O Governo concentra as fichas todas da defesa do caso da incompatibilidade do ministro Pedro Nuno Santos num parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), pedido por António Costa em 2019. O parecer tem uma particularidade: a atual ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, foi um dos membros do Conselho Consultivo que votaram a favor, por unanimidade, neste parecer no dia 19 de setembro e, um mês depois (a 26 de outubro), estava a tomar posse como governante (na altura como secretária de Estado) e a ‘beneficiar’ desta interpretação da lei. Afinal, que parecer é este e o que diz?
O que está na origem do parecer?
No verão de 2019 surgiram vários casos de familiares de ministros que tinham negócios com o Estado: contratos do filho do secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, contratos de empresas do pai de Pedro Nuno Santos e contratos do marido da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. A discussão pública na altura era se as empresas dos familiares dos governantes podiam fazer contratos com o Estado e se isso devia provocar a sua demissão direta, como estava na letra da lei. A tónica estava nos contratos de empresas de familiares e não nas sociedades detidas conjuntamente por titulares de cargos políticos e familiares. António Costa pediu então um parecer à PGR.
Como foi votado o parecer?
O parecer da PGR acabou por ser aprovado por unanimidade e a agora ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, “votou todas as conclusões sem reservas nem declarações”. Catarina Sarmento e Castro estava no Conselho Consultivo do Ministério Público na qualidade de vogal e por ser procuradora-geral adjunta.
A atual ministra da Justiça tinha sido juíza do Tribunal Constitucional até abril desse ano, onde estava há nove anos, tendo sido indicada pelo PS. Escolha essa que também tinha uma trama familiar. A sua eleição para juíza do TC na Assembleia da República chegou a ser chumbada porque na altura o seu pai, Osvaldo Castro (que faleceu em 2013), era o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais.
O deputado socialista pediu escusa no momento da votação em plenário, mas o nome da filha acabou chumbado. Apesar do acordo de votos entre as lideranças das bancadas de PS e PSD, o voto é secreto e alguns deputados roeram a corda. Foi a primeira vez que um juiz do TC foi chumbado por não ter dois terços dos votos. Mas o PS insistiu no nome em nova votação e, à segunda, Catarina Sarmento e Castro foi eleita. Ficaria mais nove anos como juíza no Palácio Ratton, de onde só saiu em abril de 2019.
No mesmo verão Catarina Sarmento e Castro passou a procuradora-geral adjunta e membro do Conselho Consultivo da PGR, liderado por Lucília Gago. Foi nessa condição que votou então o parecer, embora não tenha sido a relatora do documento.
Os restantes membros do Conselho Consultivo da PGR votaram exatamente como Catarina Sarmento e Castro: Maria da Conceição Silva Fernandes Santos Pires (que foi a relatora); João Alberto de Figueiredo Monteiro; Maria de Fátima da Graça Carvalho; Eduardo André Folque da Costa Ferreira; João Eduardo Cura Esteves Mariano; Maria Isabel Fernandes da Costa; e João Conde Correia dos Santos.
O que diz o parecer?
O parecer distingue, tal como a lei, três situações sobre os impedimentos na contratação pública:
- aquela em que são os próprios políticos a deter mais 10% de uma sociedade;
- aquela em que são os familiares a deter mais de 10% de uma sociedade;
- e aquela em que os políticos detêm mais de 10% da sociedade “conjuntamente” com um familiar.
Sobre a primeira situação, em que é o próprio titular do cargo político a deter mais de 10% da empresa, o parecer diz que pode ser aplicada a letra da lei: há um impedimento e essa empresa não pode ter contratos públicos. Esta situação não está em causa no caso do ministro Pedro Nuno Santos.
Quanto à segunda situação, em que a empresa é apenas de familiares, o parecer conclui que não deve ser aplicada a lei no sentido literal, uma vez que estaria em causa o “princípio da proporcionalidade”, o que até poderia ser inconstitucional. Para o Conselho Consultivo da PGR, esta segunda situação só deve ser considerada um “impedimento” unicamente em relação aos “concursos que foram abertos ou correm os seus trâmites sob a direção, superintendência ou tutela de mérito do órgão do Estado ou do ente público em que o titular do órgão ou do cargo exerce as suas funções”. Ou seja: se a empresa fosse só do pai de Pedro Nuno Santos (e não também do próprio), o impedimento só iria abranger os contratos públicos na área do Ministério das Infraestruturas e Habitação.
