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A velha frase é da política americana, popularizada por um conselheiro de Bill Clinton, mas podia ter-se aplicado que nem uma luva a este debate em França: “É a economia, estúpido.” Perda de poder de compra, impostos, salário mínimo e aumento da idade da reforma dominaram a primeira das duas horas do embate que opôs o primeiro-ministro Gabriel Attal (do Renascença, partido de Emmanuel Macron) a Jordan Bardella (da União Nacional de Le Pen) e Manuel Bompard (dirigente do França Insubmissa de Jéan-Luc Mélenchon e representante da Frente Popular de Esquerda — que alternará entre candidatos nos próximos debates).
Foi logo evidente pelos temas que os três escolheram trazer para as suas intervenções iniciais, como bem notou o Le Monde: Bardella focou-se na conta da eletricidade dos franceses e Bompard disse querer evitar que os mais velhos regressem às filas dos centros de emprego, enquanto o incumbente Attal optou por fugir ao assunto e defender a importância da escola pública, “a mãe de todas as batalhas” contra a desigualdade, e o respeito pela autoridade pelos professores.
Com exceção da política ambiental (onde se apresentaram três projetos claramente diferentes que nenhum pareceu entusiasmado em debater) e da saúde (empurrada para os últimos minutos e reduzida a banalidades sobre um sistema mais próximo das comunidades), dois temas dominaram todo o debate: economia e imigração. À primeira vista, o chefe de governo partia em desvantagem, à defesa, assumindo medidas impopulares como o aumento da idade da reforma e uma lei de imigração que incendiou a sua própria bancada. Até o tema onde em teoria poderia estar mais à vontade face aos adversários, o da política externa, esteve ausente, com Ucrânia e Gaza chutadas para os próximos embates.
Lei da imigração provoca crise interna no macronismo. Mas Presidente limita-se a sorrir e acenar
E, no entanto, Attal sobreviveu mais um dia. As sondagens mostram o macronismo em queda, a extrema-direita continua em ascensão permanente (evidente pelas múltiplas vezes em que Bardella repetiu a formulação ‘Quando eu for primeiro-ministro’) e a esquerda unida apresenta um desafio sério a uma passagem do Renascença à segunda volta. Mas, feitas as contas, o jovem primeiro-ministro não ficou encostado às cordas — e tudo continua em aberto nesta eleição em tempo recorde, cuja primeira volta é já no próximo domingo, dia 30 de junho.
Descida do IVA, aumento do salário mínimo e idade da reforma. Os temas difíceis que Attal contornou melhor do que seria de esperar
A posição na economia era complicada. O debate sobre o aumento do custo de vida é sempre mais facilitado para quem não está no poder e propõe alternativas do que para os incumbentes: a União Nacional trouxe a ideia de baixar o IVA dos atuais 20% para 5,5% nas áreas da energia, gás e combustíveis, de isentar de impostos os jovens abaixo dos 30 anos e de impor o IVA zero para produtos essenciais; a Frente Popular de esquerda defendeu o aumento do salário mínimo para os 1.600 euros na função pública, esperando a criação de um “círculo vicioso de virtude” que faça aumentar os salários em geral. Promessas que soam certamente bem a um eleitorado descontente, perante um governo impopular, cujo primeiro-ministro trazia apenas a promessa de “não aumentar mais impostos” e de promover o emprego entre os mais velhos.
Mas o jovem primeiro-ministro reagiu, colando as propostas de um lado e de outro a uma aparente “irresponsabilidade” que mergulharia a França numa crise de dívida pública (a que Bardella replicou relembrando que o défice atual de França já é superior a 5% do PIB) e acusando os adversários de estarem a “prometer a lua” aos franceses e garantindo que ele, ao contrário de Bardella e Bompard, não iria mentir aos franceses. “Por que não 3.000 euros de salário mínimo?”, ironizou em direção ao colega da esquerda, tentando provar o irrealismo da proposta.
