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As redes sociais geram uma espécie de "sentido contínuo de presença, típico da internet", diz o autor italiano
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As redes sociais geram uma espécie de "sentido contínuo de presença, típico da internet", diz o autor italiano

As redes sociais geram uma espécie de "sentido contínuo de presença, típico da internet", diz o autor italiano

As redes sociais transformaram-se no “maior cemitério do mundo”. A morte é tabu, mas o que acontece quando a vida digital parece eterna?

A presença de perfis de pessoas que morreram nas redes sociais "força-nos a olhar para o que não queremos ver", diz investigador italiano. Fazer o luto na era das redes sociais é "fenómeno complexo".

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Quando Davide Sisto desbloqueou o smartphone na manhã de novembro de 2014, tinha uma notificação do Facebook. “Hoje é o aniversário de Alessandro! Ajuda-o a celebrar.” É uma das notificações mais banais da rede social, mas que ajuda a salvar muitas amizades. Poderia ser apenas mais um episódio banal de uma interação digital, não fosse o facto de Alessandro, um jovem realizador, ter morrido no verão do ano anterior.

“Fiquei impressionado. Naquela altura não estávamos habituados a relacionar-nos com os perfis de pessoas que tinham morrido”, explica o investigador italiano ao Observador. Num primeiro impulso, acedeu ao perfil do amigo no Facebook e percorreu as publicações – partilhas de estados, menções e fotografias. Depois deu um salto até ao WhatsApp e ao Messenger para recuperar conversas antigas. Mas era impossível ignorar o silêncio, já que as publicações e as conversas foram interrompidas de forma abrupta.

Este episódio levou o pensador italiano até uma nova área – a tanatecnologia, o estudo da morte numa perspetiva filosófica e na relação com a medicina, a cultura digital e o pós-humano. A notificação do Facebook deu-lhe consciência “da presença eterna dos perfis de pessoas mortas nas redes sociais”, algo que pode ter “efeitos significativos nos enlutados.” O investigador, que estava ligado à área de estudos da morte há alguns anos, começou a dedicar-se à investigação “desta relação específica entre as tecnologias digitais, a morte, o luto, a memória e a imortalidade.”

No livro “Fantasmas Digitais: imortalidade, memória e luto na era das redes sociais”, lançado recentemente em Portugal, Davide Sisto debruça-se sobre a forma como redes sociais como o Facebook ou Instagram se tornaram “no maior cemitério do mundo”, um local onde os vivos são confrontados com frequência com perfis de utilizadores que já morreram, através de notificações e memórias. No livro há espaço para mencionar episódios da série “Black Mirror”, como “Be Right Back”, de 2013, em que uma mulher decide enfrentar o luto interagindo com uma plataforma que simula ser o marido, ou casos da vida real, como o de Eugenia Kuyda, que criou um chatbot que fala como Roman, um dos seus melhores amigos, que morreu atropelado na Rússia em 2015.

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Ao longo das páginas da obra, Sisto sublinha que, embora seja um tema complexo, é preciso compreender a longevidade de um perfil nas redes sociais, onde a vida digital aparenta ser eterna. “Precisamos de ter consciência de que a morte faz parte da vida e de que os perfis sociais vão-nos sobreviver”, explica este investigador.

“A morte ainda é um enorme tabu em algumas culturas ocidentais. As pessoas nem sequer querem dizer essa palavra porque pode ser desrespeitoso ou indelicado”, frisa. Mas também apela a algum pragmatismo nesta altura de transformação cultural e social. “Toda a gente tem uma sensibilidade diferente” sobre o assunto, mas “é necessário pensar num testamento digital”. Se já se fazem legados para que se possa ditar em vida a distribuição de bens após a morte, neste tipo de testamento a ideia é outra: após a morte, o que é que acontece à identidade digital e aos perfis das redes sociais?

“As nossas identidades multiplicaram-se no mundo online, portanto deixamos mais rasto”

Davide Sisto é investigador na Universidade de Trieste e dirige também o mestrado em “Death Studies & the End of Life”, em português “estudos da morte e o fim da vida”, que é lecionado na Universidade de Pádua. Além disso, também faz oficinas sobre cultura ciborgue e realidade aumentada na Universidade de Turim.

