60%, onde estarão incluídos os apoios ao futsal..

Em ano pré-olímpico, o Governo já veio dizer que não estão em causa as verbas para a participação portuguesa — a Santa Casa também patrocina os comités olímpico e paralímpico, que no ano passado terão recebido, em conjunto com a Associação dos Atletas Olímpicos, valores de 250 mil euros brutos — mas o corte programado no financiamento, ainda que não na principal fatia, pode ter um impacto sério. Não nas principais provas que estão na calha, mas nas camadas da formação e na preparação dos futuros atletas, que têm mais dificuldade em atrair outras fontes de financiamento, nomeadamente privadas, já que os atletas consagrados conseguem mais facilmente patrocínios.

Como são distribuídas as verbas públicas por desporto e federação

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A definição do montante a atribuir, via Instituto Português do Desporto e Juventude, a cada federação e a cada ano é calculada em função de uma equação de múltiplas variáveis: desde o número de praticantes, clubes, árbitros e competições, e respetiva evolução, bem como o rendimento desportivo (apuramento para competições e classificação de atletas) e ainda o histórico da modalidade em Portugal. Do outro lado da conta está o montante total a distribuir a cada ano, e que resulta das receitas dos jogos sociais. Se uma federação crescer em todos os critérios, mas houver menos dinheiro para distribuir não está garantida uma maior fatia.

As federações recebem também receitas das apostas desportivas à cota que têm duas fontes, o Placard explorado pela Santa Casa, e o jogo online explorado por plataformas privadas. No primeiro caso, têm direito a 3,5% da receita total dos jogos sociais. No jogo online, foi criado um imposto especial de 37,5% cuja distribuição é feita pela Inspeção de Jogos do Turismo de Portugal. Estas duas fontes representam 94% do orçamento do IPDJ.

Na lista consultada pelo Observador há mais de 30 patrocínios comerciais relacionados diretamente com desporto, sejam de clubes, federações ou competições e iniciativas e que equivaleram a pagamentos da ordem dos 2,8 milhões de euros, com IVA. Há ainda apoios indiretos como o financiamento de mais de um milhão de euros à Olivedesportos, que estará relacionado com publicidade no estádio — e que depois é transmitida via canais Sport TV, detidos em parte pela mesma empresa.

Apesar de nestes contratos de patrocínio a Santa Casa ser equiparada a uma entidade privada ou empresa, a verdade é que a origem dos fundos da instituição resulta dos ganhos com os jogos sociais que são em Portugal a grande fonte financiamento público do desporto. A Santa Casa tem a concessão da exploração destes jogos e gere as receitas, mas o grosso do financiamento ao desporto que vem dessa fonte é atribuído pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) que é tutelado pelo secretário de Estado do Desporto.

O que vale a Santa Casa no financiamento ao desporto

Dados enviados ao Parlamento este ano indicam que o montante distribuído pelo IPDJ no ano passado ao abrigo de contratos de programa pelas várias modalidades ascendeu a 35,7 milhões de euros. O que significa que os patrocínios da Santa Casa em 2022 às federações correspondem a menos de 10% deste valor.

O presidente da federação de rugby, Carlos Amado Silva, confirma ao Observador que a redução do patrocínio da Santa Casa não é de agora, já dura há alguns anos. Esta federação recebeu este ano um quinto do que já recebeu em anos anteriores, sem que exista uma relação direta com os resultados desportivos alcançados. O rugby português conseguiu qualificar-se para o campeonato mundial que se realiza este ano em França. Este dirigente acrescenta que o financiamento público corresponde atualmente a menos de metade do orçamento da federação.

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Considerando apenas as federações patrocinadas pela Santa Casa em 2022, os patrocínios de 1,7 milhões de euros correspondem a pouco mais de 6% do valor recebido via IPDJ. Analisando caso a caso, há contudo situações em que o patrocínio da instituição tem peso face ao recebido via instituto. No futebol, corresponde a quase um terço. E no hóquei o pagamento da Santa Casa terá representado mais de metade do valor pago pelo IPDJ.

A Federação Portuguesa de Futebol terá recebido pouco mais de um milhão de euros da Santa Casa no ano passado. Na lista das federações mais patrocinadas pela Santa Casa estavam o andebol, cerca de 150 mil euros, o ciclismo (pouco mais de cem mil euros) e a patinagem com um pouco menos de 100 mil euros.

A maioria das federações teve apoios por via da SCML que oscilaram entre os 30 e os 60 mil euros, havendo valores abaixo dos 10 mil euros como os atribuídos ao atletismo ou ao surf. No ano passado, e segundo a mesma fonte, a Santa Casa patrocinou as seguintes federações: Futebol, Andebol, Ginástica, Motociclismo, Patinagem, Triatlo, Equestre, Atletismo, Canoagem, Pessoas com Deficiência, Desporto Universitário, Judo, Natação, Remo, Rugby, Surf, Ténis de Mesa, Voleibol, Ciclismo.

Mas esta lista não esgota os patrocínios diretos da Santa Casa ao desporto. Há verbas com algum significado para apoiar a realização de eventos como corridas, campeonatos (de surf, por exemplo) e a Volta a Portugal em Bicicleta cujo promotor terá, segundo esta lista, tido um financiamento de pouco mais de 300 mil euros em 2022. E patrocínios a entidades como o Maratona Clube de Portugal e a Associação Sport Integrity, entre outros.

Para além da Santa Casa e do IPDJ, há outro canal de financiamento do jogo ao desporto que tem vindo a ganhar relevância nos últimos anos e que resulta da transferência de 3,5% das receitas das apostas desportivas à cota (que têm como referência uma modalidade, competição ou evento desportivo) exploradas pela Santa Casa através do Placard e o imposto criado sobre estas apostas desportivas online. Sobretudo o valor arrecadado por este último que deu um salto com a pandemia, que foi em grande parte alimentado um desvio das apostas do Placard para o online.

Ainda assim, e de acordo com os números enviados ao Parlamento pelo Governo, os valores obtidos por esta via cresceram graças às apostas online exploradas por operadores privados, tendo atingido os 61,7 milhões de euros em 2022, mais 30%. No entanto, a distribuição destes valores pelas modalidades está mais concentrado. O futebol e a Liga de futebol ficaram no ano passado com 47 milhões de euros. A seguir vem o ténis com 7,2 milhões de euros e o basquetebol com quase cinco milhões de euros. Os desportos de inverno tiveram direito a 1,2 milhões de euros. Para além destes, apenas o voleibol e o andebol receberam mais de 100 mil euros por esta via.

Para algumas modalidades/federações, há financiamento público adicional para a preparação e participação nos Jogos Olímpicos, cuja próxima edição se realiza em Paris em 2024. Em 2022, o bolo transferido para as federações foi de 5,7 milhões de euros dos quais quase 1,6 milhões foram destinados aos Paralímpicos. As modalidades mais financiadas são o atletismo, o judo, a canoagem, a natação, o ciclismo e o ténis de mesa, dentro de um lote de desportos.