Os esclarecimentos prestados pela TAP ao Governo sobre os passos do acordo que levou à saída de Alexandra Reis da administração da transportadora tiveram já uma consequência política: a demissão da secretária de Estado do Tesouro a pedido do ministro das Finanças. O lastro pode não ficar por aqui. António Costa tinha avisado que os esclarecimentos estavam a ser avaliados bem como os passos seguintes. E também Marcelo Rebelo de Sousa já tinha pedido esclarecimentos. Fernando Medina pediu a demissão de Alexandra Reis. Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, ainda não reagiu além do comunicado conjunto depois de receber os esclarecimentos da TAP.
Os esclarecimentos da TAP chegaram com a informação sobre os valores, a sustentação jurídica da negociação e os contornos da saída de Alexandra Reis. E sabe-se que Alexandra Reis recebeu efetivamente 500 mil euros (o que a TAP diz não ser na totalidade a indemnização), mas pediu quase 1,5 milhões de euros, numa altura em que a TAP estava já ao abrigo do plano de reestruturação que determinou cortes salariais e de pessoal.
Ao receber os esclarecimentos, o Governo decidiu enviá-los para a Inspeção-Geral de Finanças e para a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários para “avaliação de todos os factos que tenham relevância no âmbito das suas esferas de atuação”. Mas faltam algumas respostas fundamentais, sobretudo no plano político.
Uma delas é sobre o conhecimento que a tutela da TAP — os ministérios das Finanças e Infraestruturas — teve deste acordo de rescisão com uma administradora que foi nomeada oito meses antes de sair por proposta do acionista Estado. Pedro Nuno Santos já era o ministro das Infraestruturas e foi nessa qualidade que convidou Alexandra Reis para a presidência da NAV, empresa de controlo aéreo, poucos meses depois desta ter saído da TAP. Fernando Medina assumiu a pasta em março, mas levou a antiga gestora da TAP para o seu ministério.
António Costa afirmou esta terça-feira que “desconhecia em absoluto os antecedentes” da situação e que tinha solicitado esclarecimentos aos ministros das Finanças, e das Infraestruturas e da Habitação. Já depois de conhecidos as explicações da TAP, o primeiro-ministro indicou que ia esperar a avaliação dos seus ministros aos esclarecimentos feitos para avaliar “os passos seguintes”, não deixando de lembrar a disponibilidade manifestada pela secretária de Estado do Tesouro para “devolver qualquer quantia que não lhe fosse devida e que recebeu nos termos acordados entre os advogados”.
A saída de Alexandra Reis enquanto membro do governo foi consumada quatro horas depois de serem conhecidas as explicações da TAP. Enquanto secretária de Estado do Tesouro, a governante teria debaixo das suas responsabilidades a TAP, mas por tudo o que se sabe agora — inclusive que saiu da empresa por acordo mas por vontade da administração liderada por Christine Ourmières-Widener — a sua posição enquanto tutela direta da companhia aérea ficaria fragilizada. E Fernando Medina fez cair a secretária de Estado que dificilmente reuniria agora as condições políticas para poder atuar naquele que é o principal dossiê que integra a pasta — a TAP e com uma privatização no horizonte.
No rasto das perguntas por responder e das potenciais consequências deste caso está ainda a administração da TAP cuja decisão de negociar um acordo e uma compensação com base no código das sociedades comerciais, por omissão do estatuto do gestor público. A opção, suportada por escritórios de advogados, permitiu a Alexandra Reis escapar à devolução de uma parte da compensação pelo desempenho de outras funções públicas e será alvo de escrutínio legal.
O que ficou esclarecido e por esclarecer depois das respostas da TAP
A senhora eng. Alexandra Reis (“AR”) ingressou na Transportes Aéreos Portugueses, SA, (“TAP”) em 1 de setembro de 2017, ao abrigo de contrato de trabalho sem termo para exercício de funções de direção de Chief Procurement Officer.
Em setembro de 2017, Alexandra Reis entrou para a TAP, por convite de David Pedrosa (administrador da TAP e filho do então acionista Humberto Pedrosa), para diretora de compras. Nesta altura celebrou um contrato sem termo com a empresa, tendo sido este o primeiro vínculo contratual com a TAP.
O referido contrato de trabalho sem termo foi suspenso, por força da lei, mas continuando a vencer antiguidade, em virtude da nomeação de AR como membro do Conselho de Administração da TAP em 30 de setembro de 2020, para concluir o mandato de três anos que estava em curso e que tinha o seu termo a 31 dezembro de 2020.