Está mais do que habituado a falar sobre a morte, um tema que tende a ser tabu, mas que o digital está a colocar noutra perspetiva — quer se queira, quer não. “Estamos a viver tempos de transformação antropológica, social e cultural”, conta. “Os pais não querem falar com os filhos sobre morte. Mesmo nas áreas de estudo médicas ou nas humanidades há, em geral, pouca conversa sobre a morte.” Mas reconhece que tem vindo a notar um “número crescente de programas em educação da morte”, que já tentam trazer o tema para a conversa. E, embora considere que o mundo digital traz complexidade adicional para a forma como se faz o luto, também salienta que a presença online de perfis de pessoas que já morreram “nos força a olhar para aquilo que não queremos ver.” “Força-nos a refletir sobre a influência que têm na questão da lembrança e do luto” e a “refletir sobre a organização de legados digitais.”

“Precisamos ter consciência de que a morte faz parte da vida e de que os perfis sociais nos vão sobreviver”, explica Davide Sisto.

Só no Facebook, Davide Sisto refere que haverá “50 milhões de perfis de pessoas que morreram”, “um pouco menos no Instagram”. A partir dessas contas, a rede social de Mark Zuckerberg é vista como o “maior cemitério do mundo”, com vários “perfis-fantasma”, que continuam ativos mas que não fazem novas publicações. Sisto não é o primeiro a referir esta questão: no livro menciona um estudo, feito em 2016 por Hachem Saddiki, doutorado em estatística pela Universidade de Massachusetts, que antecipa que em 2098 a rede social pode ter mais perfis de pessoas mortas do que vivas. O estudo assenta em algumas premissas: primeiro, a ideia de que a rede social vai ter continuidade até essa data e depois que há um abrandamento da velocidade de novas inscrições. Além disso, o Facebook não elimina automaticamente perfis, a menos que sejam violadas as regras que constam nos termos e serviços ou que haja um pedido expresso de alguém próximo para eliminar o perfil de alguém que morreu.

Hoje em dia, as partilhas digitais começam cada vez mais cedo – em alguns casos, ainda antes do nascimento, com anúncios de gravidez nas redes sociais. “As nossas identidades multiplicaram-se no mundo online, portanto deixamos cada vez mais rasto”, reconhece o autor italiano. O que, no entender do investigador, deveria levar à discussão, ainda em vida, sobre as medidas a tomar no que diz respeito à pegada digital após a morte. “É preciso consciência para podermos decidir, possivelmente com familiares, o que é que fazem aos nossos perfis: deixá-los online? Apagá-los? Há ainda que tomar decisões sobre a nossa presença nas aplicações de mensagens, palavras-passe em computadores e smartphones.”

“Somos nós que precisamos de organizar a nossa presença online de uma forma que cause o menor dano possível”, diz, lembrando que com a morte deixa de haver controlo sobre o que se escreveu ou o que se partilhou online (imagens, vídeos). Aliás, esse deve ter sido um dos pontos que não sofreu alterações, mesmo com as redes sociais. “Os mortos nunca tiveram forma de gerir as suas memórias”, diz Davide Sisto, mas “hoje em dia a vida diária é mais complexa” para quem fica e tem de enfrentar os lembretes das redes sociais.

Por isso, defende a importância de pensar num testamento digital, no qual estariam vertidas as decisões sobre o que fazer aos perfis sociais. E, sublinha, terá de ser uma decisão “tomada em conjunto com os entes queridos”. “É preciso racionalizar com os familiares qual é a decisão menos dolorosa para eles”: deixar o perfil online ou apagá-lo. “Também seria razoável dar a pessoas de confiança, ou talvez a um notário, as palavras-passe acumuladas ao longo de anos para decidir o que fazer.”

Mas Davide Sisto salienta que não existem certos ou errados nem “regras objetivas que se apliquem a toda a gente” neste tema. “Toda a gente tem uma sensibilidade diferente.” O mais importante, lembra, é ter consciência da necessidade da discussão. “Temos de saber que a nossa presença online gera efeitos nos enlutados. Temos de limitar o sofrimento dos outros, ao mesmo tempo em que protegemos a nossa própria privacidade após a morte.”

