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Cirurgia
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Aumentam cirurgias injustificadas para cortar freio da língua a bebés. Médicos alertam para riscos, no terreno fala-se em "negócio"

Pediatras alertam para o aumento das frenectomias em bebés, muitas vezes feitas em clínicas privadas e sem cumprirem critérios clínicos. "Há um negócio muito grande nesta área", diz enfermeira.

É um fenómeno em crescendo — já documentado um pouco por todo o mundo — e que começa a ser notado também em Portugal: cada vez mais bebés são submetidos a uma cirurgia para cortar o freio da língua (a membrana que liga a língua à base da boca). É um procedimento designado por frenectomia, indicado para casos em que existem dificuldades comprovadas e persistentes na amamentação, mas que está a ser usado em muitos casos sem critério. A cirurgia é muitas vezes desnecessária, alertam vários especialistas ouvidos pelo Observador, e acarreta riscos. As frenectomias estão a ser aconselhadas, em grande número, por clínicas privadas, nomeadamente na área de Lisboa, que estarão a fazer desta mais uma área de negócio.

Ao Observador, a médica pediatria Filipa Soares Vieira diz que tem “notado um aumento das frenectomias e da referenciação para esse procedimento por parte de outros profissionais”. O presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria mostra preocupação com o fenómeno, que, diz, tem sido impulsionado pelo aumento dos diagnósticos de freio curto. “Estou também preocupado. Em Portugal não há dados, mas perceciona-se um aumento das cirurgias deste tipo. A anquiloglossia [termo técnico para freio curto] era no passado uma situação residual, mas, nos últimos 15 anos, tomou proporções quase epidémicas, claramente por uma mudança de perceção das famílias e de alguns grupos profissionais de saúde em relação a este tema. O diagnóstico aumentou quase quatro vezes, assim como as intervenções para o corte do freio”, diz André Graça.

Médicos e enfermeiros relatam um aumento das frenectomias (muitas sem indicação clínica)

Não há dados compilados sobre o número de frenectomias realizadas — o que impede que se tenha uma noção concreta de como tem evoluído o número de procedimentos realizados ao longo do tempo. Mas os médicos pediatras e outros profissionais que lidam diariamente com bebés não têm dúvidas de que há cada vez mais crianças que foram submetidas a um corte do freio. “Nos últimos dois anos, tem havido um aumento exponencial dos bebés que fazem este procedimento“, diz uma enfermeira especialista em Saúde Materna, que trabalha na Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental, e que não quis ser identificada.

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Bebé

A preocupação dos pais é quase sempre a mesma: melhorar o processo de amamentação

dpa/picture alliance via Getty I

Desfasada da perceção dos profissionais no terreno, a Direção Geral da Saúde afirma apenas “não ter informação sobre o relatado”. Embora mais recente em Portugal, o aumento das frenectomias é um fenómeno há muito documentado nos países desenvolvidos. No início de 2021, várias sociedades científicas francesas expressaram preocupação com o aumento anormal de frenectomias a recém-nascidos no país. No final de abril de 2022, a Academia Francesa de Medicina publicou uma declaração oficial em que pedia “mais cuidado com a frenectomia lingual em recém-nascidos e bebés”, escreve o jornal especializado Medscape.

Na Austrália, e apenas numa década (entre 2006 e 2016), foram registados aumentos expressivos nas frenectomias — entre os 400% e os 500% — em vários estados, de acordo com um artigo do The Medical Journal of Australia. No Canadá, um estudo concluiu que este tipo de intervenções aumentou quase 90% entre 2004 e 2012. Nos Estados Unidos, os dados apontam para um aumento superior a 800% em apenas 15 anos (entre 1997 e 2012).

“Muitas vezes a maternidade é um faroeste. Algumas pessoas acham que o que fazem com o filho é a lei, e é assim que tem de ser para todos”

Longe de ser um procedimento novo, acredita-se que a origem da frenectomia remonte a vários milhares de anos. No antigo Egipto, há referências ao uso de um instrumento afiado para fazer uma incisão sob a língua e melhorar a amplitude de movimentos deste órgão, com o objetivo de facilitar tarefas básicas do dia a dia, como falar ou comer. Na Grécia antiga, um procedimento semelhante terá sido realizado por médicos como Hipócrates. Mais recentemente, no início do século XX, a frenectomia começou também a ser utilizada para ultrapassar problemas com a amamentação, para o qual é indicada ainda hoje, embora apenas em alguns casos. É precisamente aqui que reside o problema: muitas das frenectomias estão a ser realizadas sem indicação clínica.

