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É um intelectual frio e seguro de si que veio da revolução para a social-democracia, eleita como definitivo porto de abrigo político (e sobre a qual, de resto, se atarda aqui com gosto). Ensinou-se a si próprio a tudo racionalizar, desconfiando, quer por natureza, quer pelo estudo da sociologia, da intuição. Banindo-a aliás de qualquer raciocínio e ainda mais do seu processo de decisão. Quando lhe falei do valor da percepção política como indicador, Augusto Santos Silva, 62 anos, trocou-a de imediato pela “ciência” e pelos “indicadores” que dela lhe chegam.
Vindo da universidade onde leccionava – no Porto, onde nasceu — chegou à política activa como secretário de Estado de Guilherme d’Oliveira Martins, então Ministro da Educação. A seguir titulou essa mesma pasta, depois a Defesa, agora a política externa. Foi dela que se conversou, da NATO à China, de Londres a Bruxelas.
Mas era preciso ouvir também este socialista — a quem António Costa presta boa atenção – viajar pela sua terra política. Ouvi-lo — por exemplo — elaborar sobre a aliança com a extrema-esquerda ou gabar ao máximo a honra (abalada?) do seu “convento”, louvando-lhe os méritos e nunca duvidando de futuros êxitos: nem nesta Primavera, nem no próximo Outono.
E, no entanto… Estará este intelectual assim tão seguro como aqui aparentou? Seguro de tudo: escolhas e opções governativas, as prestações dos seus pares, a certeza do caminho “social-democrata” do PS? Ele diz que sim: está.
[Da China “parceira” ao “parolismo” do “familygate”. ‘Best of’ da entrevista a Santos Silva]
O ministro dos Negócios Estrangeiros: China, Brexit e Trump
Gostaria que nos esclarecesse sobre alguns passos da nossa política externa que podem ter suscitado dúvidas ou perplexidades no que toca à orientação seguida. Começo pela China: como comenta a evolução das relações entre a União Europeia e a China, hoje apelidada em Bruxelas de “rival sistémico”. Pode radiografar-nos ou descodificar-nos isto?
Em primeiro lugar, não sejamos ingénuos…
Ingénuos, quem? Nós portugueses, nós europeus?
Sim, em primeiro lugar não sejamos ingénuos. No mesmo dia em que foi recebido pelo Presidente Macron, a Chanceler Merkel e o Presidente Junker, o Presidente Xi da China assinou um contrato para compra de cerca de 300 aviões da Airbus, empresa europeia, sediada em França. E não sejamos ingénuos porque a ingenuidade é o pior dos ingredientes em política externa. Em segundo lugar, eu talvez a surpreenda dizendo que estou cem por cento de acordo com os termos com que a Comissão Europeia descreve a nossa relação atual com a China. Ou seja, o que nós dizemos é que a China é um nosso parceiro corporativo, designadamente na agenda do clima; é um nosso parceiro negocial — temos interesses divergentes e às vezes convergentes e assim trabalhamos; é um nosso concorrente económico, por exemplo em África; e é um nosso rival estratégico em modelos de governação. O que significa que temos uma concepção das instituições políticas muito diferente.
A propósito disso mesmo terá seguido o que está a ocorrer na China, concretamente na província de Xinjang. Repressão, ausência total de direitos humanos…
Sim, sim, sei. E olhe, faz hoje exatamente quinze dias participei num almoço de trabalho com os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia e com o ministro chinês. Quando chegou à minha vez anunciei que havia três coisas muitas importantes para trabalharmos em conjunto, nós, União Europeia, e a China: primeira, as ligações, a chamada conectividade; segunda, um acordo de investimento que andamos a discutir há anos e queríamos concluir; e terceira a necessidade de uma discussão sobre direitos humanos.
Qual foi a resposta sobre essa terceira alínea, a dos direitos humanos?
A resposta chinesa aos direitos humanos — que aliás devemos compreender na parte em que ela é compreensível — é é sempre a mesma: reconhecemos o valor dos direitos humanos mas queremos que vocês reconheçam também o facto de termos tirado centenas de milhões de chineses da pobreza, termos educado centenas de milhões de pessoas e isto constitui um feito histórico. O que se deve também muito — é verdade e deve ser lembrado — a Deng Xiaoping.
Essa explicação ao mais alto nível chega? A argumentação da parte chinesa foi suficiente para si e para os seus pares na UE?
Claro que não chega, minha senhora! Como sabe não temos pena de morte, nem perseguimos politicamente as pessoas, nem as molestamos por razões religiosas…
Se não chega, então o quê?
Somos rivais nesse domínio. Queremos – e batemo-nos por isso — que o nosso modelo democrático europeu influencie o mundo. E os chineses não querem. Portanto, não há duvidas: somos rivais nessa influência. Mas pergunto: acaso a Europa deve fechar-se sobre si mesma, olhando para si, dizendo que agora a relação com os Estados Unidos está mais difícil? Não investindo na relação com a América Latina? Abandonando a China, abandonando África à China? É isso que a Europa tem feito! Desconhecendo que a Índia são mil e quatrocentos milhões de pessoas e a China são mil e quatrocentos milhões de pessoas? Eu respondo: não e não! A Europa não pode de modo algum fechar-se sobre si própria.
E nós, Portugal?
Portugal tem responsabilidades nisto? Claro que tem. Portugal é um país europeu e é o país europeu que mais se projeta para fora da Europa. Sim, não é o único — a Espanha também tem obviamente um papel — mas nós, em relação a África, a parte considerável da América Latina, em relação à China e em relação à Índia, não temos uma responsabilidade de abrir a Europa para o mundo e ao mundo? Ai isso é que temos!
