O Governo apresentou o esboço orçamental a Bruxelas, prevendo agora um pouco mais de crescimento em 2020, algumas alterações ao saldo orçamental e à dívida deste ano e do próximo e uma ligeira diminuição da carga fiscal (menos uma décima, para 34,8% do PIB) no próximo ano.
As regras de Bruxelas, no âmbito do Semestre Europeu, assim o obrigam: a 16 de outubro, todos os Projetos de Plano Orçamental têm de ser revelados, mesmo que o Governo possa vir a apresentar até ao final do ano (como pretende António Costa) ou até final de fevereiro (como as regras permitem), uma proposta substancialmente diferente no Orçamento do Estado para 2020, depois da discussão com os partidos com assento parlamentar.
Num documento que é necessariamente temporário e com base em “políticas invariantes” (como se nada fosse mudar no próximo Orçamento do Estado), não há explicações alongadas sobre o que motiva as alterações, gerando provavelmente mais dúvidas do que certezas, tendo em conta as circunstâncias pós-eleitorais em que o país se encontra.
Porque é que o Governo é menos ambicioso em relação às contas do próximo ano?
À boleia da revisão do INE às contas nacionais, o Governo espera agora 2% de crescimento no próximo ano, mais uma décima do que a anterior previsão, o que tem, em princípio, efeito positivo nas contas públicas. Mas Mário Centeno é, em simultâneo, menos ambicioso nas metas para melhorar o saldo orçamental — em vez de um excedente de 0,2% (num cenário que não inclui novas medidas), está agora previsto um saldo nulo. Porquê?
Depois de conhecer os números deste esboço orçamental, Ricardo Cabral, economista da Universidade da Madeira, critica o Governo, porque o “cenário mais provável” é que o ministro das Finanças “esteja a ser excessivamente conservador, tornando mais difícil a tarefa do Parlamento” na hora de decidir como gastar o dinheiro para o ano seguinte.
Ou seja, o Governo pode, com estes dados, pressionar o Parlamento na discussão para o próximo ano: “Dizer aos partidos à esquerda que não há margem orçamental para mais, como tem feito Mário Centeno, jurando a pés juntos que não há margem, para depois, afinal, o resultado ser melhor do que o esperado”. Foi o que aconteceu, segundo Ricardo Cabral, nos primeiros três anos da legislatura, em que “houve desvios favoráveis significativos na execução orçamental”.
“O Governo tem sido sempre muito prudente — demasiado prudente” em relação às metas do saldo orçamental, entende o economista, lembrando ainda que quando se conheceram os dados mais recentes da economia portuguesa de 2018, no início deste ano, o Governo preferiu não atualizar as previsões.
O economista da Madeira entende que “esta não é forma de um governo — ainda por cima minoritário — proceder, enviesando o processo orçamental e levando a que o Parlamento não aprove despesa”.
Um cenário que João Duque até admite ser possível, mas o economista do ISEG lembra também que “há um conjunto de fatores que podem eventualmente influenciar a revisão em baixa, entre os quais as taxas de juro, o preço do petróleo, e eventuais alterações de comportamento dos consumidores“, que tenham implicações na receita fiscal. Tendo em conta que falamos de duas décimas, “outra possibilidade é haver arredondamentos” que ajudem essa revisão.
Ricardo Cabral avança ainda com uma outra possível explicação para a revisão em baixa das previsões do Governo: “a revisão em alta do crescimento do PIB que, por motivos técnicos, levaria a uma revisão em baixa do saldo estrutural”. Só que não explica tudo: “não justificaria a revisão em baixa do saldo orçamental nominal”.
O economista nota, de qualquer modo, que esta revisão “ocorre no momento H, precisamente quando o país passaria a cumprir todas as regras orçamentais europeias”. “Uma enorme coincidência, por conseguinte“, reage o economista, com sarcasmo.
Já o economista João Loureiro, da Universidade do Porto, nota que o aumento do PIB de 2% no próximo ano tendencialmente deveria favorecer o saldo orçamental, porque, por um lado, mais crescimento gera mais receita (por exemplo, mais IVA) e menos despesa (como subsídio de desemprego), e, por outro, porque sendo calculado em percentagem do PIB o saldo orçamental tem uma melhoria automática. “Há-de haver uma explicação de pormenor, porque estamos a falar de décimas”, diz João Loureiro. O economista sublinha que “é preciso dar o devido peso aos números, porque estamos a falar de décimas — valores irrisórios”.
