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“Na segunda-feira, os membros terão oportunidade de debater e aprovar uma moção sobre eleições antecipadas”. Foi com esta frase que o ministro dos Assuntos Parlamentares, Jacob-Ress Mogg, oficializou na Câmara dos Comuns aquilo que já tinha sido insinuado pelo Governo ao longo da semana: Boris Johnson e o seu Executivo irão voltar a tentar forçar uma ida às urnas esta segunda-feira, já depois de ter provavelmente sido concedido um adiamento do Brexit pela União Europeia (UE). E até já há data para a votação: 12 de dezembro, a caminho do Natal.

Esta será a segunda vez que o Governo de Boris insiste em apresentar a votação uma moção sob a Lei dos Mandatos Fixos Parlamentares, para que sejam convocadas eleições antecipadas. E, tal como da primeira vez (em setembro), o problema para o Executivo é só um: a moção necessita de ser aprovada por dois terços da Câmara dos Comuns, tornando por isso o apoio do Partido Trabalhista fulcral.

Mas se no Brexit há muita coisa que se mantém teimosamente no mesmo lugar, também há muito que muda: entre setembro e outubro, Boris Johnson conseguiu renegociar um novo acordo com a UE, o que não é de somenos. E todos os outros pontos que já o motivavam a tentar este golpe de sorte, que é provocar eleições para sair reforçado, mantêm-se. Razão pela qual Boris deseja, mais do que nunca, ir a votos. Mas porquê, afinal?

As sondagens dão-lhe vantagem

Em primeiro lugar, os números, que não mentem. O Partido Conservador segue destacadamente à frente nas sondagens desde que Boris Johnson se tornou o seu líder, em julho — e essa liderança não só tem sido mantida como tem até atingido níveis melhores ao longo dos tempos.

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De acordo com os dados mais recentes do YouGov, de 21 de outubro, os tories têm atualmente 37% das intenções de voto, contra apenas 22% do Labour — uma vantagem de 15 pontos percentuais. É preciso recuar a 4 de março deste ano para encontrar um momento melhor para o Partido Conservador (40%), aí ainda sob a liderança de Theresa May, numa altura em que a primeira-ministra negociava alterações com a Comissão Europeia ao seu acordo (que ainda tinha sido chumbado apenas uma vez). Nessa altura, os trabalhistas também estavam mais perto de morder os calcanhares aos conservadores, com 31% das intenções de voto.

Se tivermos em conta o sistema eleitoral britânico, o first past the post, o cenário é ainda mais apetecível para Boris Johnson, já que este é um sistema que favorece o vencedor em termos do número de deputados na Câmara. Em agosto, quando os conservadores reuniam cerca de 30% das intenções de voto nas sondagens, a Foreign Policy estimava que isso pudesse render-lhe uma maioria absoluta no Parlamento de cerca de 30 deputados de vantagem — o que contrasta com a atual maioria negativa que tem atualmente, depois de mais de 20 deputados do partido terem sido expulsos e de os 10 deputados dos aliados do DUP terem votado contra o seu calendário para um acordo.

O acordo que conseguiu com a UE alarga a sua base de apoio

Poucos previam em julho, quando Boris Johnson tomou posse como primeiro-ministro, que a sua estratégia inflexível de ameaçar a UE com um no deal poderia ser eficaz em fazer os europeus negociar — mas foi isso, de facto, que acabou por acontecer, muito embora o Governo britânico tenha cedido também bastante durante a maratona negocial.

Até aqui, Boris foi consolidando a sua vantagem ao comer eleitorado aos Brexiteers mais radicais: ao prometer que iria sair a 31 de outubro, “aconteça o que acontecer”, conseguiu roubar votos ao Partido do Brexit e neutralizar Nigel Farage e conseguiu também domesticar a ala mais eurocética do seu partido, do European Research Group, que depositou fé em Boris desde o primeiro dia.