Neste ponto, a TAP explica que o tal contrato sem termo foi suspenso em setembro de 2020, quando Alexandra Reis foi nomeada para o Conselho de Administração da TAP. Meses depois, em outubro desse mesmo ano, o Estado português concretizou a aquisição de participações sociais dos acionistas privados da TAP, ficando com 72,5% da companhia aérea. Humberto Pedrosa manteve 22,5% e os trabalhadores 5%. Alexandra Reis manteve-se e foi então escolhida pelo Governo para a comissão executiva da TAP, com um papel ativo no plano de reestruturação da companhia. Durante a ascensão na administração da companhia manteve-se suspenso o primeiro contrato, mas os direitos a ele inerentes (como a antiguidade na empresa por exemplo) mantiveram-se intactos.
“AR (Alexandra Reis) foi reeleita para um novo mandato quadrienal de administradora na TAP de 1 de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2024″.
Em junho de 2021, o Governo escolhe Christine Ourmiéres-Widener para diretora executiva da TAP. Alexandra Reis mantém-se na administração, reeleita para o mandato que ia até 31 de dezembro de 2024. Mas no final de 2021, a estrutura acionista da TAP volta a mudar, com Humberto Pedrosa a deixar de ter uma participação na companhia. Durante os seis meses de trabalho, Alexandra Reis e Ourmiéres-Widener incompatibilizam-se, segundo apurou o Observador, e a administradora coloca nessa altura o lugar à disposição, na sequência da mudança acionista. Era uma formalidade que foi, no entanto, aceite pela presidente executiva e é nessa altura que se inicia um processo de negociação para a rescisão, quer como trabalhadora (tinha o tal contrato sem termo celebrado em 2017), quer como administradora (desde setembro de 2020).
“Por iniciativa da TAP foi iniciado processo negocial com Alexandra Reis no sentido de ser consensualizada por acordo a cessação imediata de todos os vínculos contratuais existentes entre Alexandra Reis e todas as empresas do Grupo TAP”
A questão dominou grande parte da discussão pública e política: se Alexandra Reis tinha tido a iniciativa de sair da TAP, tal como a empresa comunicou interna e externamente (inclusivamente junto da CMVM), então tinha direito a indemnização porquê?
Ora, na única reação que teve ao caso, numa curta declaração enviada à agência Lusa, Alexandra Reis, ainda era secretária de Estado, veio dizer que, ao contrário do que afirmou oficialmente a TAP, tinha deixado a companhia aérea por decisão da empresa – nos bastidores, sempre correu a versão que Alexandra Reis e Christine Ourmières-Widener se tinham incompatibilizado e que isso terá ditado a saída da primeira.
Com este esclarecimento da TAP, a questão parece ficar arrumada: foi a companhia aérea que tomou a iniciativa de afastar Alexandra Reis, sendo que, para tal, teria de chegar a acordo com a administradora e encontrar a indemnização e o quadro legal adequado.
“Como contrapartida pela cessação de todas as referidas relações contratuais, e não obstante a pretensão inicial de Alexandra Reis se cifrar em € 1.479.250, foi possível reduzir e acordar um valor global agregado ilíquido de € 500.000 a pagar a Alexandra Reis.”
Outro dos pontos que fica agora cabalmente esclarecido: o montante que Alexandra Reis recebeu por deixar a TAP. Inicialmente, o valor foi avançado pelo Correio da Manhã e, apesar de nunca contestado, carecia de confirmação oficial.
Também se desata outro nó. Numa das muitas declarações que fez, Marcelo Rebelo de Sousa chegou a sugerir que a indemnização de Alexandra Reis poderia ter sido três vezes superior àquela que a TAP efetivamente entregou à agora ex-secretária de Estado. Nem o Presidente da República explicou de onde tinha retirado este valor, nem as partes envolvidas explicavam este intervalo.
Agora, a TAP esclarece: inicialmente, Alexandra Reis pretendia receber sensivelmente 1,5 milhões de euros para aceitar sair da companhia aérea; depois das negociações, a cifra fixou-se nos tais 500 mil euros. Considerando os três anos e quatro meses que faltavam para terminar o mandato, a retribuição devida por esse período e considerando o valor anual indicado pela TAP de 336 mil euros, chegamos a pouco mais de um milhão de euros, aos quais seriam somados os valores das férias não gozadas e as compensações pela desvinculação às várias empresas do grupo.
“Do valor global acordado previsto no parágrafo (vii) anterior, € 56.500 correspondem especificamente à compensação pela cessação do contrato de trabalho sem termo de Alexandra Reis como diretora da empresa”.
