A certeza parte do próprio núcleo duro de Rui Rio: “Se dependermos do aparelho para continuarmos à frente do partido, não teremos hipótese. Será muito difícil. As estruturas nunca nos foram muito afetas e acabámos de dar cabo do que restava”, diz ao Observador um dirigente próximo do líder social-democrata, que resume assim a convicção profunda que existe no quartel-general do PSD: as guerras compradas na escolha de candidatos para as próximas autárquicas dinamitou quase todas as pontes que restavam entre a atual liderança e o aparelho partidário. Por outras palavras: só um resultado convincente vai permitir a Rio segurar o partido.
O tema não é exatamente tabu na São Caetano. A sobrevivência da atual liderança do PSD vai ser colocada em jogo nas próximas eleições. A aposta foi alta e de alto risco. Mas não havia outra forma: as autárquicas de 2021 foram, desde o minuto zero da era Rio, o alfa e ómega da estratégia social-democrata; falhar significará o fim da linha, seja ele imposto pelo partido ou auto-imposto — não é sequer certo que Rui Rio queira continuar na presidência do PSD se somar um resultado muito aquém das expectativas.
Aos que nunca gostaram de Rui Rio (desde o frente a frente com Pedro Santana Lopes às diretas com Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz) juntar-se-ão, eventualmente, todos os novos desiludidos. Um pouco por todos os distritos do país (Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Guarda, Castelo Branco, Coimbra, Leiria…), a direção de Rio impôs-se para colocar aqueles que achava serem os candidatos em melhores condições de vencer. No futuro, as boas intenções valerão de pouco quando as estruturas forem convidadas a escolher um lado vencedor.
Francisco Rodrigues dos Santos, do CDS, tem também a cabeça a prémio. Em janeiro, Adolfo Mesquita Nunes desafiou abertamente o líder democrata-cristão. Rodrigues dos Santos resistiu, mas não sem uns quantos golpes quase mortais e não sem ser obrigado a prometer eleições internas para depois das autárquicas.
No cenário em que apostam Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, as próximas eleições autárquicas serão o início do fim de António Costa. No cenário em que apostam os céticos e os críticos, as próximas eleições autárquicas vão decapitar as lideranças dos dois maiores partidos da direita como antecâmara das eleições legislativas, cuja data é uma incógnita — oficialmente, serão apenas em 2023; oficiosamente, muitos, à esquerda e à direita, vão fazendo contas ao ano de 2022. Em qualquer dos casos, só uma vitória robusta da direita nas autárquicas permitirá sossegar (ou neutralizar) os espíritos mais impacientes dentro de PSD e CDS. Mas as ameaças estão aí.
Rio fica ou Rio vai?
O caminho é estreito, mas existe: se vencer as apostas que fez — em Lisboa, com Carlos Moedas, em Sintra, com Ricardo Baptista Leite, em Coimbra, com José Manuel Silva, em Viana do Castelo, com Eduardo Teixeira –, os adversários internos de Rui Rio poucos argumentos terão para forçar a queda do líder. Se crescer substancialmente em Gaia, com António Oliveira, no Porto, com Vladimiro Feliz, ou até na Amadora, com Suzana Garcia, idem aspas. E nem a controvérsia destas escolhas será lembrada.
Mas as reais hipóteses de vitória são tudo menos cristalinas. Até hoje, Rio não foi mais longe do que comprometer-se com uma única meta: mais câmaras, mais mandatos e mais votos do que em 2017. Um mar de possibilidades onde cabe praticamente tudo para construir uma narrativa vencedora. “Seria uma vitória conseguirmos mais meia-dúzia de câmaras médias; como seria uma vitória conseguirmos Lisboa e Coimbra e duas ou três capitais de distrito, como Leiria ou Castelo Branco”, assume fonte da direção.
Com este guia de leitura, a latitude interpretações dos resultados e dos movimentos pós-eleitorais é enorme. Rio só tomará uma decisão depois de olhar para o mapa autárquico que sair das próximas eleições. Ainda assim, mesmo no núcleo duro do líder do PSD, há quem assuma o pior dos cenários: “O assunto não foi sequer discutido, mas sabemos que vai pesar tudo e perceber se tem condições para continuar. Se achar que não tem, sai e deixa o cargo”, diz um alto-dirigente social-democrata ao Observador.
Para já, continuam a valer as palavras de Rio ao Observador: “Se vir que isto não tem pernas para andar fico aqui a fazer o quê? Não estou agarrado ao lugar”, garantiu o líder do PSD numa entrevista publicada ainda fevereiro, quando a lista de candidatos autárquicos era pouco mais do que uma soma de rumores. Mas as pernas do PSD não são as únicas que contam para Rio; as do Governo (e as pernas da minimal geringonça) também vão pesar na decisão.
