Quando leu o email que Mónica Barbosa lhe enviou, em maio de 2015, a dar conta da petição pública que estava a decorrer para reclamar a possibilidade de os pais poderem assistir aos partos por cesariana feitos no Sistema Nacional de Saúde, Sónia Morais Santos não conseguiu evitar uma pontinha de inveja por não ter pensado nisso antes.
“Quase que fiquei triste por não ter sido eu. Na verdade, acho que pensei sempre que era tão impossível que nunca me ocorreu meter-me numa empreitada dessas”, conta a blogger, autora de Cocó na Fralda, oito meses depois da entrada em vigor da lei que franqueou as portas dos blocos operatórios aos pais, até então impossibilitados de assistir aos nascimentos dos filhos por meio de cirurgia.
Não foi por acaso que Mónica Barbosa lhe escreveu. O objetivo era publicitar a petição e o blogue de Sónia era um dos blogues sobre maternidade mais lidos em Portugal, sim, mas a própria tinha uma ligação bem forte à causa.
Mãe de quatro filhos, entre os 2 e os 15 anos, todos nascidos via cesariana, não por vontade própria, mas porque teve mesmo de ser, Sónia Morais Santos pode não ter mudado a lei nacional, como Mónica (já la iremos). Mas, “ativista por força das circunstâncias”, como se descreve, alterou pelo menos a política do hospital privado de Lisboa onde nasceram Martim (12), Madalena (7) e Mateus (2) – Manel, o mais velho, foi o único filho que não nasceu na CUF Descobertas.
Primeiro a perspetiva micro: em 2009, já dona do blogue mas ainda jornalista, na altura na revista Time Out Lisboa, Sónia Morais Santos estava prestes a ser mãe pela terceira vez. “Já tinha feito duas cesarianas, disseram-me que ia ter de ser assim novamente. Estava tristíssima por saber que, mais uma vez, não ia poder passar pela experiência do parto natural, que foi o que sempre quis. Mas tentei, pelo menos, não voltar a passar por tudo sozinha, a tremer, com os braços em cruz e a pensar que nunca mais ia ver o meu marido, que estava ali na sala ao lado e era tão responsável por aquele filho como eu“, recorda.
Perguntou ao obstetra se Ricardo podia estar presente no nascimento de Madalena. E o médico surpreendeu-a: por ele tudo bem. Só era preciso entrar em contacto com a administração do hospital, para garantir se para eles também não havia problema. A blogger, hoje com 43 anos, enviou então um email a explicar a situação — não estava à espera do rotundo não que recebeu como resposta. “Disseram-me que lamentavam muito mas que era política do hospital, não autorizavam de todo que os pais estivessem presentes durante as cesarianas. E eu acatei. Sou eu que os carrego, sim, mas não tive os meus filhos sozinha, por isso não devo ser a única a poder vê-los nascer, não acho sequer que seja possível alguém defender uma coisa dessas, o direito tem de ser o mesmo — mas se era uma norma interna, igual para todos, ok”.
Percebeu que não era bem assim por mero acaso, dias depois, quando ao pequeno-almoço no café do costume a dona lhe perguntou se queria uma revista, para acompanhar. “Nem queria acreditar. Na capa estava a Karen, ex-Jardel, com o Filipe Gaidão, os dois muito felizes, porque tinham sido pais e ele tinha adorado assistir ao nascimento do filho — por cesariana, na CUF Descobertas! Adoraria ter visto a minha própria cara nessa altura, fiquei furiosa. Começou aí a minha saga, digitalizei a revista e enviei um email para o hospital, a perguntar que política era aquela afinal. Porque se fosse preciso levar revistas cor-de-rosa atrás para o pai ter direito a assistir ao parto, eu se calhar também conseguia. Mas e as outras pessoas como é que tinham de fazer?!”
O então assessor de imprensa do hospital, recorda, tinha sido seu colega na universidade, e apressou-se a ligar-lhe para tentar gerir e conter os danos — “Por favor, não ponhas nada no blogue!”. Respondeu-lhe que estava fora de questão e que ia limitar-se a esperar mais uns dias pela resposta oficial da CUF. “Não me disseram nada, escrevi tudo no blogue, o 24 Horas contactou-me, estava armado um barraco total.”