Seja, mas como? Dou-lhe outro exemplo, que é simultaneamente outra dúvida e fonte de algum mau estar: porque é que o país ignora o conteúdo dos acordos e memorandos assinados entre Portugal e a China quando cá esteve o Presidente chinês, em dezembro último? A Itália publicou os seus, Portugal não publicou. Devia ser assim? Os portugueses nada sabem do que foi decidido em seu nome.
Os portugueses não sabem, mas os representantes dos portugueses sabem. Quando o grupo parlamentar do PSD os pediu, eu facultei-os imediatamente. Fazemos também habitualmente resumos desses vários documentos através de declarações que são tornadas públicas. A lógica dos documentos diplomáticos é essa.
E quanto à nossa colaboração – ou seja, à disponibilidade portuguesa – para a nova “Rota da Seda”? Para que os nossos leitores e espectadores nos possam seguir permita-me lembrá-los que houve um quase “sim” português, ou pelo menos um interesse manifestado por Portugal, ao convite, ou desafio — como quiser dizer — para a “Rota da Seda”, causando alguma perplexidade nalguns meios diplomáticos internacionais. A poucos dias da Cimeira União Europeia/China, qual é a sua própria opinião sobre a natureza e o propósito da “Rota da Seda”.
A razão é muito simples — e vamos pô-la de forma não ingénua. É uma iniciativa chinesa no sentido de ganhar influência nas grandes redes de transportes e comunicações do mundo, designadamente aquelas que ligam a Ásia à Europa, na qual Portugal tem um interesse estratégico, com um nome muito simples: Porto de Sines.
E?
Já hoje há uma ligação ferroviária de mercadorias que vem do confim da China até Madrid. Portugal quer ficar à margem disso? Quer que eu lhe diga quais os países europeus por onde passa essa ligação? Diz-se muitas vezes que Portugal olha hoje muito para a China, que há um peso que alguns acham excessivo do investimento chinês em Portugal, mas eu pergunto: quais são os cinco países europeus em que há mais investimento chinês? O Reino Unido, a Alemanha, a França, a Itália, e só muito depois vem Portugal.
Não sei se justamente a França e a Alemanha estarão assim tão bem na sua pele com as proporções que esta história da China está a tomar?
Não, a França e a Alemanha estão a fazer uma coisa que é do interesse deles, que é dizer assim: “Ok, agora nós precisamos que o mercado chinês se abra mais às nossas empresas; necessitamos que a contratação pública chinesa se abra mais às suas empresas”. E eu acho que eles fazem muito bem em insistir nesse ponto! Como também considero que Portugal faz muito bem em dizer “Nós queremos que o mercado chinês se abra mais às nossas exportações” — e infelizmente as nossas exportações não são aviões, por enquanto. Estamos mais atrasados.
Estamos onde? Pode falar-se de escala, houve algum progresso?
Sim. Há uma mudança de escala absolutamente impressionante para as nossas exportações. Agora, por exemplo, estou já a discutir as frutas. Estou também a discutir com os chineses algo que me parece muito importante. A China adquiriu activos em Portugal, designadamente na EDP, na REN e num banco. Aliás, relembro-o, adquiriram-nos porque a troika nos obrigou a privatizar e porque os nossos amigos europeus fizeram ofertas absolutamente inaceitáveis… Estou à vontade porque o primeiro-ministro era o dr. Passos Coelho. Mas, dito isto, a época de comprar ativos já acabou. Primeiro, porque não há mais nada a privatizar, nem nós queremos. A época é agora de desenvolver investimentos industriais de raiz. Os chineses querem fazer uma fábrica de mobilidade elétrica na Europa? Pois se calhar uma boa localização para ela pode ser em Portugal. Vamos ver, segundo as regras nacionais e as regras europeias.
Os diversos responsáveis pela condução da barca europeia falam evidentemente da União Europeia como um extraordinário “acquis” político e económico, tão valioso quanto indiscutível. Ninguém põe isto em causa. Mas pergunto: a propósito da transição para as novas redes da quinta geração, onde está afinal a autonomia estratégica da Europa, se somos obrigados a escolher entre empresas americanas e um programa chinês?
Também podemos escolher empresas europeias.
Podemos?
A Eriksson e a Nokia são europeias e, portanto, o que é preciso é que as nossas empresas, quer europeias, quer norte-americanas, participem ativamente no desenvolvimento das redes 5G… Acho que há uma afinidade estrutural entre a Europa e a América do Norte — é por isso que não tenho medo de utilizar a palavra “ocidente” — e que essa afinidade estrutural é uma das melhores condições da paz no mundo.
Essa afinidade estrutural não pode, no caso português, estar algo “beliscada” pela nossa, digamos, “simpatia” em relação à China?
Não, não. Desde que a actual administração americana tomou posse temos feito um exercício – e se nos dissessem há uns anos que o tínhamos que fazer, não se acreditaria! — de convencer os americanos de quão essencial é a NATO; de quão essencial era o acordo de comércio e investimento entre a Europa e os Estados Unidos; de quão importante é esta ligação transatlântica… Voltando porém ainda ao seu ponto, da autonomia estratégica da Europa, há questões de segurança essenciais quando olhamos para as redes de comunicações e outras infraestruturas críticas. Devem absolutamente ser acauteladas, são questões muito mais importantes que o lucro económico.
E têm sido acauteladas? Por exemplo: o Governo tinha ou não tinha consciência da delicadeza política e diplomática do memorando assinado entre a Altice Portugal e a Huawei para as redes 5G? Falando de cautela: tinha ou não tinha?