E se o pântano for real?
No imaginário da atual direção do PSD esteve sempre o sonho de uma reedição do pântano que, em 2001, provocou a queda de António Guterres depois de umas eleições autárquicas desastrosas para os socialistas. A pandemia trocou naturalmente a volta a todos, incluindo aos dirigentes próximos de Rui Rio: obrigou o PSD a recuar para a posição de aliado circunstancial e despolitizou o país. Os sociais-democratas, que apostavam num biénio 2019-2021 de intenso desgaste na ‘geringonça’ e de declínio progessivo de António Costa, enfrentam agora um país que, apesar de estar a viver uma crise sem precedentes, tenderá a preferir a estabilidade política à alternância.
Não há, também pelo clima que se vive, uma especial esperança que as autárquicas venham a transformar radicalmente essa perceção. “Não ignoramos que há o que se pode chamar uma espécie de efeito rally ’round the flag”, nota outra fonte da direção do PSD, para sintetizar um conceito da ciência política que explica o aumento do apoio a um determinado governo em funções durante um período de profunda crise internacional ou de ameaça externa.
A campanha autárquica será duplamente difícil por isso mesmo: a situação pandémica não permitirá grandes demonstrações de força no terreno e os autarcas em funções (a grande maioria do PS) estão a desdobrar-se em apoios (económicos e sociais) às comunidades, o que lhes dá um protagonismo e uma popularidade que poderiam não ter noutras circunstâncias.
Ainda assim, os sociais-democratas tentarão (continuar a) capitalizar a falta de respostas do Governo às empresas, ao desemprego galopante, à crise social e económica. Com outro dado em jogo. Depois das autárquicas, António Costa terá de negociar o Orçamento do Estado para 2022 com a esquerda, sendo que lhe resta pouco mais do que o PCP como garante de sobrevivência política. E aí entra um fator que pesará quase tanto como o score eleitoral conseguido nas autárquicas: o contexto próprio de António Costa.
O calendário até joga a favor de Rui Rio: com eleições autárquicas agendadas para setembro, discussão do Orçamento prevista para outubro e eleições internas agendadas apenas para janeiro de 2022, o líder social-democrata terá na sua posse dados relevantes para medir a resiliência, a estabilidade do Governo socialista e a vontade de António Costa em continuar.
Esse é, aliás, o maior dos picantes nesta equação: derrotar o atual líder socialista nas urnas é uma coisa; derrotar o herdeiro (seja ele Pedro Nuno Santos, Fernando Medina ou outro protagonista) é toda uma outra história com promessas de final feliz. Em teoria, será sempre mais fácil para a direita derrotar o eventual sucessor de Costa do que o próprio. E isso terá um peso próprio em qualquer decisão do líder do PSD.
Se Rui Rio sentir o cheiro a sangue na água, e mesmo sem um resultado brilhante nas autárquicas, não é de excluir que continue à frente do partido. Ou, pelo menos, que o venha a tentar. Mas, mesmo a esta distância, há quem, dentro do núcleo duro de Rui Rio, esteja a pensar noutro futuro. E o futuro desta ala do partido pode passar por Carlos Moedas.
A próxima corrida
O antigo comissário europeu foi a grande aposta de Rui Rio nestas eleições autárquicas. A direção do PSD não esquece como Moedas, depois de muita resistência, acabou por aceitar o desafio eleitoral deixando a cadeira de sonho que tinha na Fundação Gulbenkian em claro contraste com o que fez Paulo Rangel — o eurodeputado foi convidado para concorrer ao Porto, resistiu e rejeitou. E tudo de forma mais ou menos pública, mais ou menos assumida. Alguns dirigentes próximos de Rio não o esquecem — nem vão deixar esquecer.
“Se Carlos Moedas não vencer em Lisboa, mas tiver um bom resultado, mantém todas as condições de ser líder do PSD. Não é tão polarizador como Paulo Rangel e sacrificou-se pelo partido”, nota ao Observador fonte da direção social-democrata. A narrativa vai sendo construída: se Rio sair de cena, o que restar do rioísmo já escolheu o seu cavalo vencedor na próxima corrida eleitoral.
Carlos Moedas não ignora a simpatia que colhe da linha oficial do partido, embora vá jurando, entrevista após entrevista, que está inteiramente focado no desafio de Lisboa e que não pensa na liderança do partido. A máquina que o acompanha não tem a mesma convicção: Moedas está ciente que a vitória contra Fernando Medina é difícil, mas sabe igualmente que um resultado na casa dos 30% o deixa em francas condições de ambicionar a presidência do PSD no futuro pós-Rio.
