“A NATO quer mandar uma mensagem muito forte a Vladimir Putin: não vais ganhar.” As palavras do chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, faziam adivinhar o desfecho do segundo dia da cimeira da NATO em Madrid. Com a divulgação de um novo conceito estratégico que guiará os próximos anos da organização, a Rússia foi considerada a “principal ameaça” à aliança militar. Mas não foi o único país visado: o papel da China na comunidade internacional também levanta várias preocupações.
Num cenário “crítico para a segurança, para a paz internacional e estabilidade do espaço euro-atlântico”, o novo conceito geoestratégico recupera alguns paralelismos com a época da Guerra Fria, altura em que foi a fundada a aliança militar. “Durante mais de setenta anos, a NATO garantiu a liberdade e a segurança dos aliados”, lê-se no documento, sendo que o artigo 5.º — que estipula que o ataque a um país é encarado como um ataque a todos — permanece como o alicerce da organização.
A ameaça de há 70 anos, no continente europeu, continua a ser mesma — a Rússia — mas as circunstâncias são muito diferentes. “O nosso mundo é imprevisível”, lê-se no conceito estratégico, que salienta que a guerra desencadeada contra a Ucrânia “alterou” o contexto de segurança mundial. “A área transatlântica não está em paz. A Federação Russa violou as normas e os princípios que contribuíram para uma ordem de segurança estável e previsível”, reconhece o documento.
“O comportamento de Moscovo reflete um padrão de ações agressivas russas contra os seus vizinhos e contra a comunidade transatlântica em geral”, refere a NATO, que defende uma “Ucrânia forte e independente” — algo “vital” para a “estabilidade da zona euro-atlântica”.
Rússia é, oficialmente, a inimiga número 1 da NATO: “A ameaça mais direta e significativa”
“A Federação Russa é a ameaça mais significativa e direta para a segurança dos aliados e para a paz e estabilidade da área euro-atlântica.” A frase não dá margens para dúvidas: a Rússia passou a ser a inimiga número 1 da NATO. Moscovo também é acusada de “procurar estabelecer zonas de influência e controlo direto” em outros países “através da coerção, subversão, agressão e anexação”.
Discursando diante dos líderes da NATO, o Presidente da Ucrânia também sinalizou que o mundo está “consciente” de quais são os objetivos da Rússia. Mas não deixou de se mostrar surpreendido por apenas agora a aliança militar considerar o país uma ameaça. “Apenas agora — nesta cimeira — é que a Rússia é identificada como a vossa maior ameaça, mas vocês sempre foram um inimigo para eles”, notou Volodymyr Zelensky, frisando que a propaganda russa almeja “quebrar e colocar pressão sob a aliança militar”.
Por exemplo, a Rússia vê a Lituânia (um Estado-membro da NATO) não enquanto como um “membro da aliança”, mas antes como uma “república da União Soviética”. “Para nós é um Estado independente e uma ex-república da URSS, para nós é passado, mas eles veem como um futuro possível, eles querem escravizar [a Lituânia] outra vez”, denunciou Volodymy Zelensky, que declarou que Moscovo está a preparar uma guerra contra a aliança militar.
A conceção estratégica da NATO viria a estar alinhada com as palavras do Presidente ucraniano. O documento expõe que a Rússia deseja “desestabilizar os países no leste e no sul” da aliança. “A sua presença militar, incluindo nas regiões do mar Báltico, Mediterrâneo e Negro, a par da integração militar com a Bielorrússia, desafia a nossa segurança e interesses.”. Ciente dos riscos, a organização promete “fortalecer significativamente a dissuasão e a defesa de todos os aliados”. “Aumentaremos a nossa resistência contra a coerção russa e apoiaremos os nossos parceiros a combater interferências e agressões malignas”, lê-se no documento.
E esta cimeira da NATO já avançou com propostas para fazer frente à ameaça russa. Momentos antes da reunião com os líderes da organização, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, adiantou que iria reforçar a presença militar norte-americana na Europa, bem como enviaria armamento pesado para o continente europeu. O apoio à Ucrânia também será assegurado “o tempo que for necessário”, sublinhou o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, que revelou que a Alemanha, a Noruega e os Países Baixos prometeram enviar mais armas para território ucraniano após o discurso de Volodymyr Zelensky.
O perigo das armas nucleares russas e o principal “garante de segurança” da NATO
Na sua conceção estratégica, a NATO alerta para os perigos da “modernização das forças nucleares” da Rússia, que está a empregar uma “retórica nuclear coerciva”. “O uso potencial de materiais ou armas químicas, biológicas e nucleares contra a NATO por um estado hostil permanece uma ameaça para a segurança”, reforça o documento, que aponta o dedo não só à Rússia, como também à Coreia do Norte e à Síria.