O que a comoveu mais (e continua a comover), diz, foi o facto de o seu problema ser comum a tanta gente — recebeu emails e comentários de dezenas de pessoas que tinham passado pelo mesmo, ou que estavam a passar pelo mesmo, e também de outras que tinham tido mais sorte e, perante o mesmo pedido, tinham recebido autorização para acompanhar os nascimentos dos filhos.
“Veio a concluir-se que dependia muito dos anestesistas [cujo colégio, na Ordem dos Médicos, foi responsável agora pelo parecer contra a presença dos pais no bloco], se estavam para aí virados ou não. Nunca senti um apelo tão grande por uma causa como nessa altura, porque percebi que não era só comigo. Aliás, podia nem sequer ter a ver comigo, estava muito perto do parto, achava que mesmo que se a situação mudasse já não seria a tempo de eu usufruir dela. Mas achei tudo tão lamentável, tão vergonhoso, que decidi lutar até às últimas consequências”, recorda.
Não só mudou, como mudou a tempo do nascimento da terceira filha, a única menina. O hospital CUF Descobertas, que teve o cuidado de telefonar-lhe a dar a notícia, resolveu passar a autorizar a presença dos pais que assim o solicitassem no bloco operatório, exceto em cesarianas urgentes. “Quando estava grávida do Mateus fui lá a uma consulta e vi um pai, todo feliz, a abraçar os avós, o bebé tinha acabado de nascer. Lembro-me de que alguém lhe disse ‘ah, mas foi cesariana, não viste nada’ e ele respondeu ‘vi, vi!’ — fiquei tão contente, só me apetecia ir lá e gritar ‘fui eu! foi por minha causa!‘.”
Mãe de quatro, passou por quatro partos cirúrgicos, dois sozinha, dois com o marido, Ricardo. O que não lhe falta, portanto, são termos de comparação: “A diferença é total. É a diferença entre ter uma pessoa, que já vai com uma tristeza profunda por não poder ter o parto que idealizou, completamente sozinha e assustada num momento que é suposto ser feliz; e ter a pessoa que é co-responsável por isso a dar-lhe a mão e a falar-lhe baixinho, que foi o que o meu marido fez, durante o tempo todo. Foi muito mais emocionante e humano e próximo daquele que era o meu sonho de ter um parto natural. Uma mulher ter de passar por um parto sozinha é algo profundamente medieval. Hoje sei que não é verdade, mas no meu segundo parto, como tinha feito uma cesariana três anos antes, disseram-me que ia ter de ser assim outra vez. Foi marcado. Foi tão triste quanto isto: o meu marido foi levar o mais velho à escola e eu apanhei um táxi para o hospital, sozinha. Ele entretanto chegou mas ficou lá fora. Senti um vazio tão grande, não houve nada, nem contrações, nem dilatação, nem trabalho de parto, não houve magia nenhuma. Fui para uma cirurgia“.
Sobre as razões “de segurança e qualidade clínicas” apontadas pelos representantes da comunidade médica avessos à presença de pais ou “outras pessoas significativas” no bloco operatório durante os partos cirúrgicos — risco de infeções hospitalares, possibilidade de ocorrência de hemorragias e outras situações de emergência, ou até desmaios de progenitores mais impressionáveis —, Sónia Morais Santos diz que não a convencem.
“Parecem-me sempre fracos os argumentos. O que me deixa mais tresloucada é que isto abre um precedente para os pais poderem reclamar o direito de assistir a qualquer cirurgia. Não faz sentido nenhum. Uma cesariana é uma cirurgia, mas não há ninguém doente, é por saúde e felicidade, não por doença. E este é apenas o lado emocional, o que não faltam são estudos científicos que comprovam a importância para o bebé daquele triângulo logo ao nascer”, defende. O que nos leva à perspetiva macro — que é como quem diz, à história de Mónica Barbosa.
Quando, em maio de 2015, na segunda metade da gestação de Martim, o filho mais novo, decidiu iniciar a petição que daria origem à lei, aprovada na Assembleia da República em fevereiro de 2016, a formadora de desenvolvimento pessoal só queria “fazer barulho”. Mas tratou de arregimentar, além de mães e pais com a mesma opinião, profissionais de saúde ligados à área da obstetrícia que pudessem validar cientificamente o texto que ia submeter ao Parlamento e à Ordem dos Médicos.