“Ainda há uma falta de reconhecimento objetivo e universal do problema” e sobre a forma de gestão de um legado digital de quem morre, sublinha Sisto, considerando o “digital death manager”, numa tradução livre o gestor da morte digital, como uma das profissões do século XXI. “É um trabalho que ainda não é de conhecimento geral no mundo. Há muitas iniciativas privadas que se juntam aos caminhos de estudo ligados à tanatecnologia digital”, assim como “muitas startups que lidam com o legado digital”. O problema é que ainda são iniciativas dispersas, explica. “Há a necessidade de os Estados tomarem consciência do problema e desenvolverem programas educacionais específicos no campo da educação e medicina.”

No mundo das startups que já pensam no que acontece à vida digital após a morte, que Sisto descreve como sendo companhias a trabalhar para a “imortalidade digital”, há menções à Eterni.me ou à Eter9, uma ideia do português Henrique Jorge. São experiências que “nos tentam pôr a comunicar ativamente com os mortos”, em que são reutilizados materiais partilhados online em vida, explica Sisto. Em relação ao projeto português, que agora se chama SSelf, trabalha-lhe na ideia de uma “contraparte” digital, que só se tornará real quando a parte original morrer. “É uma espécie de rede social dos mortos”, explica o autor italiano, que criou a sua “contraparte” em 2017. Se no Facebook se pergunta aos utilizadores “em que estás a pensar?”, nesta rede social é pedido que se “pense em alguma coisa para a eternidade”. A ideia é que o alter-ego digital comece a publicar automaticamente, como se fosse a pessoa viva.

A história do português que nos quer pôr a viver para sempre – como em Black Mirror

A “imortalidade” nas redes sociais torna o luto mais difícil?

No livro, Davide Sisto reconhece que redes sociais como o Facebook “complicam ainda mais a difícil relação que temos com a morte e com os mortos”, referindo fatores como a “exposição diária da intimidade” ou a confusão em “distinguir a própria pessoa da cópia virtual”. Os perfis deixam de partilhar atualizações mas, em vários casos, podem continuar a surgir em sugestões de amizade, nas memórias, na ferramenta que relembra partilhas feitas em determinadas datas, ou nos lembretes de aniversário.

É o que descreve como “um sentido contínuo de presença, típico da internet”, que pode tornar mais difícil fazer o luto. “Todas as iniciativas públicas e privadas que estão envolvidas em ajudar as pessoas a lidar com o luto sublinham o quão difícil é gerir a presença online eterna de entes queridos que morreram”, explica o italiano. “Há pessoas que mantêm os smartphones de quem morre. Às vezes até pedem a outras pessoas para ligarem para esse número, só para ouvir o toque do telefone. Dá-lhes uma impressão de vida.”

Se para alguns pode ser difícil conviver com um perfil de quem já não está, para outros a ideia de ter sempre à mão um lugar para recordar dá algum alento; o investigador fala inclusive na ideia de uma comunidade que se aproxima para relembrar episódios de amigos ou familiares. Também há estratégias com o WhatsApp. “São criados novos comportamentos simbólicos: há tantas pessoas que admitem que escrevem aos mortos no WhatsApp. Não esperam ver o visto azul de que a mensagem foi vista, mas veem isto como uma ponte simbólica entre o nosso mundo e o além.”

Especificamente em relação aos perfis online, refere que, como são “cheios de informação biográfica e sobre uma vida preenchida, tornam-se um recurso, mas ao mesmo tempo, uma chantagem”. O autor italiano explica que, se por um lado “nunca guardámos tantas memórias das pessoas de quem gostamos”, por outro “hoje, mais do que nunca, temos dificuldade em lidar com a perda”. “Os rituais fúnebres forçam-nos a perceber que temos de começar a viver num mundo condicionado pela ausência. Os perfis sociais quebram esse efeito benevolente dos rituais fúnebres”, explica.

De qualquer forma, independentemente da estratégia usada por familiares e amigos para lidar com o luto, deixa uma ressalva: “É preciso não confundir a recordação com a ideia de presença.” 

Hologramas de artistas que já morreram em concertos? “Deixam-me perplexo”

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O livro de Davide Sisto não se centra apenas em redes sociais como o Facebook ou o Instagram. Também há referências ao YouTube, onde os vídeos de homenagem a artistas que morreram se multiplicam, especialmente nos dias a seguir ao anúncio da morte, e a concertos com recurso a hologramas.

