Ei-las, as campeãs nacionais, que não vivem do futebol mas por ele. São amadoras profissionais, não-remuneradas, disputam a modalidade por mera carolice, mas fazem-no com o brio e a paixão de um Ronaldo ou de um Messi. Durante o dia são mães, trabalhadoras, estudantes, há uma mulher polícia, uma veterinária, e um sem número de professoras de educação física. E à noite, três vezes por semana, fora de horas, dão um nó nos atacadores das botas, vestem a camisola do “Fófó”, e, dê lá por onde der, quando o treino começa não há cansaço que as desencoraje. O Observador foi conhecê-las no treino que antecedeu o derradeiro jogo do campeonato Nacional Feminino, quando já sabiam que tinham sido campeãs nacionais. Acabariam por empatar a zeros com o Valadares Gaia, terminando a Fase Final sem derrotas.
Matilde Fidalgo quer ser engenheira do ambiente. Mas também quer ser como Fábio Coentrão. O lateral-esquerdo do Real Madrid é um dos ídolos de Matilde, mais a mais, sendo ela lateral como Fábio, internacional por Portugal como Fábio, e, diz quem a vê no campo, veloz e tecnicista como o outrora “Figo das Caxinas”. Está no “Fófó” desde os 15 anos. E começou logo a jogar com as mais graúdas, sem temores nem peias, ela que até sempre jogou com os rapazes. “Comecei a jogar futebol no Colégio S. João de Brito, em Lisboa. E joguei sempre com eles, até que um dia o treinador me disse que eu já não podia jogar mais, que eu tinha que sair, e ir procurar um clube só para raparigas. Foi o que fiz, e vim treinar ao “Fófó”. Honestamente, eu nem sabia como é que era o futebol feminino em Portugal. Não fazia ideia. Mas já cá estou há quatro épocas. E gosto.”
Matilde é a capitã de equipa, apesar de só ter 20 anos. Mas a líder dentro de campo é Sílvia Brunheira. Pela posição que ocupa, bem no centro do meio-campo, o número “6” na camisola, por já ter sido campeã nacional em onze ocasiões seguidas, sempre no 1º Dezembro de Sintra, e mais uma no “Fófó”.
Sílvia tem 40 anos. E esta temporada não será a última. No começo, explica, era tudo diferente, não treinava em relvados, os campos eram todos de terra batida, mas, pior que tudo, o futebol era visto como um desporto de homens. “Diziam-me que eu devia era ir para casa, coser meias e não estar a jogar futebol como eles.”
Nunca pensou em desistir. Mais de 20 anos depois de se ter estreado oficialmente pelo Sporting, Sílvia continua com o mesmo entusiasmo e competitividade do primeiro treino em Alvalade. “Há-de ser sempre a vontade e a paixão de jogar que me move. Quando eu me cansar da rotina, do treino à noite, de chegar tarde a casa, de me deitar cansada e acordar cansada, quando nada mais me motivar, desisto do futebol. Creio que falo por todas nós. Não somos remuneradas, nem temos benefícios nenhuns, é tudo por paixão”, conclui a “veterana” do clube, que é, também, a jogadora mais velha a atuar no futebol feminino em Portugal.
O “Special One” de Benfica que deu o primeiro título ao “Fófó”
O Mourinho do Fófó. É desta forma que é apelidado em Benfica Pedro Bouças, o treinador que só chegou ao clube na época passada, já ganhou um campeonato contra todas as probabilidades e vai disputar a segunda final consecutiva da Taça de Portugal. Diz que o segredo do sucesso está no recrutamento que foi feito pelo clube nos últimos dois anos. “É a primeira vez que o Futebol Benfica é campeão. Mas eu já o tinha sido como treinador-adjunto do professor Nuno Cristóvão no 1º Dezembro, e seis das campeãs do 1º Dezembro vieram comigo para o Futebol Benfica quando o 1º Dezembro terminou com o futebol feminino. Não foi um acaso.”
