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Os papéis pareciam estar invertidos. Quem não soubesse os crimes que estavam em causa, facilmente era levado a crer que era Aníbal Pinto o arguido que tinha de responder por 90 crimes e não Rui Pinto. Apesar de os holofotes estarem todos virados para ele, o alegado hacker parecia abster-se disso. Emanava uma serenidade pouco expectável para quem ia começar a ser julgado por quase uma centena de crimes. E que contrastava não só com a postura mais exaltada do outro arguido, mas também com todo o ambiente à sua volta: afinal, as imediações do edifício A do Campus de Justiça tinham sido tomado por agentes especiais da PSP com metralhadoras em punho.
Era pelo menos o que deixava passar para o exterior. Calças de ganga justas e esburacadas, camisa azul escura — que escondia um colete à prova de balas —, sapatilhas cinzentas com atacadores azuis. Do lado de fora, via-se um Rui Pinto com um quê de descontraído, mas extremamente atento ao que acontecia à sua volta. Corpo imóvel, o seu olhar seguia cada movimento, cada jornalista ou advogado que entrava na sala. Fixava-se, compenetrado, na pessoa que tinha a palavra e só desviava o olhar quando o discurso terminava. Por vezes, tirava notas num caderno que trazia consigo.
Acabaria por revelar lhe ia na mente e que a sua aparente serenidade escondia: o que defende, quais os seus motivos e os planos para o futuro. Precisou nem de cinco minutos para fazer uma breve declaração com 12 pontos que, mesmo assim, chegou a ser interrompida pela juíza Margarida Alves — queria saber detalhes mais pormenorizados acerca do processo, mas Rui Pinto pediu-lhe, por favor, que o deixasse dizer o que havia planeado.
Das revelações que são “motivos de orgulho” ao “período difícil” e de “reflexão” que passou detido e isolado
Transmitindo, desde logo, que a meta final é a descoberta da verdade, Rui Pinto partiu depois, já no ponto dois, para uma análise à “estranha situação” em que se encontra. “Por um lado, como arguido e, por outro, como testemunha protegida integrada num programa do Estado português”, clarificou, num discurso pausado, claro e feito num tom de quem mais parecia estar a falar para uma plateia de admiradores. Entre quem é ou quem não é, o arguido têm duas certezas. A primeira: “Como sempre disse, não me considero um hacker“. A segunda: “Sou um denunciante ou whistleblower porque tornei pública, em total boa fé, muita informação de manifesto interesse público nacional e internacional que, de outra forma, nunca seria conhecida”.
Já no quarto ponto, Rui Pinto contou que ficou “surpreendido e indignado” o que descobriu, sem dar detalhes sobre como o fez. “E entendi que devia revelar. Inicialmente através do site Football Leaks, mas também através da colaboração com órgãos de comunicação social a nível mundial”, disse, defendendo no ponto seguinte que este “trabalho de análise documental e auxílio direto aos jornalistas” contribuiu “para reforçar a liberdade de expressão”.
Depois, lembrou que colaborou também com “várias autoridades estrangeiras” e explicou que se encontra “a colaborar ativamente com as autoridades portuguesas”, detalhando mesmo que foram quem o “encorajaram nesta colaboração”. E disse mesmo: “Espero continuar a fazê-lo no futuro”. Para o alegado hacker as revelações que fez são “motivo de orgulho e não de vergonha”. “Vejo hoje que há importantes inquéritos criminais que foram iniciados graças a essas revelações e confio que serão muitos mais”, disse já no ponto sete.
Rui Pinto relembrou depois, já no ponto oito, que “os whistleblowers são cada vez mais protegidos em todo o mundo” — muito porque os direitos nacionais, europeu e internacional “reconhecem” cada vez mais a sua “importância” — e lamentou ter sido “objeto de uma campanha de calúnia, difamação e ameaça”. “Mas não me queixo”, disse, terminando o ponto nove para depois passar ao décimo, onde falou do período em que esteve preso: “Estive quase um ano e meio preso, com sete meses de isolamento total — o que foi um período difícil, mas também um período de grande reflexão. O meu trabalho como whistleblower está terminado”.
O arguido explicou depois um dos seus objetivos: “Reafirmar que nada do que fiz foi por dinheiro e que nunca recebi qualquer verba pelas informações que revelei”. Em jeito de conclusão, no 12.º e último ponto, explicou que esta foi apenas uma declaração inicial: para já, Rui Pinto prefere manter-se em silêncio, ouvir o que os restantes têm a dizer e falar e responder às perguntas dos juízes quando entender que o deve fazer — uma decisão que só a ele cabe já que os arguidos podem falar em qualquer fase do julgamento.