Questionado sobre o recurso a hologramas de artistas que já morreram ou mesmo sobre deepfakes, Sisto mostra-se “perplexo” com algumas dessas experiências. “Primeiro, acho que é útil para toda a gente aceitar que as coisas chegam ao fim”, embora reconheça que “pode ser melancólico pensar que nunca mais poderemos ir ao concerto do nosso ídolo musical”.

“Tem pouco sentido tornar um músico numa espécie de objeto arbitrário gerido por outros”, considera, notando que seria “melhor preservar e arquivar registos de concertos”. Também considera especialmente bizarro “duetos entre músicos vivos e músicos mortos”. “Acho que o uso arbitrário de tornar um artista num holograma para lucro não é correto”. “É melhor aceitar o fim das experiências e lembrar os concertos que vimos, celebrando os artistas mortos com os registos das suas atuações.”

Como funciona o contacto de legado e as contas de memorial

Sendo uma das redes sociais com maior longevidade e também número de utilizadores – no fim de março tinha 2,04 mil milhões de membros ativos diários – o Facebook tem adotado algumas funcionalidades para garantir uma coexistência segura com as contas de pessoas que já morreram.

Em 2009, após queixas de utilizadores que eram confrontados com perfis inativos nas sugestões de amizade ou com mensagens vindas de pessoas que já morreram, lançou as contas memoriais, uma página em que se recorda a vida de um utilizador, mas com funções muito limitadas. “Percebemos o quão difícil é para algumas pessoas serem relembradas daqueles que já não estão com eles e é por isso que é importante que, quando alguém morre, os seus amigos ou família contactem o Facebook para pedir que o perfil se transforme em memorial”, escreveu Max Kelly, na altura diretor de segurança da rede social.

Nestas contas, a expressão “em memória” é apresentada junto ao nome do utilizador, para que se possa distinguir de um perfil normal. Os conteúdos partilhados pelo utilizador em vida continuam a ser apresentados, mas o perfil deixa de aparecer naquilo que a empresa considera “espaços públicos” – as sugestões de pedidos de amizade, os lembretes de aniversário ou anúncios. Também não é possível iniciar sessão numa conta que tenha sido transformada em memorial, bloqueando automaticamente o acesso a funcionalidades como publicação ou mensagens.

Facebook memorial

Um dos exemplos de uma página memorial do Facebook

Davide Sisto realça a ideia de se criar um testamento digital e, ainda em vida, se definir o que pode ser feito ao perfil nas redes sociais. A empresa de Zuckerberg permite que o utilizador faça uma dessas etapas, ao definir um contacto de legado, alguém de confiança para gerir o que acontece ao perfil em caso de morte do dono da conta. É uma das definições acessíveis no centro de controlo da rede social: é preciso que a pessoa tenha conta no Facebook e que ambos sejam amigos online.

Esse contacto não tem acesso às funcionalidades completas do perfil de quem morre, portanto não consegue entrar na conta ou ler as mensagens. As regras do Facebook especificam que o contacto de legado só pode escrever uma publicação no perfil – por exemplo para partilhar uma última mensagem ou dar informações sobre alguma cerimónia fúnebre – ou atualizar a foto de perfil e de capa. Pode também pedir, caso já não queira que o perfil continue em formato memorial, a remoção dessa conta.

Uma boa parte dos utilizadores do Facebook não tem esta definição de contacto de legado definida. A pensar nisso, a rede social permite que familiares ou amigos possam pedir a remoção do perfil ou transformação em memorial mais tarde. “A forma mais rápida para processarmos o teu pedido é enviares uma digitalização ou uma foto da certidão de óbito do teu ente querido”, diz o Facebook. Se a pessoa que faz o pedido não tiver este documento, é preciso apresentar comprovativos de autoridade, para provar a legitimidade de quem pede a eliminação da conta — procurações, testamentos ou certidão de herança — e ainda um obituário ou cartão de memorial para comprovar a morte da pessoa. O processo não é automático, já que tem de haver uma validação da informação enviada.

No Instagram, que também pertence à Meta, a dona do Facebook, também está disponível a versão de memorial. “As contas em memória de alguém são um lugar onde é possível recordar a vida de uma pessoa depois do seu falecimento”, é referido. Também são contas mais limitadas: não é possível iniciar sessão e é apresentada a expressão “em memória”. O perfil também deixa de aparecer em alguns locais do Instagram, nomeadamente no separador “Explorar”.

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