Pedro Bouças não é só o treinador principal do futebol feminino, é também o coordenador de toda a formação do “Fófó”, e fala das diferenças que há no treino com homens e no treino com mulheres. “A interação é naturalmente diferente, mas no começo até me preocupava mais com isso. Demasiadamente, talvez. Até que percebi que, para o meu discurso ter impacto, para lhes aumentar a adrenalina, seja no treino, seja no jogo jogado, passe o pleonasmo, tinha de tratá-las como trato os homens.” Mas ainda assim há diferenças, principalmente quando se compara o futebol feminino amador com o futebol masculino profissional. “Eu tenho um treino programado, e, às vezes – e não são tão poucas quanto isso! –, tenho que desmarcar, porque alguma vai chegar mais tarde, ou não pode vir porque teve uma reunião que se prolongou mais do que o previsto, ou está cansada. Esta é a nossa realidade.”
Sílvia Brunheira, que é mãe, e há muitos anos que vai conciliando os estudos, o trabalho e o futebol, explica: “Não vou dizer que é fácil. Não é. Mas para mim não é um problema. Já ando no futebol há muitos, muitos anos. E sei como conciliá-lo, como geri-lo, com a família, com os amigos, com a faculdade, com o trabalho, e até com o facto de não ter tempo para mais nada. Quando há apoio de todos e tudo nos corre bem, não há treino que me custe.”
A história do futebol feminino no “Fófó” começou na década de 1980. Um história relativamente curta, que terminou abruptamente em 2004, quando o clube se viu impedido de inscrever atletas. O regresso do futebol feminino não era algo que o presidente Domingos Estanislau previsse. Na época de 2008/2009 um grupo de jogadoras do Odivelas foi bater-lhe à porta. “O Odivelas tinha acabado com o futebol feminino no começo da época. As miúdas vieram cá conversar comigo, muito pesarosas. Não tinham clube e queriam jogar. Foram muito incisivas. Tão incisivas que eu liguei ao vice-presidente da Federação, na altura o Amândio Carvalho, e, em cima da hora, lá consegui inscrever o plantel. Era sobretudo o plantel que transitou do Odivelas e mais duas ou três aqui formadas.”
O presidente “Lau” e o mito do “Fófó”
É maio, mas em Benfica é como se verão fosse, a lembrar hemisférios mais a sul, e só se sente uma breve brisa, que vem refrescar o final de tarde. A conversa foi à sombra, portanto, mas sempre de olhos na correria dos infantis que treinam àquela hora, na bancada poente do estádio.
– Aqui para nós, que ninguém nos ouve: torce por que clube? Não me vai dizer que é do ‘Fófó”…?
– Eu digo à malta que sou adepto do Belenenses. Nasci ali e tal. E eles acreditam, sabe. Mas o meu clube é mesmo o Clube Futebol Benfica. Sempre foi e há-de ser.
Domingos Estanislau, o “presidente Lau”, é o “Fófó” e o “Fófó” é o seu presidente. É o líder do clube há 28 anos. Só Jorge Nuno Pinto da Costa, que em abril de 2015 assinalou 33 anos de presidência portista, está há mais tempo à frente de um clube em Portugal. Estanislau foi futebolista do clube, na adolescência, e é dirigente desde que regressou do Ultramar, no começo da década de 1970. Diz que fez de tudo no Futebol Benfica: “Fui vogal, secretário-geral… O bicho roeu-me e por cá fui ficando, todos estes anos.”
É um contador de histórias, Domingos Estanislau. E histórias não hão-de faltar num clube com 99 anos. “É um clube de bairro, mas atenção: é um histórico do hóquei em campo e do hóquei em patins”, frisa.
E “’Fófó’ porquê?” A história remonta à década de 1940, quando o Futebol Benfica foi tri-campeão nacional de hóquei em patins. Nos ringues, na vizinhança e até no nome, o “Fófó” tinha por rival um tal de Sport Lisboa e Benfica. “’Fófó’ era dito meio em tom de gozo, para denegrir o nome do clube. E ai de quem chamasse ‘Fófó’ ao Futebol Benfica até há bem poucos anos! Hoje, não. Hoje é carinhoso e até adotámos o nome, como vê.”, conta Domingos Estanislau, que, só por uma vez, durante toda a conversa, se referiu ao clube pelo epíteto de “Fófó”, e apenas em resposta à pergunta.