Esse memorando de entendimento foi assinado entre uma empresa francesa e uma empresa chinesa, e eu – insisto — continuo a raciocinar como se não fosse ingénuo. Desse memorando resulta alguma obrigação para o Estado português no lançamento do concurso, que se há-de fazer a seu tempo, no lançamento da nossa rede nacional de 5G. Nem a Altice, nem a Huawei mandam no Governo português. Pergunta-me: o Governo terá em conta condições de segurança no lançamento? Claro, trata-se de uma questão crítica. Usará os padrões europeus e internacionais para o fazer? Claro. Nós, aliás — nós, quero eu dizer os chefes de Estado e Governo — mandatámos uma comissão para justamente estudar a forma como devemos acautelar essas mesmas questões de segurança. Até agora os americanos têm-nos justamente chamado a atenção para os problemas de segurança que daí podem advir. Nós ouvimos. Ouvimos, registamos, lemos e conservamos tudo o que nos dizem. Os americanos são um aliado essencial de Portugal
Mas reconhece que têm havido chamadas de atenção?
Têm…
Portanto, aquilo que eu aqui tenho evocado como uma espécie de mal-estar diplomático, não é uma fantasia…
Maria João, eu digo as coisas muito concretamente, como sabe não me escondo atrás das palavras!
E?
E as autoridades britânicas de cibersegurança não identificaram até agora nenhum problema e nós tomámos boa conta dessa informação. Os alemães a mesma coisa, aliás estão a prosseguir — eles sim! — com o processo de implementação do 5G, com a participação de empresas chinesas. Os nossos próprios serviços, quer o Centro de Cibersegurança, quer a Anacom, que é um regulador independente, também não identificaram até agora nenhum problema. Devemos com isso dar o caso por encerrado? Não!
Há, pois, a noção dessa “delicadeza” a nível do ministro dos Negócios Estrangeiros e do Governo?
Claro. Não se trata de uma noção, trata-se de uma certeza. A decisão não foi ainda tomada e, embora não seja sequer da minha área, conheço suficientemente bem o Governo para dizer isto com toda a segurança: não tomaremos qualquer decisão sem levar em conta todos os critérios. Como fizemos com o lançamento dos telemóveis de terceira geração e as comunicações.
Para terminar: não há valsas inquietantes a ser dançadas entre Lisboa e Pequim?
Não. Não é uma valsa e ainda menos uma valsa a dois. Se ler o memorando de entendimento sobre a nova “Rota da Seda”, ele explica com clareza que, nesse quadro, a nossa cooperação com a China se faz no âmbito da chamada estratégia da União Europeia para a conectividade euro-asiática. Faço notar que Portugal é o 11.º ou o 12.º país da União Europeia a assinar um memorando desse tipo. E, como se sabe, haverá a cimeira entre a União Europeia e a China no próximo dia 9. No dia 10 há um pequeno interregno para mais um episódio Brexit e, no dia seguinte, a China reúne, no formato 16+1. E o que são os dezasseis? São os dezasseis países europeus, onze dos quais pertencem à União Europeia.
Que me diria a resumir este estado de coisas onde se teme uma mistura de perplexidade, dúvida e desconfiança?
Diria que é preciso termos sempre presente aonde pertencemos. Costumo usar uma expressão, que aliás o Presidente da República faz o favor de também usar. É uma expressão muito simples que espero que não seja considerada indelicada pelos chineses, onde dizemos que a China é nossa parceira, mas não é nossa aliada.
Nuance poderosa…
… a África do Sul, por exemplo, é nossa parceira, a Colômbia é nossa parceira, e há mais. E depois há os aliados: os países da União Europeia a que pertencemos, os países da NATO a que pertencemos e ainda — pelas razões próprias que se compreendem — os países da CPLP que nos estão muito próximos. Esses são amigos, aliados, parceiros e também parceiros económicos. A China é nossa parceira.
Chamam-lhe parceira “histórica”, o primeiro-ministro tem sublinhado a palavra.
E é uma parceira histórica. Por razões históricas, o primeiro país europeu a chegar por via marítima à China foi Portugal, tendo sido o último a sair, aquando da transição de Macau. Devemos retirar vantagem disso? Então não devemos? Repare: nós temos uma vocação global e uma pretensão global. Foi também por isso — entre outras coisas — que conseguimos eleger o secretário-geral das Nações Unidas ou o diretor geral da Organização Internacional das Migrações. Mais uma vez, e para usar as palavras com toda a clareza e de modo a que toda a gente me compreenda, acrescentarei ainda isto: no final de Agosto do ano passado — ou seria de há dois anos? O tempo é tão rápido… — o Presidente chinês organizou uma cimeira China-África que foi inaugurada pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que quis estar presente dada a enorme relevância do encontro. Em África há 54 ou 55 países, e cerca de uma cinquentena representaram-se ao nível do chefe de Estado. Um país como Portugal pode ignorar isto?
Se eu agora disser a palavra Brexit, temo perder leitores e ouvintes…
…então faço uma proposta mais simples: que nós não nos atrevessemos a falar sobre esse assunto! A velocidade e a vertigem são tais que o que eu disser hoje…
Mas talvez possa esclarecer-me uma dúvida: há algumas semanas houve uma démarche meio solitária do primeiro-ministro de Portugal em Bruxelas, pedindo aos seus parceiros europeus que “dessem todo o tempo ao Reino Unido, o tempo que ele precisasse”, gesto notado na imprensa internacional mais do que na nossa. Pergunto: tal démarche foi combinada, discutida, consigo?
É a posição oficial do Governo português.
Claro. Mas nem sempre as coisas sucedem dentro das posições oficiais.
As coisas têm uma hierarquia e quem lidera o Governo é o dr. António Costa.
E quem lidera a política externa é o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Eu sei…
Como ocorreu a ideia desta proposta portuguesa?
Aos dois, ao mesmo tempo. Sendo que eu recebo instruções do primeiro-ministro, não é o primeiro-ministro que recebe instruções de mim próprio.
Falava de “ideia” e não de instruções. É uma boa ideia e uma história interessante.
