Uma espécie de memorando de austeridade. Ou, segundo o nome oficial, um “roteiro para o reforço do autofinanciamento do Bloco de Esquerda”. Num momento em que atravessa graves dificuldades financeiras e organizativas, a cúpula do partido desenhou um plano de ação para tentar melhorar as finanças do Bloco e até salvar algumas das sedes que ficaram em risco com a hecatombe eleitoral de janeiro. Para parte dos militantes, um mal necessário; para outra, mais uma espécie de aumento do custo de vida — mas agora dentro do próprio Bloco.
As medidas foram desenhadas para evitar que o partido recorresse ao endividamento bancário, explicou ao Observador fonte partidária. Mas podem custar ao “contribuinte” comum do Bloco: desde logo, o documento, segundo as informações apuradas pelo Observador, prevê um aumento significativo das quotas anuais pagas pelos aderentes, que passam de 15 para 25 euros.
Além da quota nacional, fica previsto um mecanismo pelo qual as distritais do partido poderão optar para salvar as sedes locais. Ou seja: inicialmente, e confrontado com o corte brutal na subvenção partidária por ter conseguido muito menos votos nestas eleições e, por isso, ter visto a sua bancada mirrar (passou de 19 deputados para cinco), o partido tinha previsto que precisaria de fechar muitas sedes – decidiria quais em reuniões com as distritais – e passaria a organizar as distritais por agrupamentos, partilhando funcionários.
A ideia passava por manter uma sede por distrito ou região financiada centralmente – mas agora está previsto que as distritais possam pedir uma nova quota mensal aos militantes, a somar à anual, para tentar manter estes espaços abertos, uma situação que já levou pelo menos um grupo de membros do partido a pedir à Comissão de Direitos (o tribunal interno do partido) a isenção da quota normal.
A somar a estas medidas, fica prevista a entrega ao partido do valor das senhas que os deputados municipais e de freguesia recebem por marcarem presença nas respetivas reuniões — embora os críticos questionem se não deve haver uma medida equivalente para os cinco deputados do Bloco no Parlamento.
Críticos divididos sobre fazer aderentes pagar “como leões”
Ora se a má situação financeira do Bloco – que já tinha levado um rombo significativo quando Marisa Matias falhou a meta dos 5% de votos nas eleições presidenciais, necessária para garantir que se recebe a subvenção dos candidatos – é conhecida por todos, há entre os críticos do Bloco uma divisão sobre se as medidas foram bem pensadas ou não – e se cumprirão os objetivos a que o partido se propõe.
Na reunião da Mesa Nacional (direção alargada) em que a proposta foi apresentada, o plano foi aprovado por maioria, com doze votos contra e uma abstenção. Entre as fontes com quem o Observador falou, encontram-se críticos que, reconhecendo a necessidade do partido de recuperar da situação em que se encontra, ainda duvidam da posição que vão assumir nas próximas reuniões.
Mas também há quem já tenha decidido que é contra a ideia de “pôr os aderentes a pagar como leões”, como ironizava ao Observador um crítico da linha de Catarina Martins, sobretudo numa altura em que o partido se bate publicamente contra o aumento do custo de vida e as dificuldades de boa parte da população – e desconfiando de que as receitas sirvam, sobretudo, para manter o “aparelho central” do Bloco, muito centrado em Lisboa e no Parlamento.
Os membros da Convergência, a tendência crítica da direção que é mais expressiva no interior do Bloco, estão aliás a preparar, um documento crítico de análise ao “roteiro de autofinanciamento”, que se preparam para levar à próxima reunião da Mesa Nacional, marcada para 19 de outubro.
Segundo as informações apuradas pelo Observador, o documento frisará muito estes pontos, acusando a direção de querer manter uma despesa considerável focada no aparelho central do partido em vez de dirigir esses fundos ao apoio às bases e ao trabalho local.
O centralismo da organização do Bloco e o foco no Parlamento, sobretudo durante os tempos da geringonça, têm sido objeto de críticas constantes dos membros que não alinham com a direção de Catarina Martins, e que vêem neste plano mais um sinal dessa linha que será não apenas política, mas também organizativa.
Outra das críticas apontadas é a suposta falta de transparência interna no processo de reestruturação do Bloco, uma vez que, como o Observador tinha noticiado, depois de sofrer um corte muito elevado na subvenção estatal o partido começou a tomar medidas como o despedimento de funcionários ou o fecho de sedes – embora, aleguem os críticos, não haja informação detalhada sobre a forma como esse processo está a decorrer, a nível interno.
Na altura, Catarina Martins justificava em entrevista ao Público e à Renascença a necessidade de tomar estas decisões como forma de manter as “contas certas” que o Bloco tem entregado junto do Tribunal Constitucional e que não quer manchar, mesmo encontrando-se numa situação financeira mais complicada.
Aumentos podem levar a desfiliações?
O plano chegou, aliás, a ser criticado dentro de portas logo no dia da sua apresentação. Nessa altura, a bloquista Maria Conceição Anjos, membro da Convergência, fez uma intervenção que disponibilizou online em que elogiava a “grande abnegação” mostrada pelos militantes desde que os cortes começaram e considerava “extemporâneo” o aumento das quotas em quase 70%.
“Pode ser uma forma de acentuar a discriminação quanto à capacidade de militância, neste caso entre quem pode e quem não pode, e isso é intolerável num partido de esquerda”, avisava.
“Num partido de esquerda, a quotização não deveria ter um caráter obrigatório. Devia ser facultativa e de acordo com a vontade/possibilidade de cada militante”, frisava, lembrando as dificuldades do contexto económico em que o país se encontra e prevendo que a situação levará aos “pedidos de isenção de quota” e, no limite, “ao abandono simples, tudo o que não queremos”.
Na direção, a mensagem é simples: os tempos são de necessidade e o Bloco precisa mesmo de garantir que consegue autofinanciar-se. A cúpula aponta para o documento que foi aprovado na última conferência nacional, a 30 de abril, onde se assumia que com a “redução significativa da subvenção pública”, a estrutura seria menor e exigiria “maior responsabilização militante”.
Já nessa altura o partido assumia: “O Bloco deve reforçar-se com novos mecanismos de autofinanciamento e campanhas para novas adesões”. Resta saber se os próximos capítulos, conhecido o plano de austeridade bloquista, serão pacíficos no interior do partido.