Hemorragia e infeção são riscos da cirurgia

A pediatra Filipa Soares Vieira, que dá consultas no Hospital São Francisco Xavier, realça que “não há necessidade de um número tão grande de cirurgias deste tipo” em bebés. Uma opinião partilhada pelo cirurgião pediátrico João Manuel Albuquerque. “A esmagadora maioria dos bebés não precisa de cortar o freio, é o que diz a literatura“, refere o especialista ao Observador. Os médicos alertam para os riscos de submeter bebés a uma cirurgia tão invasiva. “A intervenção para corte do freio envolve desconforto e outros riscos, nomeadamente o risco de hemorragia significativa, por exemplo em crianças que tenham condições que aumentem o seu risco hemorrágico, condições essas que podem não estar diagnosticadas no momento da intervenção”, sublinha o presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Existe também o risco de infeção.

"A esmagadora maioria dos bebés não precisa de cortar o freio, é o que diz a literatura"
João Manuel Albuquerque, cirurgião pediátrico

“Cortar o freio da língua a um bebé não é algo simples, tem riscos. Há que pesar muito bem a necessidade de o fazer“, alerta o médico João Manuel Albuquerque. O especialista — que trabalha em hospitais CUF da Grande Lisboa — garante que, apesar de não estar a realizar a cirurgia mais vezes, tem recebido nas suas consultas mais pais que tencionam cortar o freio dos filhos bebés .”Vêm com a preocupação do aleitamento materno e olham para o corte do freio como uma solução imediata e quase milagrosa”, adianta.

A preocupação é quase sempre a mesma: melhorar o processo de amamentação. Em alguns casos, um freio demasiado curto limita o movimento da língua, ao fazer com esta fique mais ‘colada’ à base da boca, o que dificulta a sucção de leite. Caso sejam reportadas dificuldades na amamentação, existem protocolos específicos para avaliar se o bebé tem necessidade de cortar o freio. “Os critérios têm a ver com a posição do freio e a aparência da ponta da língua e também o padrão de sucção do bebé”, explica a enfermeira especialista que falou com o Observador.

Corte do freio não resolve, por si só, problemas na amamentação, alertam especialistas

“Para mamar bem, o bebé tem de ter uma boa projeção da língua. Mas a amamentação é um processo de aprendizagem, hoje em dia as pessoas procuram uma solução fácil para um processo que demora o seu tempo”, lamenta a enfermeira. A pediatra Filipa Soares Vieira explica que é “consensual a realização [da frenectomia] quando o freio curto da língua é causa do insucesso na amamentação”. A questão é que muitas vezes não o é. “Uma das dificuldades que é relatada é a da dor na amamentação e muitas mães deixam de amamentar por causa disso. Nem sempre o freio é a causa da dor“, sublinha a especialista.

“Pode verificar-se, em algumas situações, uma associação entre um freio manifestamente curto e uma clara incapacidade alimentar. Ou situações em que a amamentação se revela um processo muito doloroso para a mãe, justificando-se nesse caso ponderar a secção [o corte] do freio. Não me parece que a frequência destas situações justifique o aumento significativo destas intervenção, que se tem verificado“, concorda também o pediatra André Graça. Muitas vezes, a cirurgia é feita e, mesmo assim, as dificuldades na amamentação mantêm-se.

"Às vezes é fácil colocar a responsabilidade no freio curto quando há dificuldades na amamentação, que é um processo com muitas implicações"
Filipa Soares Vieira, pediatra

“Às vezes é fácil colocar a responsabilidade no freio curto quando há dificuldades na amamentação, que é um processo com muitas implicações. É preciso avaliar, do ponto de vista global, o que se passa com a mãe, com o bebé e na relação entre os dois antes de culpar o freio”, alerta Filipa Soares Vieira, acrescentando que “as mães querem tanto que a amamentação funcione que estão dispostas a tudo”. A especialista admite que o crescimento desta prática “talvez se insira numa cultura de facilitismo na maternidade”. No final de julho deste ano, a Academia Americana de Pediatria emitiu um relatório clínico em que alerta para a necessidade de ser bem ponderado o recurso à cirurgia perante dificuldades de amamentação.