Ficou assim clara qual será daqui para a frente a sua defesa — que já tinha sido revelada na contestação de 130 páginas entregue ao tribunal pela sua equipa de defesa: Rui Pinto apresenta-se como um denunciante que só fez o que fez por interesse público e nunca por dinheiro. Vai responder por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol (FPF), à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice.
A identidade de Rui Pinto valia um milhão de euros, mas Aníbal Pinto não cedeu
A delicadeza do discurso de cinco minutos de Rui Pinto deu lugar ao interrogatório mais intenso e de várias horas feito a Aníbal Pinto, também arguido no caso onde responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com esta sociedade e Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentaram os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
Com o apoio de duas pastas e vários documentos, Aníbal Pinto esbracejou e pegou em cada um dos pontos da acusação em que o seu nome era mencionado, desconstruido um por um. Fê-lo explicando detalhadamente as conversas que teve com o representante da Doyen, de forma a mostrar ao tribunal que achava que o negócio que estava a intermediar era um contrato de prestação de serviços entre o hacker e a empresa — e não o crime de extorsão de que está acusado. Ou seja, que a Doyen queria contratar Rui Pinto — cuja verdadeira identidade não conhecia na altura — como técnico de informática.
O advogado diz que o Ministério Público (MP) omitiu algumas mensagens e emails trocados por si e que seriam fundamentais para perceber que está inocente. Outras comunicações, que não omitiu, foram mal interpretadas. Aníbal começou por explicar que foi contactado por Rui Pinto que “precisava de um advogado para fazer um contrato” — não disse qual. Só que, depois, recebeu um email do hacker a explicar “o resto da informação” que não tinha dito “ao telefone”. Nele, admitia que era o autor do Football Leaks, pedia-lhe para se manter no anonimato e enviava-lhe o email que tinha trocado com Nélio Lucas, ex-administrador da Doyen.
Terá sido ao ler esse email que, na sua tese, se apercebeu que poderia estar em causa mais do que um contrato de prestação de serviços. É que, nesse email, Rui Pinto dizia a Nélio Lucas que “a fuga” era “bem maior” do que imaginava e pedia uma “doação generosa” — o que, aos olhos da acusação, era a forma de o hacker exigir dinheiro para não divulgar a informação que tinha sobre a Doyen, parte dela já divulgada. “Quando vi alguém a negociar entre meio milhão e um milhão de euros vi logo que era uma treta. Ou se pede meio milhão ou se pede um milhão”, disse Aníbal Pinto.
No entanto, diz também que naquele momento não teve “qualquer dúvida de que podia estar perante uma extorsão“. E considerou que não podia “colaborar com nada ilegal” — tendo inclusive alertado para isso mesmo Rui Pinto, que “tem idade para ser” seu “filho”. O advogado explica que Rui Pinto ter-lhe-á ligado depois a garantir que o objetivo não era “cometer ilegalidades”. Só que a Doyen tinha sido “atacada” e queria contratá-lo. Aníbal Pinto diz que não pôs sequer “em causa que fosse Rui Pinto a atacar a Doyen”, mas sim que o ataque tivesse sido feito por outra pessoa desconhecida. “Para mim fazia todo o sentido a Doyen, que foi hackeada, querer contratar o Rui Pinto”, explicou.
Questionado pelo tribunal sobre se não achou estranho todas estas negociações, Aníbal disse que “por achar estranho” teve “um comportamento cauteloso”. Até porque tinha ficado “com a ideia” de que “Rui Pinto era teso” e que não lhe ia pagar — o que arrancou uma gargalhada, escondidas pela máscara, ao arguido e a toda a audiência. “Ainda hoje tenho essa ideia”, clarificou.
Aníbal Pinto explicou depois, na sequência da chamada de Rui Pinto, cedeu em prosseguir com as negociações — que sempre encarou como tendo na base um contrato de trabalho — e trocou mensagens com o representante da Doyen, Pedro Henriques, a tentar combinar uma reunião para falar sobre o tal contrato. Mas a reunião demorou a acontecer, já que o advogado Pedro Henriques muitas vezes combinava ligar-lhe, mas acabava por não o fazer e as combinações foram caindo por terra — o que terá levado Aníbal Pinto a pôr um ponto final por sentir que estava a “perder tempo”. “Acabou”, exemplificou em tribunal o que terá dito na altura.