A questão do aumento da idade da reforma era outro ponto altamente sensível. O governo de Macron aprovou uma lei que uniformizou a idade da reforma para os 64 anos (face aos 60 que já vigoraram em tempos) e que revelou ser uma reforma absolutamente impopular que trouxe milhares de franceses às ruas.
Foi o primeiro tema onde o debate aqueceu verdadeiramente e foi aí que o altamente controlado Jordan Bardella (que há muito é usado pela União Nacional como exemplo de uma aparente moderação) perdeu o controlo da sua narrativa. A proposta da UN de permitir reforma mais cedo para quem começa a trabalhar aos 20 anos é combinada com a perspetiva de reforma apenas aos 66 anos (mais dois anos do que vigora atualmente) para quem entra no mercado de trabalho mais tarde e o presidente do partido de Le Pen atrapalhou-se na resposta ao próprio moderador.
À esquerda, o candidato do França Insubmissa defendia um recuo para os 62 anos e progressivamente até aos 60, que Attal classificou como uma medida que teria um custo de 40 mil milhões. “Este é um projeto de 40 mil milhões de euros que não está financiado. E o que levará a uma onda de impostos para financiá-lo”, retorquiu o primeiro-ministro. E, para Bardella, foi desferida uma estocada ainda maior: “No seu modelo, quem é que vai pagar se não pagamos impostos até aos 30 anos e deixamos de trabalhar aos 60?”. Se o conselheiro de Clinton dizia “É a economia, estúpido”, Attal evocou mais o português António Guterres: “É fazer as contas”, poderia ser o resumo da sua intervenção nesta matéria. Mas é suficiente para convencer os franceses quando não se tem mais nada para oferecer em troca?
Imigração. Como Jordan Bardella pareceu ter sido encostado às cordas — mas evitou repetir totalmente o modelo Le Pen
Se na economia o debate foi intenso, quando o tema da imigração foi posto na mesa o termómetro subiu ainda mais. E, desta vez, Attal não estava sozinho: fez equipa com Bompard para atacar a extrema-direita, em particular a proposta da UN de abolir o direito ao jus soli (atribuição de nacionalidade a quem nasça em território francês) e, em concreto, ao direito a ter dupla nacionalidade.
“Se for primeiro-ministro, serei o de uma França que reduzirá drasticamente o fluxo migratório”, prometeu Bardella. “Não é compreensível que estrangeiros em situação irregular beneficiem de todos os nossos apoios sociais”, acrescentou, atirando a frase lapidar que soa como música para os ouvidos de muitos eleitores “há milhares de franceses que não reconhecem a França atual”. Ao mesmo tempo, foi exímio no equilíbrio de não largar bandeiras do partido, mas escolher taticamente os alvos, não se alongando, por exemplo, na “abertura ao islamismo” dentro das escolas, ao optar por defender medidas como a proibição do uso de telemóveis e instituição de uniforme em vez do discurso mais anti-islâmico que a UN já defendeu no passado — e que, nas presidenciais, chegou a fazer Marine Le Pen perder debates face a Emmanuel Macron.
Mas Manuel Bompard iniciou o contra-ataque, tentando mostrar que a UN de Bardella não é diferente da de Marine Le Pen. Disse que muitos estrangeiros “construíram a França de hoje” e relembrou ao adversário as suas próprias origens (é filho de uma imigrante espanhola e neto de uma argelina e de um italiano). “Temos de lhes agradecer”, disse. “Ao contrário do que diz, a maioria dos imigrantes em França trazem dinheiro ao país, é o que mostram os dados da OCDE.”
Depois do candidato da Frente Popular ter desferido o primeiro golpe, Attal reforçou o ataque com a história que trazia preparada das duas jovens com dupla nacionalida (franco-marroquina e franco-arménia) que lhe disseram sentirem-se “humilhadas” pela proposta da UN. “Esta é uma proposta que vem desde Jean-Marie Le Pen”, atirou, colando claramente o candidato ao antigo líder, ativo tóxico conhecido pelas tiradas racistas e antissemitas e afastado do partido pela filha Marine Le Pen. “A mensagem que envia é a de que ter dupla nacionalidade é ter só meia nacionalidade, é não ser digno da confiança de França.”