Tratou-se de uma posição muito reflectida, muito maduramente pensada por parte do governo português. Porque só há duas coisas que fazem sentido para nós: ou se concretiza este acordo negociado durante dois anos e o Reino Unido sai de uma forma ordenada, suave, com um período de transição suficientemente duradouro para que não ocorram bouleversements — um período que, indo até final de 2020, permitirá avaliar muita coisa sobre a nossa relação futura; ou dizemos, nós e vários outros Estados Membros — mas nós dizemo-lo enfaticamente — que então o Reino Unido, estando disponível para alterar algumas das suas linhas vermelhas e para participar nas eleições europeias, deve ter uma extensão da saída suficientemente longa para que possa resolver o seu próprio processo político.
É a vossa posição?
Por duas razões: porque entendemos que a pior coisa que pode acontecer, não só ao Reino Unido mas à Europa como tal, é obviamente uma saída desordenada; mas também bilateralmente, a Europa sabe que Portugal é um aliado histórico do Reino Unido e queremos continuar a sê-lo. Às vezes, a brincar, alguns dos meus colegas dizem-me “Ah, vocês tão amigos dos britânicos” como quem ironiza “Vocês estão mais pelo lado deles”. Respondo-lhes logo que podem dizer aquilo muito a sério: sim, somos amigos dos britânicos. O Reino Unido é o nosso quarto cliente — o ano passado foi o primeiro mercado emissor de investimento —, é o nosso principal mercado do turismo, temos centenas de milhares de portugueses a viver no Reino Unido, temos dezenas de milhares de britânicos a viverem em Portugal. Ah… e eu sou do Porto — como é que a gente conhece com prazer o Porto e o seu encanto sem conhecer Londres?
Por tudo isso que referiu, Portugal tomou a iniciativa dessa démarche, muito pensada e reflectida pelo seu governo?
Exacto. Uma iniciativa muito deliberada que levou a que o primeiro-ministro tivesse aquela posição tão importante no Conselho Europeu.
Apesar disso, não pode deixar de estar pessimista?
Estou preparado para tudo, incluindo para o pior dos cenários.
Nesta história do Brexit pode falar-se em “culpados”? A UE, por exemplo, terá conduzido as coisas da melhor maneira? Ou será mais sério procurar culpas e responsabilidades exclusivamente do lado britânico?
Evito usar termos como esses. O facto cristalino é que foi o eleitorado britânico que votou maioritariamente pela saída; e foram as autoridades britânicas que fixaram as suas próprias “linhas vermelhas”. Com essas linhas, o acordo de saída negociado por Barnier era (e é) a melhor solução possível.
Admite uma vincada diminuição da credibilidade de Londres na sua influência europeia e internacional?
Infelizmente, para uma pessoa que cresceu a admirar o Reino Unido, tenho a dizer que essa credibilidade já foi muito perdida, constitui já hoje um dano. Um enorme prejuízo.
O problema é saber-se que pode piorar ainda mais?
Esperemos que não.
A NATO fez setenta anos em ambiente pouco festivo. O empenho na Organização do Tratado do Atlântico Norte já conheceu melhores dias. E se nos lembrarmos das primeiras declarações do Presidente Trump sobre a organização… Pergunto ao titular da nossa política externa: que NATO é que Portugal quer?
Começando pela atual administração, o Presidente Trump, de facto, nas suas primeiras declarações imediatamente após ser eleito — e, aliás, ainda durante a campanha eleitoral — , exprimiu-se em termos que, para todos os efeitos, significavam o pôr em questão a utilidade da NATO. Felizmente isso foi já abandonado, os americanos compreendem muito bem a importância da NATO também para eles. É preciso ter em atenção que só uma vez nestes setenta anos de história, a NATO utilizou o seu artigo 5.º e eu relembro que o artigo 5.º é o artigo essencial que diz: “Qualquer ataque a um aliado é um ataque a todos”. E quando é que a NATO utilizou esse artigo? Em favor dos americanos, quando os americanos foram atacados pelo terroristas. A nossa operação no Afeganistão — que foi o acionar do artigo 5.º — ocorreu em defesa do nosso aliado Estados Unidos da América. Agora em relação à sua pergunta, que aliás agradeço, qual é a nossa posição face à NATO?
…é fulcral ouvi-la da sua boca, como líder da nossa política externa e como alguém que me disse uma vez que gosta de reclamar a sua pertença ao “Ocidente”.
É muito simples. Ponto um: para Portugal a NATO é a estrutura de defesa colectiva. Ponto dois: a União Europeia, que também deve ter uma política de defesa e uma cooperação reforçada em Defesa, deve tê-la para reforçar o pilar de defesa da NATO. Mas atenção, não para construir uma alternativa à NATO, mas justamente para reforçar a NATO.
Para que isso se cumpra mais e melhor não necessitamos de investir mais em Defesa e não ficar pelo “poucochinho”?
Precisamos de investir mais em Defesa, claro. Mas investir mais com inteligência. O que é que isto significa? Que devemos investir não apenas em armas mas também em dispositivos de Defesa face aos ataques de cibersegurança, por exemplo, face às ameaças híbridas, para a defesa da nossa segurança energética. Utilizando e desenvolvendo as nossas indústrias e as nossas tecnologias e é essa a NATO que queremos. Como vê, fujo aliás a usar expressões como “exército europeu”, e pessoalmente nem sequer uso a expressão “autonomia estratégica da Europa”.
Porquê?
Porque às vezes isso pode gerar ou permitir pensar que a Europa pode ter veleidades, pode querer emancipar-se da NATO… E para nós há algo que é muito claro, que é o sistema de defesa coletivo a que pertencemos. Chama-se NATO. É a NATO.