Com a ajuda de Isabel Faia, a amiga que instigou todo o processo, e da enfermeira Ana Lúcia Torgal, com quem tinha tido aulas de preparação para o parto e que por sua vez pediu apoio ao enfermeiro Vítor Varela (presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros) e ao médico Vasco Prazeres (técnico da Direção-Geral da Saúde), redigiu a petição.
Foi com Isabel, Ana Lúcia e Elsa Paulino, pediatra neonatologista, que foi à Assembleia da República defender a causa perante a comissão parlamentar da saúde, menos de um mês e meio depois: “Quando recebi o email nem queria acreditar! Foi estilo, ‘Eh lá, mas eles ouvem as pessoas?! Que coisa estranha, os cidadãos se se mexerem podem conseguir coisas‘. O meu marido foi connosco, outro pai também. O Maurício já tinha um filho do primeiro casamento, o André, que na altura tinha 15 anos, e falou na emoção que tinha sentido no nascimento dele, de parto natural, e que lhe tinha sido vedada no da Mia, a nossa filha, que na altura tinha 2 anos e tinha nascido por cesariana. A dra. Elsa desmistificou a questão das infeções, explicou que o risco está relacionado com bactérias hospitalares, que são os médicos e os enfermeiros que transportam e não os pais, que vêm de fora e se desinfetam e vestem a bata. Também falou nos benefícios do contacto pele a pele e na forma como os pais podem ajudar, porque libertam os enfermeiros dessa tarefa, para que possam dedicar-se a tratar das mães”.
Tal como Sónia Morais Santos, também Mónica Barbosa diz que foi induzida em erro pelos profissionais de saúde relativamente à necessidade de fazer uma segunda — e depois uma terceira — cesariana. “O meu desejo sempre foi ter um parto natural, é a natureza. Mas o meu médico sempre me disse que depois de fazer uma cesariana, o mais seguro era fazer outra a seguir…”
Foi mãe pela primeira vez em 2009, tinha 30 anos. Foi uma gravidez complicada, a bebé não estava a crescer, às 29 semanas o obstetra que a seguia, no Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, decidiu avançar para uma cesariana de urgência. Matilde nasceu com apenas 595 gramas. Teve cancro. Passou os escassos cinco meses de vida que teve internada no serviço de neonatologia. “Não tenho nada a apontar ao hospital, bem pelo contrário. A minha filha foi sempre bem tratada, nós também. Não é essa a questão”, garante Mónica, ainda assim extremamente crítica do obstetra que a acompanha desde então.
Em 2013, quando nasceu Mia, hoje com 4 anos, a cesariana anterior aliada ao facto de uma inflamação na zona da bacia e dos membros inferiores, consequência da espondilite anquilosante de que sofre, levaram o médico a aconselhar-lhe uma cesariana programada, às 39 semanas. “Disse-me que como não havia sinais era o melhor, que depois até podia entrar em trabalho de parto e ele não ia estar no hospital, para me assistir, portanto concordei. De vez em quando dava-lhe umas deixas, nunca de forma direta, mas rapidamente me habituei à ideia de que o pai não ia poder estar presente para assistir ao nascimento dela.”
Não esteve. E, na altura, Mónica até achou que era normal — era assim em todos os hospitais, não era seguro, simplesmente. Mas depois, nas aulas de recuperação pós-parto, conheceu outra recém-mãe que tinha tido um parto por cesariana num hospital privado exatamente com o mesmo obstetra — e o pai tinha sido autorizado a estar presente no bloco. “Vieram-me as lágrimas aos olhos, não queria acreditar, como é que era possível?! Então se se pagasse já não existiam riscos? Não me pareceu justo. E eu, quando acho que uma coisa é injusta, vou morrer a tentar mudá-la.”
A oportunidade surgiu dois anos depois, quando estava grávida de Martim. Tudo começou com uma conversa que teve com a amiga Isabel Faia, também grávida e com um parto por cesariana no horizonte — o primeiro até tinha sido natural, num privado, mas daquela vez a bebé tinha ficado sentada até ao fim e ia ter de ser retirada no bloco operatório. Apesar de até ter seguro de saúde, Isabel não estava na disposição de pagar a choruda diferença devida em caso de cesariana no hospital privado em questão. Ambas decidiram ter os bebés no mesmo hospital público, São Francisco Xavier.
