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As aparências iludem. Uma arma disparou. Um homem cai. Outro guarda a arma no bolso

1 de Março de 1971. Ermesinde. Um homem atingido por uma bala está entre a vida e morte. A seu lado outro tem uma arma no bolso e sangue da vítima nas mãos. Crime?

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São quase 5 horas da madrugada. Na rua central de uma localidade próxima de Ermesinde, por onde então passava o trânsito que vinha do Porto, está caído um homem. Apresenta perfuração do crâneo por bala. Perda de massa encefálica. Alteração da respiração… O quadro clínico é muito grave. O homem em questão chama-se Manuel Carlos, pouco passa dos trinta.

Quase ao lado de Manuel Carlos está outro homem. Tem ferimentos numa mão e no bolso guarda uma pistola ensanguentada. Chama-se Daniel, é ligeiramente mais novo que Manuel Carlos. A bala que feriu Manuel saiu da arma de calibre 6,35 que está no bolso de Daniel.

Manuel Carlos e Daniel eram, aos olhos de então, dois jovens com tudo para ser felizes: tinham estudado, ocupavam empregos que muitos invejavam (Manuel é aspirante de Finanças e Daniel chefe de lanço numa hidráulica) têm amigos, saúde, tempo e meios para se divertir. E é todo esse futuro que acabou de se desfazer em escassos minutos nessa madrugada de 1 de Março de 1971, ali entre a Areosa e Ermesinde.

Manuel é aspirante de Finanças, Daniel chefe de lanço numa hidráulica. Colegas de escola reencontram-se numa madrugada que começou por ser de alegria.

Ainda nenhuma das várias pessoas que ali se encontravam tinha percebido o que acontecera, já Manuel Carlos e Daniel estão a ser levados para o Hospital de São João. O primeiro vai agonizante. O segundo segue ligeiramente ferido sob custódia policial mas está num tal estado de agitação que tem de ser submetido a um tratamento com sedativos. Na posse das autoridades segue também a arma que tiraram do bolso de Daniel. A arma que disparou sobre Manuel Carlos.

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Estupefactos no meio da rua estão os moradores que o ruído dos acontecimentos acordara, os acompanhantes de Daniel e de Manuel Carlos e alguns automobilistas. Minutos antes todos acreditavam ter presenciado um acidente de automóvel e de repente vêem-se envolvidos no que parece ser um homicídio. Ninguém percebe nada a não ser que parece evidente que Daniel disparou sobre Manuel Carlos.

Estupefactos no meio da rua estão os moradores que o ruído dos acontecimentos acordara, os acompanhantes de Daniel e de Manuel Carlos e alguns automobilistas. Minutos antes todos acreditavam ter presenciado um acidente de automóvel e de repente vêem-se envolvidos no que parece ser um homicídio.

Entre os presentes a única certeza é que o crime não podia ter sido premeditado porque até há um quarto de hora Daniel não sabia que ia encontrar Manuel Carlos.

Quinze minutos antes

Como se fossem espectadores de um filme que se via ao contrário os jornalistas e os curiosos (depois de ler este caso nunca mais se menosprezarão os curiosos) vão concentrar-se nesses 15 minutos antes de Manuel Carlos ficar entre a vida e a morte e de Daniel se ter tornado suspeito de assassínio: Daniel regressava ao volante do seu carro a Mesão Frio, onde vive. Não viajava sozinho. Daniel viera ao Porto com o irmão e duas amigas, professoras do ensino primário. Esperava-os uma viagem de 85 km. Em Ermesinde, Daniel pára o carro, sai e dirige-se para a berma muito provavelmente porque a sua bexiga não conseguia esperar pela chegada a Mesão Frio.

E é então que Daniel ouve chamar por si. Uma voz proveniente do interior de um carro que fazia o mesmo percurso e que também parara chama-o pelo seu nome. Era o Manuel Carlos, seu antigo colega de estudos!