Na terceira situação, em que a empresa é detida em mais de 10% “conjuntamente” pelo governante e um familiar, o parecer não altera o que está na lei. É precisamente esta a situação que está em causa no caso de Pedro Nuno Santos, já que se trata de uma empresa em que o próprio titular do cargo detém uma percentagem da empresa e “conjuntamente” com o pai tem mais de 10%. Ao contrário do que faz com as empresas detidas apenas por familiares, neste caso o parecer da PGR não propõe uma leitura não literal. Ou seja: mantém o impedimento, bem como a consequência.
O parecer diz que a referida “redução teleológica” — a tal leitura não-literal que permitiria ao ministro não estar perante um impedimento — é relativa não a todo o artigo 8.º da lei n.º 64/93, mas apenas à alínea a).
Acontece que, o que está em causa nesta situação não é a alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º — que é referente aos casos em que as empresas são detidas apenas por familiares –, mas sim a alínea b), que trata de empresas detidas “conjuntamente” pelo titular do órgão e um seu familiar.
Não é apenas na 12.ª conclusão que o parecer da PGR diz que a “redução teleológica” é apenas para os casos em que as empresas são apenas dos familiares. Isso acontece noutros pontos da argumentação do documento. O parecer da PGR esclarece na 16.ª conclusão que as sanções previstas (a demissão), embora respeitem uma “responsabilidade tendencialmente objetiva”, pressupõem uma “prática pelo agente político de uma conduta merecedora de uma censura política, ou a omissão de um determinado comportamento que lhe era imposto que assumisse, à luz dos seus direitos e deveres funcionais, e que pura e simplesmente descurou”.
Na conclusão seguinte, a 17.ª, o parecer coloca as empresas detidas pelo titular do cargo em conjunto com um familiar no mesmo patamar de responsabilidade em relação às empresas detidas exclusivamente pelos titulares do cargo: “Esta responsabilidade de pendor objetivo visa justamente obviar a que a suspeição do favorecimento pessoal e familiar, por banda do titular do órgão ou cargo, não coloque em causa a imparcialidade do próprio órgão e que, por seu turno, não haja o risco de as empresas, em cujo capital social participe, por si ou conjuntamente com pessoas do seu círculo familiar, beneficiarem indevidamente de vantagens inerentes à sua particular relação fiduciária com o titular dos órgãos do poder e que, de outro modo, alegadamente, não obteriam.”
Que reações houve especificamente sobre a lei?
O Governo teve uma primeira reação oficial, por via da Presidência do Conselho de Ministros, com uma nota a defender o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos. O comunicado dizia que só haveria incompatibilidade caso a contratação fosse numa área tutelada pelo Ministério das Infraestruturas e da Habitação — leitura que o parecer da PGR faz, mas para os casos em que a empresa é detida em mais de 10% apenas pelo familiar.
A nota omite, no entanto, a situação que se verifica neste caso particular, em que o titular do cargo e o pai detêm “conjuntamente” mais de 10% da empresa. Esta situação está, aliás, tipificada num ponto próprio do artigo da lei que estabelece os “impedimentos” a que estão sujeitos os governantes: o ponto 3, do artigo 9º, da lei nº52/2019.
O Presidente da República também falou sobre a lei. Embora começasse por dizer que nunca fala de “casos concretos”, mas sim “em abstrato”, acrescentou que “se a lei define determinadas regras sobre incompatibilidades e há situações que são geridas por essas regras, há que fazer cessar a incompatibilidade.”
Marcelo Rebelo de Sousa, que se encontrava no Chipre, disse ainda que há outras situações em que “não há incompatibilidades”, ensaiando quase uma desculpabilização de Pedro Nuno Santos quando diz: “Não sei se porventura não é mesmo esse o caso em que não há incompatibilidades”.
O Presidente lembra depois que “a lei define determinadas percentagens de capital detido em empresas que celebram contratos públicos. Se não se atinge essa percentagem ou se não se atinge determinado tipo de valor no contrato, aí não se aplica a lei”. Apesar de especialista em direito administrativo e constitucional, o que Marcelo Rebelo de Sousa diz está errado por duas razões: Pedro Nuno Santos em conjunto com o pai ultrapassa largamente os 10% e não há nada na lei dos impedimentos que faça depender a incompatibilidade do valor do contrato.
Marcelo sugeriu, no entanto, que não tinha um conhecimento profundo do caso: “É preciso ver o que se passa, se sim, se não, para não haver generalizações.” O Presidente também admitiu vir a recorrer para o Tribunal Constitucional: “É uma questão que pode ser apreciada, não ponderei em concreto, tenho de ver, provavelmente envolve várias leis e a conjugação de várias leis. Temos de ver.”