Depois das últimas semanas, com um acordo alcançado em Bruxelas, o primeiro-ministro fez a quadratura do círculo: manteve esse apoio dos que querem o Brexit “custe o que custar” e ainda consegue apelar aos conservadores mais moderados que não querem uma saída sem acordo (e alguns trabalhistas pró-Brexit, de bónus). Com este acordo, Boris faz o 2 em 1 e reúne todos os apoiantes de um Brexit (seja ele de que tipo for) à sua volta. Perde apenas os unionistas da Irlanda do Norte, desagradados com o acordo — mas essa também é uma região que sempre foi fortemente pró-Remain e que, portanto, pode parecer aos olhos do primeiro-ministro como um dano colateral, se for compensada por ganhos para o próprio partido noutras zonas.

E, apesar de ir claramente falhar na sua promessa de sair a 31 de outubro, não parece que isso lhe venha custar votos. Como? Isso leva-nos ao próximo ponto…

A vitória em eleições seria uma legitimação

Até aqui o primeiro-ministro apostou todas as fichas numa estratégia de colocar o Governo contra o Parlamento (e até os tribunais), numa lógica de quem afirma que está a tentar conseguir o Brexit, mas é travado por todos os lados, por várias forças a favor de uma manutenção na UE.

Se conseguisse ir a eleições e saísse vencedor desse ato eleitoral, Boris veria essa estratégia vingar e poderia combater as acusações da oposição, que falam num líder ilegítimo e indigno do cargo. Por um lado, é-lhe frequentemente apontado que não foi eleito pelo povo (tendo sucedido a Theresa May num processo interno do partido) e esse argumento deixaria de colher; por outro, veria vingada a sua afirmação de que a decisão do Supremo Tribunal de considerar a suspensão do Parlamento ilegal não faz sentido — pelo menos para a maioria do eleitorado, embora possa fazer sentido para os juízes.

Isso mesmo já tinha apontado ao Observador o especialista em Ciência Política Simon Usherwood, em finais de setembro, após a decisão do Supremo: “Ele quer retratar isto como uma situação do povo vs. a elite, como se o Parlamento e os tribunais estivessem a tentar impedi-lo de retirar o Reino Unido da UE a 31 de outubro. Se aquilo que ele quer é uma eleição, esta pode ser uma estratégia que lhe serve”, disse à altura o professor da Universidade de Surrey.

Contra tudo e contra todos, Boris Johnson está focado no Brexit — e nas eleições

A estratégia de ir às urnas para sair reforçado não é de agora

Não é de todo novidade que Boris Johnson deseja há muito ir a eleições, para tentar conseguir inverter a tendência da antecessora, Theresa May. Esta dispunha de uma maioria parlamentar e convocou eleições antecipadas na esperança de a alargar — mas acabou por falhar nesse objetivo e acabar a ter de cozinhar uma aliança parlamentar com o DUP para ter maioria na Câmara.

Boris procura fazer o oposto: partir de uma maioria que era magra, chegando a ter um Governo por vezes minoritário na Câmara (foram mais as votações que perdeu do que as que ganhou), convocar eleições e transformar essa maioria instável numa clara maioria absoluta.

Nada de novo. Já em agosto surgiam vários rumores de que poderia ser essa a estratégia do primeiro-ministro, assentes em vários dados: a contratação do estratega e operativo eficaz do referendo Dominic Cummings, conjugado com um programa de Governo apostado em investimento público (sobretudo no Serviço Nacional de Saíde) eram argumentos fortes que apontavam para uma lógica de campanha eleitoral dentro de Downing Street. “Isto, conjugado com uma campanha publicitária pelo Brexit, parece mesmo que se estão a preparar para uma eleição lá para setembro, outubro ou novembro”, dizia à altura ao Observador o professor Paul Webb, da Universidade de Sussex.

Boris declara guerra à UE e prepara o Brexit como quem prepara eleições. Coincidência?

A proposta que Boris Johnson apresentou no Parlamento para convocar eleições antecipadas em setembro confirmou isso mesmo. E agora a nova moção, em finais de outubro, volta a apontar na mesma direção. A estratégia não mudou.