Apesar de não desejar um “cenário de confronto” e não querer “representar uma ameaça à Rússia”, a aliança militar sinaliza que necessita de dispor de armas nucleares: “O objetivo fundamental da capacidade nuclear da NATO é preservar a paz, prevenir a coerção e prevenir a agressão”. No documento, a aliança declara que “enquanto existirem armas nucleares, a NATO vai permanecer uma aliança nuclear”. A conceção estratégica ressalva, ainda assim, que as “circunstâncias nas quais a NATO pode usar armas nucleares são extremamente remotas”.
“As forças nucleares estratégicas, particularmente as dos Estados Unidos, são o garante supremo da segurança da aliança”, realça o guia estratégico, que acrescenta que as “forças nucleares independentes do Reino Unido e de França também têm um papel de dissuasão” e “contribuem significativamente para a segurança geral da aliança”.
A China: o novo desafio
No seio da comunidade internacional, a NATO não está apenas preocupada com a Rússia. Há outro país que a aliança militar olha com apreensão: a China. Embora não sendo uma ameaça, Pequim adota “políticas coercivas e ambições que desafiam os interesses, segurança e valores” da organização. “A China emprega um espetro de medidas políticas, económicas e militares de forma a aumentar a sua pegada global e projetar poder, enquanto se mantém opaca em relação à sua estratégia e intenções.”
Acusando de a China de levar a cabo “operações híbridas maléficas”, a NATO afirma que o país usa uma “retórica de confronto que tem como alvo os aliados e prejudica a segurança da aliança”. Pequim quer “controlar indústrias tecnológicas” para criar “dependências estratégicas e aumentar a sua influência”, esforçando-se para “subverter a ordem internacional, incluindo nos domínios espaciais e marítimos”.
Como resposta, a NATO vai “aumentar a consciência partilhada, reforçar a resiliência e preparação e aumentar a preparação contra táticas coercivas da China e tentativas de dividir a aliança”. A conceção estratégica salienta, porém, que quer manter o diálogo com a China, de modo a “salvaguardar os interesses da aliança”.
Num dos painéis que se reuniu esta quarta-feira na cimeira da NATO, a ministra dos Negócios Estrangeiros britânica, Liz Truss, deixou um sério aviso à China. Caso decida invadir Taiwan, isso será interpretado como um “erro de cálculo catastrófico” e terá consequências. Asseverando que existe um “risco real” de isso acontecer, a chefe da diplomacia do Reino Unido apontou que uma das prioridades da aliança deve ser contrabalançar o poderio chinês.
Outro dos pontos que gera preocupação à NATO passa por uma possível aliança entre a Rússia e a China. “A parceria estratégica entre a República Popular da China e a Federação Russa e as suas tentativas para minar a ordem internacional contrariam os nossos valores e interesses”, denuncia o documento.
A estratégia de “porta aberta” da NATO parece manter-se
Um dos momentos mais marcantes neste segundo dia consistiu no facto de o secretário-geral da organização convidar formalmente a Finlândia e a Suécia para se juntarem à NATO, uma decisão que o alto dirigente caracterizou como “histórica”. As duas nações nórdicas conseguiram resolver os diferendos com a Turquia, que abandonou a posição de veto na terça-feira.
Para a Finlândia e a Suécia entrarem na organização, os parlamentos dos 30 estados-membros da NATO precisam de ratificar essa decisão, algo que é praticamente certo. Ainda assim, na sua nova conceção estratégica, a aliança não faz qualquer menção à entrada das duas nações nórdicas, nem aos obstáculos que a Turquia criou.
No que diz respeito a outros países que querem aderir à organização, a NATO realça que os “alargamentos têm sido um sucesso histórico”: “Fortaleceram a aliança, asseguraram a segurança de milhões de cidadãos europeus e contribuíram para a paz e estabilidade da área euro-atlântica”. Assim sendo, a organização reafirma a estratégia da porta aberta a “todas as democracias europeias que partilhem os valores da aliança e que sejam capazes de assumir as responsabilidades e obrigações da adesão”.
Em concreto, existem três países que pretendem aderir à NATO: a Bósnia-Herzegovina, a Geórgia e a Ucrânia. A aliança “apoia totalmente a sua independência, soberania e integridade territorial”, sendo que mantém um “diálogo político” com os dirigentes políticos daqueles três países.
Deste modo, a aliança militar reafirma a decisão tomada na cimeira de Bucareste em 2008 de preparar a adesão aos três países, algo que é do “interesse comum da paz, estabilidade e segurança euro-atlântica”. Mas Jens Stoltenberg não deu qualquer resposta concreta às autoridades ucranianas, mantendo, por isso, a porta meio fechada.