O socialista: “familygate”, Rui Rio e a nova “geringonça”
Sabe-se que Augusto Santos Silva é o número dois do primeiro-ministro António Costa no Governo. Mas qual é o seu lugar no PS, onde é um homem forte mas sem tropas?
Sou membro da Comissão Política, militante do Partido Socialista desde 1990…
..também sabemos, não era isso…
O meu lugar no PS ao longo destes anos pode ser definido com uma dupla natureza: sou um dos poucos ativistas políticos em Portugal que gosta de ideologia e de debate ideológico. Deve saber que sou o autor material da declaração de princípios do Partido Socialista e, por outro lado, — não sei se justa ou injustamente! — sou considerado um quadro do PS especialmente apto para as questões das políticas públicas. O que me tem feito intervir na elaboração dos programas eleitorais e em discussões teóricas e ideológicas internas, tendo sido destacado várias vezes ao longo da minha vida política para o exercício de funções executivas, dado esse meu gosto pelas políticas públicas.
Vamos concretizar: diz-se um socialista democrático. Que pode significar isso hoje, numa altura de recomposição da paisagem política e quando os partidos socialistas europeus estão esmorecidos ou agonizam? Que o centro se esvazia transferindo o palco político para a sua margem direita ou para a sua margem esquerda. Socialista democrático, hoje? Que é isso?
A maneira mais simples, mas também mais redutora, de o distinguir é dizer que, sendo um socialista democrático, não sou nem um socialista autoritário — também os há — nem um socialista revolucionário. Sou um social-democrata, no sentido europeu do termo, ou um liberal, no sentido norte-americano: aquilo a que, por razões históricas se chama socialista na Europa do Sul, trabalhista no Reino Unido e na Irlanda e social- democrata ou trabalhista na Europa Central e do Norte.É a maneira mais simples de…
…de uma definição da sua ideologia política?
Sim. Como tenho defendido e escrito, sou um socialista — isto é, um social-democrata europeu —, reconheço a especificidade e o contributo próprio da social-democracia, mas vejo-a como um elemento que eu gostaria que fosse determinante num campo político muito mais vasto.
Qual?
Um campo que costumo definir politicamente como de centro-esquerda, progressista e cosmopolita: progressista significa sem medo da mudança e que a defenda; cosmopolita quer dizer não ser hoje nacionalista. Refiro-me a um campo político que não é conservador (e por isso é progressista) e é cosmopolita e, neste caso, europeísta e visceralmente anti-nacionalista. Digamos, para pôr algum sal na conversa, que é um campo político onde eu reconheço estarem hoje todos os socialistas da Europa Ocidental com problemas de afirmação.
… esmorecidos, para dizer elegantemente?
Com problemas de afirmação.
Quais, justamente?
Coloco nesse espaço por exemplo o atual Presidente francês, Emmanuel Macron, coloco a família dos Verdes…
Resta saber se Macron se coloca a si próprio nesse espaço político…
Macron defende uma aliança progressista na Europa, foi um dos oradores da recente convenção europeia do Partido Socialista, onde não esteve fisicamente presente mas interveio, através de uma gravação em vídeo, onde esteve o líder do Partido Social Democrata sueco — um social-democrata clássico, como eu —, juntamente com o líder do Syriza, Alexis Tsipras. Muitos de nós no PS defendemos que o Partido Socialista em Portugal representa não só a social-democracia europeia clássica, mas também muitas forças progressistas, incluindo de natureza ambientalista ou dita liberal ou social liberal. Um espaço político que o PS tem representado em Portugal, que é a sua força.
E serve para quê? Qual a sua capacidade?
A capacidade de projetar, quer à sua esquerda, quer à sua direita. É muito interessante ver qual a evolução do centro político português, em particular da democracia-cristã portuguesa. E se pensar nas suas personalidades mais influentes, na transição para a democracia, verificará que que invariavelmente — com uma excepção —elas invariavelmente acabaram no espaço político do Partido Socialista: estou a falar de Freitas do Amaral, de Basílio Horta, presidente da Câmara de Sintra, daquela linha da Maria do Rosário Carneiro, do Luís Barbosa, etc.. O que quero sublinhar é esta nossa capacidade de representar politicamente um vasto arco, desde a democracia-cristã até muitas correntes ambientalistas, o que é indiscutivelmente uma força política muito importante no PS. Agrada-me muito pensar que a social-democracia, sem nunca se dissolver em nenhuma outra corrente, é o elemento motor neste campo muito vasto. Motor e facilitador de contactos.
Acha que se olha hoje para o Partido Socialista como acabou de o descrever?
Acho. Não apenas por razões muito próprias do PS, que têm sobretudo a ver com a liderança fundacional de Mário Soares mas também por o PS, no conjunto da população portuguesa, ser reconhecido como uma força moderada, democrática e pró-europeia. Os portugueses reconhecem estas três características essenciais no Partido Socialista: uma força do centro-esquerda, moderada, democrática, no sentido em que protagonizou a luta política pela democracia em Portugal. E como sabe estou bem à vontade para reconhecer isto, nessa altura estava do outro lado, o revolucionário…
Agora está neste, continuemos neste…
… que sempre se caracterizou pela sua adesão, quase íntima, ao projeto europeu e ao que a Europa significa, uma economia social de mercado. Uma democracia liberal com uma democracia social de mercado: é isso que o PS reconhece, é assim que o PS é reconhecido. Mas deixe-me voltaÉ a r a um ponto, pois colocou-me uma questão muito importante por exprimir uma das razões pelas quais me parece que devemos olhar para a social-democracia do modo como eu gosto de olhar: como um entre os vários elementos que constituem um campo político progressista na Europa e na América do Norte. Nem a social-democracia, nem a democracia-cristã —as duas grandes famílias políticas que formaram a Europa social do pós-guerra, em confrontação, naturalmente, mas também em dialética — se conseguiram adaptar plenamente…
… ao que os tempos de hoje e as suas novas paisagens exigiriam?