Tinham sido tão amigos e depois, como sempre acontece (apesar de sempre se achar que connosco não será assim), deixaram de se ver e contudo continuavam a viver relativamente próximo um do outro: Daniel reside em Mesão Frio, o Manuel Carlos tem casa no Peso da Régua mas nessa noite vai para Lousada. Localidades separadas por não muitos quilómetros mas a vida e o tempo acabam invariavelmente a separar aqueles que nos bancos da escola se acreditavam juntos para toda a vida.

Têm tanto para falar que o Manuel Carlos propõe ao Daniel que até Penafiel sigam no mesmo carro, o seu. Até Penafiel sempre eram quase 40 quilómetros. Depois o Daniel seguiria para Mesão e ele para Lousada. Daniel concorda e entra no carro do Manuel.

Manuel Carlos propõe a Daniel que até Penafiel sigam no mesmo carro, o seu. Depois Daniel seguia para Mesão e ele para Lousada. Daniel concorda.

A viagem recomeça: o irmão de Daniel e as duas raparigas seguem no carro do Daniel, que agora é conduzido pelo seu irmão, enquanto o Daniel segue no automóvel do Manuel Carlos. Este último vai ao volante. Daniel senta-se ao seu lado .

Nada neste cenário leva a conceber que dentro de minutos Manuel Carlos terá o crâneo perfurado por uma bala disparada pela arma de calibre 6,35 que Daniel transporta consigo. Foi Manuel Carlos quem reconheceu Daniel e foi ainda ele quem propôs a troca de automóveis. Mas também é verdade que Manuel Carlos não tem possibilidade de saber que Daniel leva consigo uma arma. (E já agora porque a leva? Porque, dirá Daniel, a sua profissão obriga a permanências solitárias nas barragens embora convenha não esquecer que Daniel não vinha de barragem alguma mas sim de um serão bem acompanhado.)

Mas voltemos à estrada com Manuel Carlos. Seja porque a sua vida como aspirante de Finanças não teria muita emoção, seja porque quer impressionar o amigo reencontrado ou as raparigas que viajam na outra viatura, Manuel Carlos conduz a grande velocidade. Faz várias manobras perigosas. Na verdade vai em despique com o irmão de Daniel. Não tinham andado muito mais que cinco quilómetros quando o carro conduzido por Manuel Carlos se despista, fica fora de mão, choca com outro carro e acaba, no meio de um enorme estrondo, a entrar pelo portal de um prédio.

Seja porque a sua vida como aspirante de Finanças não teria muita emoção, seja porque quer impressionar o amigo reencontrado ou as raparigas que viajam no outro carro, Manuel Carlos conduz a grande velocidade. Faz várias manobras perigosas. Não tinham andado muito mais que cinco quilómetros quando o carro conduzido por Manuel Carlos se despista, fica fora de mão, choca com outro carro e acaba, no meio de um enorme estrondo, a entrar pelo portal de um prédio.

Nos prédios contíguos acendem-se luzes e ouvem-se vozes. Abrem-se janelas.

Os ferimentos entre os ocupantes dos carros não apresentam grande importância já os danos materiais são avultados: o carro guiado por Manuel Carlos está bastante danificado. O do condutor com quem chocou também apresenta estragos.

É precisamente Pedro Ferreira (assim se chamava o condutor do automóvel com quem chocara Manuel Carlos) o primeiro a reagir a todo esta aparatoso acidente.

Pedro Ferreira sai do seu carro e dirige-se ao de Manuel Carlos. Este dá-se de imediato como culpado. Não houve sinal de discussão. Manuel Carlos dispõe-se logo a dar os seus elementos a Pedro Ferreira. Mais propriamente Manuel Carlos e Pedro Ferreira vão proceder a um gesto então moderno e hoje quase arqueológico: vão trocar cartões de visita pois estes, além do nome dos seus possuidores, incluíam contactos como a morada e, quando este existia, também o telefone.