O futebol não é a modalidade com maior historial no “Fófó”. Os títulos são quase todos regionais. Mas foi no Futebol Benfica que despontaram futebolistas de renome. O antigo médio-defensivo, internacional português, e ex-selecionador nacional de futebol, Paulo Bento, começou lá. Artur Correia, o célebre “ruço” do Sport Lisboa Benfica, melena loura e bigode da moda, que foi tri-campeão nacional, entre 1974 e 1977, de águia ao peito, também deu os primeiros pontapés na bola no “Fófó”.
Foi também por Benfica que António Livramento, o melhor hoquista mundial de todos os tempos, deu as primeiras stickadas. O primeiro grande atleta do clube foi o malogrado Francisco Lázaro, que dá nome ao estádio do Futebol Benfica. Lázaro morreu em Estocolmo, durante os Jogos Olímpicos de 1912. Era um dia de muito calor na Suécia, diz-se, e o maratonista, que tinha 24 anos, decidiu espalhar sebo no corpo. Não chegou a terminar a maratona. Desistiu, foi levado para o hospital e ali faleceu um dia depois.
A Champions League e um problema dos “grandes”
O campeonato Nacional Feminino é composto por três fases: uma primeira com dez equipas; e duas outras fases, uma com as seis piores classificadas, que lutam por não descer à II Divisão, e uma fase de apuramento do campeão, a quatro equipas. O “Fófó” terminou a segunda fase invicto, e à frente, por exemplo, do Ouriense, bi-campeão em título, que disputou recentemente a Liga dos Campeões feminina.
O segredo da vitória, acredita a capitã Matilde Fidalgo, está na experiência. “Há muitas jogadoras novas que já tinham sido campeãs. O que elas vieram trazer ao “Fófó” foi sobretudo isso: muita qualidade e muita ‘estaleca’, como se costuma dizer, que foi o que nos faltou no final da temporada passada.” Sílvia Brunheira concorda: “Senti que na temporada passada até tínhamos conseguido fazer coisas boas, fomos à final da Taça, por pouco não ganhámos o campeonato, mas não havia, entre aspas, a mística. Agora há. E isso torna-nos mais frias e mais racionais na hora das decisões.”
No próximo ano, e como prémio pela vitória no campeonato, o Futebol Benfica vai disputar a pré-eliminatória que dá acesso à Liga dos Campeões. O ambiente é de natural ansiedade, mas, em Benfica, também se sabe que a sorte, neste caso, conta mais do que a vontade e o talento. “Há clubes muito competitivos, que treinam mais que nós, que são mais ‘rodados’ na Liga dos Campeões que nós, e são esses clubes que queremos evitar. Se queremos ir longe na prova, há que ter já uma ‘pontinha’ de sorte no sorteio inicial”, explica o mister Pedro Boças.
Matilde, por sua vez, é toda ela entusiasmo: “Eu acho que nervoso não há nenhum. É ansiedade, mas ansiedade boa, por participar nesta pré-eliminatória. Muitas de nós nunca jogaram num play-off, e as que jogaram não conseguiram seguir em frente. É uma oportunidade única, para competir, e, quem sabe, ganhar um jogo ou dois.”
A próxima temporada poderá trazer igualmente novidades a nível interno. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), no seguimento do trabalhado que vem realizando, sobretudo nas seleções nacionais jovens, ao nível da promoção do futebol feminino, vem ponderando a criação de uma “liga de elite”, com mais clubes e mais atletas. Chamar os “três grandes” para o campeonato Nacional Feminino é outro dos objetivos.
Domingos Estanislau tem dúvidas sobre esta intenção da FPF: “Há cada vez mais jogadoras de valor. Não vou negá-lo. Mas também é verdade que a diferença de valor da Primeira para a Segunda Divisão, por exemplo, é completamente abissal. Não sei se a ‘liga de elite’ é uma boa ideia, e disse-o ao Humberto Coelho [vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol]. Mais: vamos supor que o Benfica e Sporting vão integrar a liga de elite. Vêm cá salvar a honra do convento. Isso é motivante, pergunto eu? É motivante para os clubes, como o Futebol Benfica, que vão perder cinco jogadoras para um, e mais cinco para o outro? Não é.”