“Foi uma enfermeira que disse à Isabel, no curso de preparação para o parto, que não fazia sentido nenhum que os pais não pudessem assistir, mas que para isso mudar eram eles — nós — que tínhamos de nos mexer e reclamar. Disse que não chegava escrever em livros de reclamações, que só são lidos pelas administrações, que era preciso fazer mais. Foi assim que surgiu a ideia da petição”, revela a formadora.
No final da primeira audição na comissão da saúde, uma deputada chamou Mónica à parte e disse-lhe que, para haver uma possibilidade de a lei mudar de facto, precisavam de pelo menos 4 mil assinaturas, o dobro do que tinham conseguido reunir até então. Quando voltaram a partilhar o link da petição e a dar entrevistas para publicitar a causa, tanto Mónica como Isabel já sabiam que, à partida, não iam estar a lutar por algo que as pudesse beneficiar diretamente. “Nunca quis isto só para mim. Claro que, quando comecei, achei que o meu médico ia ouvir o barulho e deixar o Maurício assistir ao parto do Martim, mas nunca quis que fosse uma exceção minha, não fiz isto por mim. Estava a lutar contra uma injustiça e a ser a voz de muitas pessoas insatisfeitas, não ia calar-me só porque já não ia usufruir”, garante.
Ainda escreveu para a administração do São Francisco Xavier a pedir a presença de Maurício no bloco operatório, mas a decisão foi remetida para o diretor do serviço, que era o seu médico, que tinha sido o primeiro a dizer-lhe que não seria possível. “Garantiu-me que não fazia sentido, que nem nos privados fazia sentido, mas que os médicos lá não tinham grande margem de manobra para recusar. Isso não é verdade, falei com vários médicos e enfermeiros que me disseram que não é assim. Nunca me foi sugerido que fizesse a cesariana no privado, isso não, mas mesmo assim não vejo coerência nenhuma nisto, só injustiça.”
Apesar de tudo, fez um plano de parto para o nascimento de Martim. Entre muitas outras coisas, pediu que o pai estivesse presente e que pudesse cortar o cordão umbilical, que o bebé fosse retirado devagar para que o líquido dos pulmões pudesse ser libertado naturalmente, e que o foco de luz usado durante a cirurgia fosse afastado dele no momento da extração. No final, dizia obrigada de antemão: “Agradecemos a toda a equipa o apoio e compreensão necessários para tornar esta experiência num MOMENTO ÚNICO, BONITO E HUMANO da nossa FAMÍLIA”. Não serviu de muito: não só Maurício não viu Martim nascer, como ainda foi para o bloco a sentir-se desconsiderada. Quando estava na casa de banho a despir-se, recorda, ouviu alguém da equipa a referir-se ao documento: “Um plano de parto para uma cesariana?! Esta gente é doida…”
Pior só mesmo o que aconteceu à amiga Isabel que, depois de dar entrada no bloco de partos sozinha, teve problemas com a anestesia: a epidural não fez efeito pelo que os médicos decidiram passar à sedação total para fazer a cesariana. “Não deixou. Disse-lhes que alguém tinha de ver o filho nascer e se não permitiam que o pai estivesse ali, então ia ter de ser ela a fazê-lo. Foi de uma violência horrível”, conta Mónica.
Ambas assistiram, no dia 5 de fevereiro de 2016, com os respetivos bebés ao colo, ao plenário na Assembleia da República onde a resolução decorrente da petição que iniciaram foi discutida e votada. Tal como Sónia Morais Santos, não querem nem acreditar que, apenas oito meses depois de ter entrado em vigor, a presença de pais ou “pessoas significativas” durante as cesarianas programadas volte a ser posta em questão.
“É uma pena se se estragar tudo. Fiquei triste, isto revolta-me imenso. Esta postura dos médicos é um bocadinho foleira, é de uma arrogância completamente pré-histórica“, diz a blogger.
“Noutros países, como Inglaterra, França e Alemanha isto nem é uma questão, os pais estão lá e pronto. No fundo acho que é só uma questão de dinheiro, por isso é que há médicos que no público não aceitam e no privado já não colocam objeções. Também penso que os médicos estão, mais uma vez, a puxar dos galões. Na nossa sociedade, é deus no céu e médicos na terra, não estão habituados a serem questionados ou postos em causa”, acusa a formadora de desenvolvimento pessoal. “Para os médicos é só mais um parto, para os pais, mesmo que tenham mais do que um filho, é uma coisa que acontece uma vez na vida. Não é só mais uma cirurgia, é a cirurgia.”