Quer aproveitar as fragilidades do Labour — mas esse também pode ser o seu problema

Tudo isto só resulta porque, do outro lado dos Comuns, o maior partido da oposição está fragilizado, muito embora esteja longe do poder há anos. Com Jeremy Corbyn à frente do partido, o Labour tem levado a cabo uma estratégia hesitante face ao Brexit, que parece não convencer alguns eleitores, porque tenta agradar aos dois lados da barricada no tema. Corbyn afirma que, com um Governo do Labour, seria negociado um novo acordo para o Brexit, mas este seria referendado, dando oportunidade a todos para se pronunciarem. O líder só não clarifica pelo que é que faria campanha nesse acordo.

E essa posição tem tido consequências nas sondagens, como explicou ao Observador Steven Fielding, especialista no Partido Trabalhista: “Esta posição que o Labour tem tido, de tentar agradar tanto aos que votaram Leave como aos que votaram Remain, não está a funcionar. Basta ver as eleições europeias, onde perderam cerca de 30% dos seus eleitores”, apontou o professor da Universidade de Nottingham. “O problema de Corbyn é que, a não ser que altere a sua política face ao Brexit e torne o seu partido num partido pró-Remain, irá dividir os votos com os liberais-democratas e fragmentar o eleitorado, enquanto que do outro lado Boris Johnson agrega os votos à sua volta”, analisava Fielding em inícios de setembro.

Brexit: o dilema de Jeremy Corbyn que pode condenar o Labour “à desgraça”

Os conservadores sabem-no e tentarão explorar essa fragilidade, sobretudo em zonas tradicionalmente trabalhistas, mas pró-Brexit, como as Midlands ocidentais ou o nordeste do país, explica a Spectator: “Irão argumentar que um voto no Labour é um voto num segundo referendo inquinado a favor do Remain e que virá aí mais um ano de disputa sobre o Brexit”, resume a revista.

Mas são precisamente estas fragilidades — e, uma vez mais, os números das sondagens, que não enganam — que podem fazer com que os trabalhistas não mordam o isco e não aprovem esta ida às urnas.

A confirmar-se o adiamento do Brexit esta sexta-feira, seria estranho que não o fizessem, já que Jeremy Corbyn tem dito repetidamente que apoiaria eleições antecipadas caso o país esteja livre do risco de um no deal. Ainda esta quinta-feira, já depois de ser conhecida a intenção do Governo, reforçou isso mesmo: “Ando a pedir eleições desde que tivemos a última, porque este país necessita de uma para lidar com todos os problemas de injustiça social que tem — mas o no deal tem de sair de cima da mesa.”

Isso não significa, contudo, que a aprovação esteja garantida para Boris Johnson. Em caso de adiamento curto, o mais certo é o Labour argumentar que o risco se mantém. Em caso de extensão até finais de janeiro, o jogo de retórica complica-se, mas não seria a primeira vez que o Labour conseguiria dar a volta ao texto. Dentro do partido, há quem ache que é altura de ir a jogo: Bring it on, disse a Momentum, associação da sociedade civil vista como muito próxima de Corbyn.

Mas também há quem esteja totalmente contra essa hipótese e já ensaie outros argumentos: “Esta ‘oferta de eleições’ é uma ameaça vã [de Boris] para esconder a sua própria hesitação e atraso em apresentar de novo o acordo ao Parlamento”, apontou a deputada Lucy Powell, que prefere focar tudo no jogo parlamentar e nas discussões sobre o calendário do acordo proposto pelo primeiro-ministro.

Esta segunda-feira saberemos qual das correntes de pensamento do Labour saiu por cima e se Boris Johnson conseguiu o que quer. Mas, como diz o ditado, é preciso ter cuidado com o que se deseja. Porque em política tudo é imprevisível e, em tempos de Brexit, não há dados adquiridos — muito menos a vitória numa eleição.