Mas de repente Manuel Carlos constata que não tem consigo qualquer cartão. Pedro Ferreira diz então que vai ao seu carro buscar uma esferográfica para tomar nota dos dados de Manuel Carlos. Vira costas… Quando minutos depois – ou terão sido apenas uns segundos?! – volta a olhar para o carro de Manuel Carlos o que ele vira como a cena de um acidente de automóvel está transformada no que parece ser o cenário de um crime. Pedro Ferreira vê um homem tombado e coberto de sangue. Vê também um outro homem ferido e aparentemente em estado de choque. O homem que está tombado é Manuel Carlos. O que está ferido é Daniel mas Pedro Ferreira não o tinha visto antes. Naquela avenida de Ermesinde ninguém percebe o que vê.

Um instante fatal

Nas horas seguintes, o acidente que se transformara num crime torna-se mistério: Manuel Carlos, entre a vida e a morte, não presta declarações. De Daniel sabe-se que continua detido pois é o único suspeito do assassínio de Manuel Carlos. É dele a arma de onde saiu a bala. É no seu bolso que essa arma foi encontrada ensanguentada. Era ele quem estava ao lado de Manuel Carlos quando o condutor do automóvel com o qual tinham chocado foi buscar a esferográfica. Mas porquê? Porque fez isto? Já andariam alguns a tentar desenterrar histórias de zangas antigas para explicar o inexplicável quando a polícia liberta Daniel.

O que aconteceu? O factor curiosidade, bisbilhotice, morbidez… chame-se-lhe o que se quiser que isso agora não interessa. Chamemos-lhe  por exemplo reacção natural de alguém a quem o estrondo do acidente acontecido naquela madrugada fez chegar à janela e ficar lá. Esse alguém viu pouco depois do acidente Daniel sair do carro onde Manuel Carlos se mantinha ao volante. Daniel afasta-se uns 20 metros. Está ferido e grita por socorro. Em seguida, do seu poiso privilegiado, vê Pedro Ferreira dirigir-se ao carro de Manuel Carlos. Percebe que os dois homens falam e que Pedro Ferreira vira costas.

Foi dentro deste carro parcialmente destruído que Manuel Carlos ficou só após o acidente.

Manuel Carlos fica sozinho: Daniel está fora do carro, Pedro Ferreira foi buscar a esferográfica para Manuel Carlos dar os seus dados como como culpado.

Nesse momento Manuel Carlos, condutor imprudente de noite mas aspirante de Finanças durante o dia, deve ter começado a avaliar as consequências de tudo o que acabava de lhe acontecer. O que tinha para pagar não era pouco: o carro que conduz não é seu e para mais não tem seguro; o carro do outro condutor, Pedro Ferreira, tem também estragos avultados e há ainda o portal todo amolgado em que o carro está enfeixado…

É absurdo como no meio de um acidente que envolveu várias pessoas ele, Manuel Carlos, acabou sozinho, dentro do carro, a fazer contas a um prejuízo que o apavora. Sozinho… ou talvez não: caída num dos assentos está a arma de Daniel. Seria o destino a dar-lhe a solução para um problema que não cessa de crescer?…

Manuel Carlos pega na pistola e dispara. Daniel ouve o tiro e vem até ao carro.

Manuel Carlos, condutor imprudente de noite mas aspirante de Finanças durante o dia, deve ter começado a avaliar as consequências de tudo o que acabava de lhe acontecer. O que tinha para pagar não era pouco: o carro que conduz não é seu e para mais não tem seguro; o carro do outro condutor, Pedro Ferreira, tem também estragos avultados e há ainda o portal todo amolgado em que o carro está enfaixado...

Tira a pistola da mão de Manuel Carlos e guarda-a no seu bolso. Porquê? Para evitar que Manuel Carlos disparasse outra vez – explica  Daniel às autoridades.

Manuel Carlos morreu cinco dias depois sem nunca mais ter voltado a falar. Mas por ele falaram as provas e o testemunho do curioso que da sua janela vira como as aparências podem iludir.

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