Este valor diz respeito ao contrato de trabalho inicialmente celebrado, quando Alexandra Reis entrou para a TAP em 2017, para dirigir as compras da empresa. O contrato não tinha termo e, para este caso, haveria sempre lugar a uma compensação salarial para a trabalhadora se ir embora, já que não era um despedimento com justa causa. Para chegar a esse valor contaram, assim, os anos de vínculo (já que a antiguidade ficou garantida apesar da suspensão deste contrato durante o período em que passou a gestora da TAP) e o valor mensal base que recebia nessa fase.
“Como contrapartida pela cessação antecipada dos contratos de mandato referentes às funções de administração, foi acordada uma compensação global agregada ilíquida de € 443.500, sendo importante referir que, que subjacente à mesma, se consideram (embora de forma não discriminada) duas rubricas em negociação: (a) € 107.500 de remunerações vencidas reclamadas, correspondentes a férias não gozadas; e b) € 336.000 de remunerações vincendas, correspondentes a cerca de 1 ano de retribuição base, considerando a retribuição ilíquida sem reduções decorrentes dos acordos de emergência ou outras deduções”.
Os esclarecimentos enviados pela TAP clarificam que neste acordo de saída foram consideradas as remunerações devidas à administradora sem o efeito dos vários cortes salariais aplicados à gestão da TAP. Assim se chega ao valor de 336 mil euros relativos a um ano de retribuição base, sem o corte de 30% aplicado em 2021 e que fez com que Alexandra Reis tivesse passado a receber 245 mil euros. Também entrou no pacote o montante de 107,5 mil euros relativo a férias não gozadas pela gestora até à data da saída.
“Na sequência do acordo alcançado, Alexandra Reis emitiu cartas de renúncia, que suportaram o registo junto da conservatória do registo comercial da cessação de funções de administração, bem como o anúncio feito ao mercado.”
Apesar de ter sido a TAP a iniciar a negociação para Alexandra Reis sair, o acordo acabou por determinar que seria a gestora a renunciar ao cargo. É que, caso não fosse feito pela modalidade de renúncia, teria de ser destituída, o que implicaria decisão acionista na assembleia-geral. Isto ao abrigo do Código das Sociedades Comerciais, para o qual a TAP remeteu o enquadramento legal, dizendo ser essa a lei em caso de rescisão. Neste esclarecimento a TAP admite que foi decidida a renúncia pelo acordo. E, depois de acordado, Alexandra Reis escreveu à sociedade TAP a renunciar ao cargo de administradora, pelo que o seu efeito, conforme determina o Código das Sociedades Comerciais, só tem efeitos no mês seguinte. E foi isso que foi, segundo a TAP, comunicado ao mercado, à CMVM, e registado legalmente. No comunicado à CMVM foi dito que a renúncia estava ligada ao facto de Alexandra Reis ter sido nomeada pelos anteriores acionistas.
“Tendo sido nomeada pelos anteriores acionistas, e na sequência da alteração da estrutura societária da TAP, Alexandra Reis, vogal e membro do conselho de administração e comissão executiva da TAP, apresentou hoje [4 de fevereiro] renúncia ao cargo, decidindo encerrar este capítulo da sua vida profissional e abraçando agora novos desafios”, e a TAP ainda aproveitou o comunicado para agradecer “todo o serviço prestado, numa altura particularmente desafiante para a companhia, e deseja-lhe as maiores felicidades pessoais e profissionais para o futuro”.
“Como parte do acordo, foi consensualizada uma comunicação entre as partes, para fins internos e externos”.
Em fevereiro deste ano, a desvinculação foi comunicada oficialmente ao mercado, através de um comunicado à CMVM, onde a TAP detalha que Alexandra Reis “apresentou renúncia ao cargo, decidindo encerrar este capítulo da sua vida profissional e abraçando agora novos desafios”. A formulação indiciava que a decisão tinha sido da própria gestora que entretanto veio esclarecer, esta segunda-feira, que a saída resultara da vontade da companhia. Foi a própria a renunciar ao cargo, depois de alcançado o acordo de saída.
A CMVM, questionada pelo Observador antes dos esclarecimentos da TAP, tinha afirmado que “os emitentes de obrigações [é o caso da TAP, que não tem ações cotadas, mas sim obrigações] cotadas têm o dever de divulgar as alterações que ocorram na composição dos seus órgãos sociais, com rigor e de forma tempestiva”, admitindo que aos emitentes de obrigações não é exigido o grau de informação que aos emitentes de ações. Por isso, ainda que tenham de informar sobre mudanças nos órgãos sociais, “informação sobre os acordos referentes ao pagamento de indemnizações no contexto da cessação de funções de membros dos órgãos sociais constitui, nesse sentido, exigência típica do relatório de governo societário que, no entanto, não é aplicável a emitentes de obrigações”.