A importância não será, de facto, tanto financeira — o futuro do país não depende daquelas décimas —, mas terá relevância política e, potencialmente, social, uma vez que cada décima do PIB que o Governo não aplique na melhoria das contas equivale a 200 milhões de euros. Duas décimas, neste caso, seriam 400 milhões, valores que não seriam irrelevantes numa discussão do Governo com os partidos à esquerda no âmbito do Orçamento do Estado para o próximo ano.
No caso da dívida pública, a revisão em baixa aplica-se aos dois anos. O Governo antecipa que fique em 119,3% do PIB este ano e nos 116,3% em 2020 — uma redução menor do que a que estava prevista no Programa de Estabilidade, apresentado em abril. Na altura, Mário Centeno apontava para 118,6% em 2019 e de 115,2% no próximo.
No documento, o Governo diz que pretende “utilizar as receitas extraordinárias para acelerar a redução do rácio da dívida das administrações públicas” e recorda que, de 2016 a 2018, o rácio da dívida pública em relação ao PIB diminuiu 10 pontos percentuais, para 122,2%.
Até 2023, a dívida deverá atingir um nível muito próximo de 100%, acredita Mário Centeno, e, “para atingir esse objetivo, todas as receitas extraordinárias devem continuar a ser alocadas à redução da dívida pública”.
O Ministério das Finanças não oferece, para já, qualquer explicação sobre estas revisões em baixa.
Porque é que o Governo não cumpre o saldo estrutural?
Mandam as regras europeias que cada estado-membro tenha um objetivo específico para garantir a sustentabilidade das contas públicas a médio prazo. As contas melhoram porque há um verdadeiro esforço de consolidação orçamental ou porque o bom comportamento da economia e fatores excecionais deram um empurrão?
A resposta — através do saldo estrutural, que expurga despesas e receitas pontuais e o efeito da conjuntura económica —, é dada não em função da riqueza produzida (o PIB), mas do chamado PIB potencial — cenário teórico, em que a produção das economias seria gerada em condições de total eficiência.
Feita a necessária ressalva técnica, no caso de Portugal, tendo em conta a evolução das finanças públicas, o chamado Objetivo de Médio Prazo para o saldo estrutural tem sido revisto pela Comissão Europeia, que ficará agora descansada se Portugal atingir os zero por cento do PIB potencial entre 2020 e 2022 ou, antes disso, 0,25% em 2019.
No entanto, apesar de o Governo ter previsto o cumprimento já este ano — e apesar das recomendações de Bruxelas para que Portugal faça mais neste capítulo —, a verdade é que o esboço orçamental enviado a Bruxelas baralha essas contas: as regras não vão ser cumpridas nem em 2019, nem em 2020. O que é que se passa?
O Projeto de Plano Orçamental — apenas um resumo do que pretende o Governo — não explica. Na parte dedicada às recomendações específicas feitas pela Comissão Europeia a Portugal, perante o objetivo de “atingir o objetivo orçamental de médio prazo em 2020”, o Governo aponta apenas como ponto de situação que “nos últimos dois anos, Portugal alcançou um ajustamento estrutural significativo, tendo superado o ajustamento anual do saldo estrutural requerido pela Comissão Europeia”. Nada diz sobre os próximos anos.
Certo é que o Ministério das Finanças avisa à cabeça do documento que “não corresponde a uma proposta de Orçamento do Estado”. O documento foi entregue esta quarta-feira porque os prazos europeus assim o obrigam, mas, face à circunstância pós-eleitoral, ainda não tem previstas novas medidas de impacto orçamental. Só depois da apresentação do Orçamento do Estado para 2020, depois das negociações com outros partidos, será possível perceber se o executivo vai ou não cumprir essas metas, reforçou ao Observador fonte governamental.
Neste cenário, não importa muito o que diz o esboço enviado a Bruxelas, porque Mário Centeno tem toda a margem para alterá-lo nos próximos meses, antes de entregar a Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, a ‘pendrive’ com o documento que realmente conta. Por causa das eleições, o ministro das Finanças tem até ao final de fevereiro para fazê-lo, em vez do habitual prazo de outubro, mas o primeiro-ministro já revelou a intenção de antecipar a entrega e apresentação do OE2020 até ao final do ano.