Paulo Rangel terá, mesmo assim, uma palavra a dizer. O eurodeputado vem correndo em pista própria há muito tempo, tem-se distanciado de Rui Rio em momentos importantes da vida interna do partido, tem apoios importantes em estruturas nucleares do PSD e uma experiência política e exposição mediática que Carlos Moedas (ainda) não tem.
As condições para o assalto ao castelo existem e tudo dependerá da vontade do próprio — mas não é a primeira vez que o nome de Rangel é atirado para a corrida à liderança do PSD e não seria a primeira vez que essa candidatura morreria na praia.
Mesmo com todos os imponderáveis, os candidatos a candidatos à liderança do PSD vão fazendo fila. Luís Montenegro tem estado discreto e assim deve continuar por mais uns meses. Mas, entre os seus antigos apoiantes, há quem jure que, quando o momento chegar, surgirá uma candidatura desse espaço para estragar os planos de Rangel (difícil engolir por ter estado com Rio nas últimas eleições diretas) e de Moedas (que desiludiu por se ter predisposto a ser o seguro de vida de Rio nestas eleições diretas). As chaves da São Caetano não vão ser entregues sem luta.
Quanto a Miguel Pinto Luz, vice de Cascais e challenger nas últimas diretas, não deve desistir de ir a votos para tentar duplicar os 9% que teve em 2020. O número dois de Carlos Carreiras quer ser um nome a ter em conta para qualquer futura liderança social-democrata e quanto mais peso tiver nas próximas eleições maior será a sua capacidade de influenciar. Nos próximos meses é de esperar que venha a afastar-se progressivamente de Rio. Resumindo e baralhando: já se joga o jogo do trono social-democrata — se é que alguma vez deixou de ser jogado.
FRS vs. AMN II
No CDS, a bipolarização do partido arrasta-se desde as últimas eleições internas: Francisco Rodrigues dos Santos vs. Adolfo Mesquita Nunes, resultados (tímidos mas com vitórias concretas) contra expectativas e sondagens (ou a falta de ambas), legitimidade para tentar um caminho alternativo contra as certezas da morte anunciada do partido se a insistência no caminho escolhido se mantiver.
O psicodrama democrata-cristão atingiu o seu pináculo em janeiro. E se é verdade que o líder resistiu, fê-lo a jogar em casa — num Conselho Nacional que dominava pela simpatia dos conselheiros anteriormente escolhidos –, com baixas relevantes entre os seus apoiantes (Filipe Lobo d’Ávila à cabeça) e com um resultado muito modesto (54% dos votos).
Daí para cá, o partido continua por pacificar. As escolhas autárquicas já revolveram as entranhas do partido, em particular em Lisboa, com acusações de “saneamento político” à mistura. Na Guarda e em Portalegre, os dois líderes distritais a baterem com a porta, queixando-se de “profunda frustração” com a estratégia derrotista do partido.
Em muitos pontos do país democrata-cristão, instalou-se a ideia de que a direção abdicou de disputar estas autárquicas como forma de autopreservação: quanto menos der nas vistas, menos responsabilidades lhe serão assacadas.
Injustas ou não — PSD e CDS têm um histórico de alianças nas autárquicas –, Rodrigues dos Santos terá de responder pelos resultados que o centro-direita tiver nas próximas eleições. Adolfo Mesquita Nunes mantém o desejo e a ambição de disputar a liderança do partido e espera agora que, uma vez devolvida a palavra aos militantes, o desfecho seja outro.
A verdade é que depois dos Açores e das presidenciais, também agora o risco é quase nulo — tem apenas seis autarquias para defender ainda que numa delas, Ponte de Lima, a joia da coroa do CDS, não serão favas contadas.
Por outro lado, em São João da Madeira e na Covilhã, onde o partido vai de facto liderar a coligação de direita e onde tem reais hipóteses de vencer, as vitórias serão sempre partilhadas com João Almeida e Adolfo Mesquita Nunes, antigo e futuro adversários diretos.
Pior: ao aliar-se ao PSD em grande parte dos concelhos, Rodrigues dos Santos fez da sorte de Rio a sua. Ao dia de hoje, é um dado adquirido que vai enfrentar oposição interna; se vai sobreviver politicamente dependerá da narrativa que tiver para oferecer aos militantes quando o momento chegar.
No dia em apresentou o acordo de coligação para as autárquicas ao lado de Rui Rio, também ele sobrevivente de uma tentativa de defenestramento em Conselho Nacional, o líder do CDS traçou um paralelo e deixou uma provocação aos críticos e adversários internos. “Tentaram derrotar-nos e não foram bem sucedidos. Agora também não vão conseguir porque acredito que vamos ter bons resultados.”
Rodrigues dos Santos colou-se ao passado de Rio para antecipar um futuro igualmente resiliente. O destino de um e de outro voltam agora a estar cruzados nas próximas autárquicas. Os dados estão lançados.