Bardella reagiu rapidamente: “Quer colocar um franco-russo como responsável por uma central nuclear?”, questionou — o único momento do debate em que a situação externa foi abordada. Mas Attal estava preparado e relembrou que se a UN está tão preocupada com isso, não deveria ter contratado para consultora europeia uma franco-russa, Tamara Volokhova. E, por fim, desferiu o golpe final, dando a entender que a proposta não tem a ver com nacionalidade, mas com raça; “A verdade é que a vossa proposta não tem a ver com os franco-russos. À Tamara é um sim; à Rachida é um não“, rematou, deixando Bardella indignado a falar em “teatro” político e a pedir moderação.
A estratégia discreta de Bompard que pode ter sido um trunfo ou um tiro no pé
Nada que, contudo, signifique que as propostas da UN se tornem automaticamente mais impopulares ou que Bardella entre em queda no momento a seguir. Pelo contrário: o seu estilo mais moderado e menos combativo do que o da madrinha Le Pen pode precisamente ser benéfico ao ajudar na estratégia de dédiabolisation que o partido há tanto tenta promover, querendo provar que as suas ideias são nacionalistas e não xenófobas, conservadoras e não racistas. O facto de o tema central da imigração ter sido sobre a dupla nacionalidade e não sobre o acesso de imigrantes a apoios sociais, por exemplo, é já uma pequena vitória para Bardella — mesmo que não tenha sido um orador brilhante a defendê-la.
A tudo isto se soma a incapacidade do candidato da Frente Popular de se afirmar como alternativa ao Renascença nesta matéria — e logo face a um governo que promoveu uma lei de imigração aprovada por unanimidade pelos deputados da UN, que causou desconforto dentro das próprias fileiras do macronismo e que incluía algumas das medidas de que Attal não só se descolou, como defendeu neste debate.
O primeiro-ministro tentou roubar discretamente e com outra roupagem bandeiras à UN, defendendo penas mais pesadas para menores delinquentes reincidentes e a “laicização” nas escolas através da proibição do uso da abaya (veste tradicional árabe usada pelas mulheres que cobre todo o corpo).
Manuel Bompard não pareceu investido em atacar Attal por isso. Para alguns, é uma estratégia que pode revelar-se bem sucedida: “Bompard foi bom por contraste”, sublinhava pouco depois do debate o colunista Pascal Riché, elogiando o tom calmo e razoável que o poderá ajudar a se ter assumido como uma espécie de “voz da razão” entre um primeiro-ministro “que espalhou arrogância” e um candidato “tenso como uma corda”.
Foi certamente uma estratégia estudada — ancorada nos números das sondagens que mostram que o combativo Jéan-Luc Mélenchon, que quase bateu Macron e passou à segunda volta das presidenciais em 2022, tem a sua popularidade em queda. Mas numa eleição em que o primeiro objetivo para a Frente Popular de esquerda é ficar à frente do macronismo, passar à segunda volta e só depois derrotar a União Nacional, a dificuldade em descolar de Attal pode não ter sido a escolha mais inteligente, correndo o risco de Bompard se ter apagado perante os eleitores face a dois candidatos mais combativos.
E, como se não fosse suficiente, o atual primeiro-ministro não perdoou e não se limitou a atacar apenas Bardella. Na sua mensagem final do debate, fez questão de lembrar aos eleitores que a Frente Popular é uma combinação de forças de esquerda heterogéneas, deixando no ar a ideia de que é, na verdade, totalmente controlada pela França Insubmissa.
A sua proposta, garantiu aos franceses, de olhos postos na câmara, é a de ser “a alternativa aos extremismos que fariam de Jéan-Luc Mélenchon ou Jordan Bardella primeiros-ministros”. Como vaticinava o editorial do Le Figaro na noite da véspera do debate, a estratégia do macronismo continua a ser apenas uma: “Eu ou o caos”. Até aqui, tem-lhe permitido sobreviver. Os próximos dias dirão se os franceses ainda concordam.