O economista João Loureiro nota, no entanto, neste esboço orçamental a alteração de uma rubrica que será reveladora. O saldo estrutural, como vimos, tira da equação as medidas extraordinárias e o efeito da conjuntura (por exemplo: o aumento do PIB gera mais receita de impostos). Mas o saldo primário estrutural desconta um outro elemento igualmente importante — os juros, que o Governo não controla.
Esta rubrica, que se concentra unicamente no efeito das políticas, medindo o pulso ao esforço ou alívio de medidas orçamentais, mostra que “o Governo prevê agora uma política ligeiramente mais expansionista”, equivalente a duas décimas do PIB — ou cerca de 400 milhões de euros.
No Programa de Estabilidade 2019-2023, de abril, o saldo primário estrutural previsto para 2019 e 2020 era o mesmo, 3,3%, isto é, “uma evolução neutra da política orçamental”. Mas agora, no esboço orçamental enviado a Bruxelas, Mário Centeno acredita que vai baixar de 2,2% para 2,0%. Estas duas décimas revelam, na opinião de João Loureiro, que há uma folga adicional. Em todo o caso, insiste, estamos no campo das “migalhas” no que ao PIB diz respeito.
O crescimento em 2020 vai ser mesmo maior do que em 2019?
A alteração do crescimento para o próximo ano é ligeira — mais uma décima do que o previsto no Programa de Estabilidade 2019-2023 —, mas é o suficiente para levantar dúvidas ao Conselho das Finanças Públicas, que, assim que foi conhecido o esboço orçamental, revelou de imediato as dúvidas em relação ao PIB de 2020.
Mário Centeno espera para o próximo ano uma ligeira aceleração do crescimento do PIB para 2%, depois de uma subida de 1,9% em 2019. O ministro está a contar com “a recuperação do crescimento económico na área do euro, em linha com as previsões de instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional”. E, sendo a área do euro o principal parceiro comercial de Portugal, “deverá refletir-se numa aceleração da procura externa e, portanto, do crescimento das exportações”, considera ainda.
Mais: Mário Centeno espera uma aceleração do investimento público (de 9,7% em 2019 para 16,2% em 2020), que deverá “contribuir positivamente para o aumento do ritmo de crescimento da economia”.
Argumentos que não convencem o Conselho das Finanças Públicas. A entidade liderada por Nazaré da Costa Cabral entende que a aceleração prevista para o próximo ano “comporta elevados riscos descendentes, tendo em conta a degradação das perspetivas económicas nos principais parceiros comerciais da economia portuguesa”.
O problema, diz o CFP, é que o Governo está a centrar-se sobretudo na dinâmica do comércio externo. Se tudo correr como espera Mário Centeno, a organização que fiscaliza o cumprimento das regras orçamentais nota que haverá “uma aceleração das exportações em simultâneo com uma desaceleração das importações” face a 2019.
Nas vendas ao exterior, está prevista uma subida de apenas 2,9% em 2019 (abrandamento face aos 3,8% do ano passado), e aceleração para 3,9% em 2020; enquanto as importações não deverão parar de abrandar: de 5,8% em 2018, para 5,4% em 2019, e 4,1% em 2020.
O cenário apresentado não pode, por isso, ser considerado “como prudente”, alerta, “dados os elevados riscos descendentes que incidem na previsão de aceleração da atividade económica em 2020”.
Relativamente a este ano, tudo igual ao Programa de Estabilidade 2019-2023, publicado em abril, o que em si mesmo “representa uma desaceleração face a 2018”. O Governo explica que esta projeção incorpora “uma moderação do crescimento do consumo privado, um abrandamento do crescimento das exportações, e uma aceleração do crescimento do investimento”. No caso do abrandamento das exportações, o Governo aponta para a desaceleração dos principais parceiros económicos, “o que se traduz num impacto na procura externa dirigida a Portugal”.
Este cenário para 2019 já é considerado “mais provável” pelo CFP, embora não deixe de notar que o governo manteve a previsão, de 1,9%, mesmo depois da revisão do Instituto Nacional de Estatística para o crescimento do PIB em 2017, 2018 e no primeiro semestre de 2019. Conclusão? Das duas uma: ou o cenário “era demasiado otimista na altura da sua elaboração ou o abrandamento da economia agora estimado para 2019 é mais forte do que o anteriormente esperado pelo Ministério das Finanças”. Ou seja, os efeitos provocados pela revisão metodológica do INE foram de tal dimensão que deveriam ter provocado alterações maiores.