Às grandes transformações do pós-guerra fria: há trinta anos que quer a minha família política, quer aquela que é simétrica da minha no campo democrático — o centro-direita — vivem ainda as dores de uma adaptação a uma transformação social, económica e política que desafiou a base social própria nestas duas famílias políticas, bem como algumas das suas concepções mais importantes…
Por exemplo?
Por exemplo: para nós, socialistas — e, aliás, aí em ligação profundíssima com o cristianismo — o trabalho é um elemento definidor da dignidade humana, mas… como se olha para isso num momento da revolução tecnológica e industrial que dispensa cada vez mais o trabalho? São questões muito difíceis. Tanto que algumas delas explicam o declínio eleitoral que se sente nos partidos social-democratas que não conseguiram aquilo que a meu ver o PS conseguiu: ser sempre uma força política que se projeta para além do seu espaço, da sua matriz ideológica inicial.
E o Governo “desse” PS, que projecta? Começa a generalizar-se a percepção —a política também vive das percepções — de um acumular de abusos envoltos num tom de arrogância por parte da grande família socialista. Não falo agora de erros políticos — a subestimação de uma dívida cada vez mais voraz; a indiferença face a um crescimento económico modestíssimo; a proteção excessiva do funcionalismo público. Falo da percepção do abuso: está preocupado com isso?
Não.
Não?
Não é uma forma arrogante de responder, é sincera. Como compreende, tenho suficiente respeito por si para evitar despejar aqui o argumentário que existe para contrariar essa sua percepção…
… justamente, não é só minha.
Vamos lá ver, eu não sou um intuitivo.
Sabemos bem: é um racional.
Exacto. Sou um cientista profissional que evidentemente olha com cuidado para os indicadores de opinião pública, de perceção social e de orientação política e eleitoral, designadamente num ano como este. Indicadores de resultados de inquéritos e sondagens.
Que lhe mostra esse mapa?
Mostra que a forma como o PS gizou esta opção política e, dentro dela, conduziu um governo que é tipicamente social-democrata, moderado e europeísta, foi premiado pelos eleitores, designadamente nas eleições autárquicas de 2017.
Eu falava de Abril de 2019.
Quanto aos indicadores e sondagens, mostram que o PS anda acima dos 35% e, portanto, reforçará o seu peso eleitoral nas próximas eleições, tendo todas as condições para conseguir obter, sozinho, mais do que os deputados das várias formações de direita juntos. Criando novas condições para uma fórmula política que sustente um novo Governo, que, como sabe, eu defendo que deva ser uma réplica atualizada da atual.
Sei, só não sei é se o PS reforçará assim o seu peso. Em que mais é que as sondagens o elucidaram?
No modo como os portugueses apreciam o primeiro-ministro e o comparam com os seus “challengers”, na forma como valorizam o trabalho do Governo e até como pontuam os vários ministros, nomeadamente o ministro das Finanças; no modo como interpretam e avaliam a coabitação entre o atual Presidente e o atual Governo. E ainda na maneira como, digamos, valorizam o estado de normalidade constitucional e política em que o país entrou.
Em resumo: nada de pessimismo?
Pessimista, não. Dito isto, afirmo sempre — porque é verdade! — que a política tem um ritmo e uma imprevisibilidade que aliás é um dos seus prazeres — e olhe que aprendi isso à minha custa!
Está a lembrar-se de quê?
Estou a lembrar-me que, se me dissessem em 2001 que um ano depois o dr. Durão Barroso seria primeiro-ministro eu riria; e que quem me dissesse em 2002 que, três anos depois, o PS estaria novamente no Governo e com maioria absoluta, eu riria ainda mais. As duas coisas são verdade, as duas eram imprevisiveis! Quanto à auto-suficiência, não julgo que haja — a auto-suficiência é o pior dos erros —, mas não serei a pessoa mais imparcial para falar disso.
Afirmou há pouco que procede à análise pela razão e não pela intuição, pela ciência e não pela percepção; que lhe interessam resultados e números e não conjecturas. Ao contrário, por instinto ou percepção, parece-me poder haver gente a interrogar-se se “estes tipos (os senhores governantes) não estarão a exagerar”.
Não me parece que as pessoas tenham esse tipo de intuição: conhece aquela famosa — e espantosa — fórmula do nosso Mário de Carvalho, quando diz que é preciso não confundir o género humano com o Manuel Germano? É isso… As pessoas são algo de muito diferente da bolha em que cada um de nós se move. Como eu também me movo e como cada um de nós também se move. O que é preciso é sair dela.
Justamente: o PS não está numa bolha, em que metade são os exércitos vindos da Jota, capitaneados por Pedro Nuno Santos, sendo a outra metade composta pelos amigos pessoais e políticos de António Costa, sempre os mesmos e os únicos desde a juventude dele? A mesma gente, o mesmo universo, o pensamento em circuito interno? Se isto não é uma bolha…
É preciso distinguir: a coisa mais natural do mundo é que o Governo, numa democracia, seja liderado por um partido político e que dele façam parte os seus quadros que o primeiro-ministro entende estarem nessa ocasião mais capacitados para o exercício das funções públicas. Ora, quando me dizem que o Governo está cheio de militantes do Partido Socialista eu respondo…
… sr. ministro não perca tempo, não era isso. Refiro-me àgrande família socialista projectada em funções.