No entanto, entre avanços e recuos, a reunião — que viria a ser seguida pela PJ — acabou por acontecer. Nela, revelou Aníbal Pinto, o ex-administrador da Doyen, Nélio Lucas, ter-lhe-á dito: “Somos muito ricos”. Para depois oferecer um milhão para revelar identidade do hacker — o que o advogado recusou e explicou-lhes que, se quisessem saber, bastaria contratá-lo.
O encontro secreto entre o ex-advogado de Rui Pinto e a Doyen — com a PJ na mesa ao lado
O impasse em contratar Rui Pinto levou Aníbal Pinto a pensar que talvez a Doyen estivesse mesmo a ser alvo de extorção e pôs fim às negociações, alertando a Doyen de que não deviam “ceder a qualquer tentativa de extorsão” e também Rui Pinto precisamente explicando-lhe que podia estar a cometer um crime. “Demorei a perceber o alcance da ilegalidade“, admitiu.
Rui Pinto com colete à prova de bala. Medidas de segurança geraram confusão e atrasaram o julgamento
A verdade é que Rui Pinto não tinha muitas razões para se preocupar com a sua segurança — o que pode justificar a sua calma. Além dos elementos especiais da polícias espalhados pelo Campus da Justiça, o arguido usou um colete à prova de balas — como o próprio viria a anunciar no Twitter. “O julgamento começou com as medidas de segurança mais elevadas que Portugal alguma vez viu. Eu até usei um colete à prova de balas. É o que acontece quando se expõe corrupção e lavagem de dinheiro”, disse num tweet publicado já à noite.
The trial started with the highest security measures Portugal has ever seen. I even wore bulletproof vest.
That's what happens when you expose corruption and money laundering. #FootballLeaks #LuandaLeaks— Rui Pinto (@RuiPinto_FL) September 4, 2020
A sessão começou com algum atraso e depois de os jornalistas serem informados de que, por questões de segurança, não poderiam ter computadores e telemóveis na sala de audiência. A medida aplicou-se também — e pelas mesmas razões de segurança — a um auditório onde a sessão foi transmitida por videoconferência e que ficava num outro edifício, a vários metros de distância da sala onde estava Rui Pinto. Esse auditório foi disponibilizado para que os jornalistas que não coubessem na sala de audiências (com uma lotação muito limitada por causa da Covid-19) pudessem assistir aos trabalhos. Mas também aí não puderam usar telemóvel ou computador. O tribunal optou, antes, por fazer intervalos de breves minutos, para que os jornalistas pudessem sair da sala e divulgar a informação para o exterior.
Inicialmente, a presidente do coletivo dos juízes explicou que esta era apenas uma das medidas pouco comuns que rodeavam este julgamento. No entanto, já no final da sessão, reconheceu que estas proibições dificultaram o trabalho dos jornalistas e até o julgamento. E explicou que se prendeu não só com a segurança do arguido, mas também com o facto de o tribunal não querer que a comunicação social publicasse informação ao minuto, de forma a que a testemunha que vai ser ouvida não possa ler o que a testemunha anterior disse na sala de audiências.
No Campus da Justiça, havia dezenas de polícias com metralhadoras em punho e um perímetro de segurança alargado, desde as primeiras horas da manhã. Os primeiros elementos das forças especiais da PSP começaram a chegar pouco depois das 7h00. Antes, já tinha sido montado um perímetro de segurança alargado, com grades a separar a porta de entrada do edifício do restante recinto.
As medidas de segurança prendem-se com o facto de Rui Pinto se encontrar ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas que faz com que esteja num lugar secreto e que tivesse de ser trazido de lá até ao tribunal, protegido por elementos do Corpo de Segurança Pessoal da PSP e sujeito a regras apertadas.
A próxima sessão está marcada para 15 de setembro. Nessa sessão, que deverá apenas ocupar o período da manhã, o arguido Aníbal Pinto vai responder às perguntas do MP e dos advogados. Na sessão seguinte, dia 16, serão ouvidos alguns dos assistentes do processo: os advogados Luís Pais Antunes, da PLMJ, e João Medeiros e Inês Almeida Costa, ex-advogados da PLMJ. Só no dia 17 começarão a ser ouvidas as primeiras testemunhas. A juíza sugeriu que fossem ouvidas já duas testemunhas, mas a procuradora alertou que precisaria de várias horas para ouvir a primeira testemunha do julgamento: o inspetor da PJ, José Amador.
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