“A TAP e Alexandra Reis submeteram o teor do referido acordo de cessação a um compromisso recíproco de confidencialidade.”
O acordo agora detalhado ficou, segundo revela agora a TAP, sujeito a confidencialidade quer por parte da companhia do Estado quer pela sua ex-administradora. No entanto acabou por ser noticiado no passado sábado e era do conhecimento até do Presidente da República que, na segunda-feira e ainda antes de conhecido este esclarecimento da TAP, já tinha dito que a agora secretária de Estado tinha pedido uma compensação por despedimento superior à acordada, chegando mesmo a adiantar o valor: “Por aquilo que apurei, trata-se de uma indemnização negociada de um terço e a sua saída foi por decisão da empresa e não a pedido da própria”. Foi precisamente esse o valor que agora se apurou que foi pedido inicialmente por Alexandra Reis, 1,5 milhões de euros.
“Relativamente ao enquadramento legal, a TAP aplicou os regimes legais decorrentes da circunstância de a empresa integrar o Sector Público Empresarial, em articulação, no omisso, com o quadro normativo do Código das Sociedades Comerciais, nos seguintes termos: i) sendo a TAP uma pessoa coletiva com capital exclusivamente público (sob a influência dominante do Estado), estava e está, com algumas exceções, sujeita ao Regime do Sector Público empresarial, nos termos do Decreto-Lei n.o 133/2013 de 3 de outubro, pelo que, os membros designados para os respetivos órgãos de gestão ou administração estão, em princípio e com algumas exceções, sujeitos ao Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 71/2007 de 27 de março (“EGP”)”
A TAP reconhece que, tal como o Observador avançou, está integrada no setor empresarial do Estado e que os seus administradores estão sujeitos ao estatuto do gestor público que estabelece um limite de 12 meses de salário para o pagamento de indemnizações a gestores que sejam demitidos por conveniência antes do final do mandato. Mas também sinaliza que não houve uma demissão e que em caso de omissão recorreu ao código das sociedades comerciais.
“O capítulo V do EGP (estatuto do gestor público), que trata da temática da “responsabilidade e cessação de funções”, prevê como modalidades de cessação das funções de administração a dissolução do conselho de administração, a demissão ou a renúncia (cfr. artigos 24.o a 27.0). O EGP não contempla expressamente o acordo como possível forma de cessação de funções de administração, mas também a não veda.
O artigo 40.º do EGP estabelece uma remissão legal para o Código das Sociedades Comerciais, prevendo que, em tudo o que se encontrar especificamente previsto no EGP, aplicar-se-á este diploma legal”.
Em todo o esclarecimento a TAP remete para o Código das Sociedades Comerciais o enquadramento deste caso, para que a saída de Alexandra Reis não fosse considerada demissão. O Estatuto do Gestor Público (EGP) permite que qualquer gestor público possa ser “livremente demitido”. O que implicaria não apenas uma limitação na indemnização, como também poderia determinar a devolução de parte dessa compensação por ter voltado a ter (depois da saída da TAP) funções públicas – primeiro foi para a NAV, empresa pública, e mais recentemente para o Governo como secretária de Estado do Tesouro. Só a renúncia, prevista no EGP, remete para o Código das Sociedades Comerciais, que não estabelece limites para indemnizações. E, conforme diz a TAP, um acordo entre partes, como terá sido aqui estabelecido, não é vedado pelo EGP, remetendo também para o Código das Sociedades todas as matérias que não estejam tipificadas no EGP.
“Não obstante, e como referido, o valor parcelar, embora não segregado, correspondente especificamente à compensação pela cessação antecipada das funções de administração correspondeu a € 336.000, inferior à retribuição base anual de Alexandra Reis (€ 350.000), a que se refere o artigo 26.º do EGP, considerando a retribuição ilíquida sem reduções decorrentes dos acordos de emergência ou outras deduções”.
Apesar de ter recorrido ao Código das Sociedades Comerciais para estabelecer a compensação por rescisão através de mútuo acordo, a TAP sublinha que o montante da retribuição devida pelo desempenho do cargo de administração respeita o limite de 12 meses de indemnização estabelecido no estatuto do gestor público, considerando a retribuição total não sujeita aos cortes aplicados aos membros da administração. E até é ligeiramente inferior, indica a TAP, sem justificar a diferença.