A amamentação “é um processo e as pessoas não têm muita paciência para passar por processos demorados e não querem deixar passar nada”, realça João Manuel Albuquerque, acrescentando que, quando recebe pedidos de frenectomia não justificados, tenta sensibilizar os pais para falta de necessidade da cirurgia. Muitos casais aparecem na consulta depois de terem ido a clínicas de amamentação, onde lhes é recomendada a cirurgia. “Os pais recorrem cada vez mais a especialistas em amamentação e em terapia da fala, quando algo não está a correr bem. Há muita referenciação para este tipo de procedimento”, confirma Filipa Soares Vieira.

Clínicas sugerem que corte previne também problemas de dicção futuros. Médicos rebatem tese

De acordo com os especialistas que o Observador ouviu, muitas das clínicas estarão a sugerir a frenectomia e já disponibilizam o procedimento, mesmo em casos em que o bebé não cumpre os critérios. Um negócio em crescendo. Cada corte de freio pode custar até 300 euros. “Está em curso um negócio muito grande nesta área, com uma rede em que as clínicas referenciam de umas para as outras. Muitos bebés vão logo fazer fisioterapia e daí são referenciados para a terapia da fala e daí para a frenectomia e, depois, ficam com uma série de consultas marcadas”, diz a enfermeira da ULS de Lisboa Ocidental. É precisamente no eixo Cascais-Lisboa que nos últimos anos têm surgido mais clínicas deste tipo, especializadas em questões em amamentação e terapia da fala. Embora não exista nenhuma evidência nesse sentido, estas clínicas recomendam também a frenectomia para tratar, de forma preventiva, problemas de fala que venham a surgir — algo que os médicos consideram desadequado.

Não faz sentido intervencionar bebés tão pequenos para evitar problemas na fala que não sabemos se vão surgir“, diz a pediatra Filipa Soares Vieira. “Parece-me claramente prematuro uma decisão de secção [corte] precoce do freio com esta justificação, uma vez que a mesma poderá sempre ser realizada mais tarde, se se confirmar uma relação causa-efeito entre o freio curto e estas situações, que têm múltiplas causas além do freio curto da língua”, realça o presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria. A enfermeira especialista que falou com o Observador conta que, há poucos meses, recebeu um bebé em consulta que “já tinha cinco consultas de terapia da fala para fazer” numa das clínicas da zona ocidental da cidade de Lisboa. “Está a haver um aproveitamento. A cirurgia não é muito cara, mas ficam depois muitas consultas marcadas”, denuncia.

"Está em curso um negócio muito grande nesta área, com uma rede em que as clínicas referenciam de umas para as outras"
Enfermeira especialista em Saúde Materna, da ULS de Lisboa Ocidental

O cirurgião João Manuel Albuquerque também se mostra contra a realização de frenectomia para prevenir problemas de dicção futuros. “Se não temos nenhum problema, não vamos resolvê-lo já. Não se recomenda que se corte o freio da língua aos bebés para se evitar problemas de dicção, é preciso esperar que as crianças cresçam”, diz o especialista, explicando que “há muitos motivos para as crianças terem problemas de dicção”, mas que, na maior parte dos casos, se trata de um “problema funcional e não anatómico”, que não se resolve com o corte do freio.

Outro problema tem a ver com os profissionais que estarão a levar a cabo as frenectomias em clínicas privadas. “É uma cirurgia que devia ser feita por pediatras e cirurgiões pediátricos, mas que está a ser feita também por fisioterapeutas, terapeutas da fala e dentistas”, alerta a enfermeira especialista em Saúde Materna. Uma informação colaborada por dois dos pediatras ouvidos pelo Observador. “Neste momento, há muitos procedimentos a serem realizados por outros profissionais, nomeadamente dentistas”, diz Filipa Soares Vieira. Quanto a isto, João Manuel Albuquerque deixa um alerta. “Isto é um ato médico, que tem riscos. É preciso perceber se as pessoas que o estão a realizar estão habilitadas para o fazer e se sabem lidar com as complicações”, realça. O especialista, que faz regularmente frenectomias, explica que esta cirurgia é habitualmente feita com recurso a uma tesoura e com medicação local para a dor. No entanto, existem outras técnicas, com laser ou radiofrequências, que são menos usadas.

Sobre a ideia de que está a proliferar um negócio em torno da realização desadequada de frenectomias, os médicos ouvidos pelo Observador dizem desconhecer a questão. “Não sei se há negócio, quero acreditar que os profissionais estão a fazer o que acham que é melhor para as crianças e para as famílias”, diz a pediatra Filipa Soares Vieira.

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