Mas nós, em Ministérios tão importantes como as Finanças, a Justiça, o Ensino Superior, a Ciência e Tecnologia e outros Ministérios de soberania como a Defesa, temos personalidades independentes, que aliás têm sido uma imagem de marca do Partido Socialista. Como bem sabe, o PS recruta sobretudo nas Universidades, ao passo que os partidos da direita recrutam normalmente mais nas empresas. Depois, quanto a nós, no Governo, sermos amigos, eu considero ter a honra de ser chamado amigo do atual primeiro-ministro. Seria pior se fossemos como o Governo britânico, onde as pessoas se esfaqueiam publicamente uns aos outros?
No momento que atravessam nada espanta…
… pois não! Mas não queria que houvesse de modo algum uma leitura errada das minhas palavras: o Partido Socialista não ganhou as eleições europeias, não ganhou as eleições legislativas, não ganhou as eleições regionais, e só ganhará — se as ganhar — no dia em que forem apurados os resultados. Quem pensar o contrário estará a fazer a mesma figura tola que à direita fizeram, meses a fio, todos aqueles que acharam que o dr. Rui Rio estava morto! Quem assim pensa, ou pensou, revela que não sabe ver as coisas!
Politicamente é muito interessante isso que diz…
E mais: quem tiver, por exemplo, uma experiência política semelhante à minha e pensar assim, então é mesmo sinal de que deve escolher outra vida porque entretanto já perdeu a mão.
Só para acabarmos esta história do “tudo em família”, permita que lhe diga que foi muito hábil na maneira como navegou por entre aquilo que obviamente percebeu que eu estava a transmitir como possível percepção de grande parte do país e a realidade. Mas isso não “redime” o PS pelas “n” nomeações feitas “por serem do PS”.
Não tenho essas informações, não tenho. Aliás estou até um pouco, como dizer?, curioso, não costumo sequer compreender quem tem ligações com quem! E agora até estou a descobrir coisas. Por exemplo: a família Vieira da Silva em Portugal tem dois excelentes quadros políticos, como a família Miliband em Inglaterra eram três ou quatro, aliás espectaculares. Havia o pai, Ralph Miliband, já falecido, um dos maiores teóricos marxistas ingleses que conheci — e conheci bem, pelos livros que li —; e dois dos seus três filhos, que foram ministros e concorrentes entre si. Houve a a família Clinton, a família Bush nos Estados Unidos. Enfim. O que é preciso é não confundir as coisas. E dizer, como se diz aqui , que o marido da ministra é um professor universitário ou um iminente jurista e por isso ser suspeito, é de um parolismo…
É provincianismo? É isso?
Diz provincianismo porque é educada, eu, como sou do Porto e gosto de usar o português em todo o seu esplendor, chamo-lhe mesmo um parolismo inacreditável. O ponto é este: algum de nós nomeou algum familiar seu para lugares públicos? Isso tem um nome e se eu o tivesse feito era nepotismo. Algum de nós subiu na carreira política apenas por ser primo deste, sobrinho daquele, pai do outro ou filho de beltrano? Isso sim, seria um erro.
Em resumo: toda a gente – tanta gente! — está onde está por mérito próprio.
Não lhe sei dizer isso, teria de ver caso a caso mas o que me parece, infelizmente, é que se está a confundir tudo. Como ministro dos Negócios Estrangeiros tenho um gabinete, sete ou oito pessoas entre chefe de gabinete e adjuntos, que são naturalmente sobretudo diplomatas ou especialistas em relações internacionais. Nomeei-os pessoalmente — a lei assim mo permite — mas era o que faltava que tivesse de nomear pessoas em quem eu não tivesse confiança…
… não é disso que estamos a falar…
… embora nem o jurista ou o diplomata tenham que ser da minha cor política. Têm sim é de colaborar e agir profissionalmente porque, quando falam, é em meu nome; quando reúnem, reúnem em meu nome; quando me preparam relatórios, preparam-me relatórios nos quais terei de confiar porque não posso ler tudo, mas sou eu o responsável. Parece-me isto mais importante do que discutir sobre a composição dos gabinetes, um a um. Algo que obviamente nos desvia das questões políticas.
Vamos então a uma questão política. Não é natural que o PS tenha uma grande maioria nas legislativas — o próprio primeiro-ministro já o admitiu publicamente. Se não houver as tais surpresas frequentes na política, o PS tem que se voltar para um lado ou para outro. O ministro Santos Silva já mostrou simpatia pela reedição desta fórmula governativa mas pergunto: está em condições de afirmar que será isso que ocorrerá?
Num cenário em que de novo os partidos de esquerda em Portugal tenham — todos juntos — maioria no parlamento, será o mais provável. Evidentemente que se a direita ou o centro-direita tiverem maioria, serão eles a coligarem-se entre os dois — ou os três, se o Aliança durar. Como me parece mais natural uma maioria de esquerda, o que digo é que independentemente do numero de deputados que o PS tenha — mesmo que tenha 116 — o Partido Socialista deve propor a reedição da atual fórmula política. Não entrando agora em linha de conta com os méritos da governação que como imagina, para mim, são muitos, gostaria porém de sublinhar um ponto político muito importante: a atual fórmula política desbloqueou – mais: descongelou — o sistema político e parlamentar português.
E viu nisso um avanço, uma benesse, uma vantagem política que merece ser saudada?
Tornámo-nos nórdicos, tornámo-nos uma democracia madura! Como no caso dos nórdicos, como também no caso alemão, embora com alguma especificidades. Há muitos partidos — mais, aliás, do que os nossos — que tendem a organizar-se em blocos criando alternativas democráticas sólidas, através das quais umas vezes se prefere o centro e a direita e eles têm condições de governação por quatro anos; outras, se opta pelo centro-esquerda e a esquerda. Até há pouco era, porém, impossível garantir a estabilidade se o centro-esquerda não tivesse maioria absoluta. Ora, o que estes quatro anos mostraram é que o sistema político português está agora equilibrado. Isto é, tem as mesmas condições de governabilidade quer à direita quer à esquerda.
Nesse sentido, foi o tal ganho?
Sim e deve saber — e isso é público — que eu respeito muito a personalidade e o percurso político do doutor Rui Rio, aliás meu conterrâneo: é da Faculdade de Economia do Porto como estudante, eu sou da mesma faculdade como professor. A bem da nossa saúde política, entendo que ele deve ser alternativo ao doutor António Costa e portanto…
… nada de Blocos Centrais, seriam mal vindos?
Não defendo soluções desse tipo, a não ser em situação de emergência nacional. Não parece que seja o caso.
Qualquer dia a falta de reformas atinge uma situação de emergência nacional.
Tais como?
Reforma da lei eleitoral, da Justiça, do Estado… Não será certamente com a extrema-esquerda que o Governo as vai fazer se ganhar as eleições, ou será?
Vamos lá ver: é preciso compreender que a grande vantagem da atual solução política liderada pelo Partido Socialista é que, para o bem e para o mal, ela é liderada pelo partido pivô do sistema parlamentar português. Se não vejamos: porque é que conseguimos uma governação em que os Orçamentos do Estado foram sempre sistematicamente negociados à esquerda e aprovados à esquerda e ao mesmo tempo mantivemo-nos absolutamente coerentes na nossa linha política habitual? E olhe, também coerentes com a política pela qual sou diretamente responsável: a política europeia, a política externa e também a política de Defesa, onde sabemos que é possível constituir maiorias quando elas são necessárias no parlamento português, através de partidos que se reveem, no essencial, nessa mesma política externa europeia e de defesa. Ou o PS e o PSD, às vezes acompanhados pelo CDS; por vezes o PS acompanhado pelo Bloco de Esquerda e em parte pelo PCP. Trata-se de uma geometria variável, como agora se gosta de dizer. A qual não só garante sustentação como permite que na cabeça dos eleitores — que são os que escolhem — as coisas sejam claras.
Claras?
Ou querem uma governação mais á esquerda e votam no PS ou nos outros partidos; ou preferem uma governação mais à direita e elegem o PSD e o CDS. Isso dá uma normalidade política a Portugal que é um dos seus grandes trunfos hoje no contexto europeu.
O intelectual: o início na política, a “varanda dos inteligentes” e o gosto em “malhar”
Que levou um belo dia o intelectual e professor Augusto Santos Silva a interessar-se pela política com o empenho que testemunhamos?
Ah… então vou contar-lhe uma história. Envolve um amigo nosso que perdoará que o invoque aqui, mas a história é não só verdadeira como responde à sua pergunta. Direi então — com permissão dele — que a política é culpa do nosso comum amigo Guilherme d’Oliveira Martins.
Ah, bom?
Eu vivia uma vida bastante pacata e bastante feliz, era professor na Universidade do Porto e tinha uma crónica semanal num jornal em que a Maria João também colaborou, o Público. E uma vez, zangado, para não dizer mesmo chateado com esta mania de os portugueses só dizerem mal sem sujarem as mãos — sobretudo os chamados opinion makers — escrevi uma crónica que se chamava “A varanda dos inteligentes”…
… com aquela sua glacial ironia…
… dizendo que um dos problemas do país era ter uns inteligentes à varanda, que se limitavam a ver passar a procissão, mas sempre a dizer mal do padre e mal do andor e que se fossem eles, faziam melhor, mas sem nunca descerem à ação. E um dia, na formação do segundo Governo de António Guterres, o Guilherme, que fora indigitado ministro da Educação, telefonou-me.
E convidou-o a descer ao terreno?
Era a altura… Parece que estou a ser irónico, mas estou a responder à sua pergunta. Comecei como secretário de Estado do Guilherme…
Já agora, uma pergunta sobre essa “varanda” cheia de maledicentes: há quase quatro anos que ouvimos diariamente o seu governo dizer obsessivamente mal do Governo anterior. Ainda hoje o titular das Finanças voltou a evocar negativamente o Executivo anterior, culpando-o já não sei de quê. E se lhe juntarmos o senhor ministro a dizer que é óptimo “malhar na direita”, posso concluir que estão bons uns para os outros, o seu governo e os tais da “varanda”?
O que é que isso tem a ver com a sua pergunta anterior?
Era por causa da “varanda dos inteligentes” que só diziam mal…
É bom malhar na direita, como é bom malhar na esquerda. A expressão era obviamente em sentido figurativo! Quando o Bloco de Esquerda, para dizer uma expressão que ficou engraçada, levou toda uma campanha a dizer “vota em quem lhes bate forte”, não estava a prometer pancada, mas a dar cor ao que dizia. São fórmulas que a gente usa. Qual é o problema? Se não o Camilo Castelo Branco estaria preso hoje!
Reconhecerá que a necessidade quase diária do actual governo de arrasar o anterior virou uma obsessão…
Ó minha senhora, mas o debate político é assim em social-democracia. Os britânicos, que costumavam ser um povo muito sensato, entre outras formas rituais muito expressivas tinham, e julgo que ainda têm, a expressão “Sua Majestade”: há o “Governo de Sua Majestade”, há a “oposição de Sua Majestade”, mas ambos são de “Sua Majestade”. O Estado precisa de ambos, e naturalmente a oposição diz mal do Governo, o Governo contra-ataca em relação à oposição e… quando isso não acontece, estamos na ditadura.
Última pergunta ao intelectual que leu Raymond Aron…
… que se dizia um observador “engagé”. Comprometido.
E como há tempos assisti à sua interessante apresentação do último livro de Carlos Gaspar, sobre Aron, justamente, pergunto-lhe se recomendaria hoje a leitura de Raymond Aron?
Sim, sem qualquer hesitação.
[Versão integral da entrevista de Maria João Avillez a Augusto Santos Silva:]