Há uma semana que Portugal começou a emitir certificados digitais para as pessoas vacinadas contra a Covid-19 — mas só esta quinta-feira eles foram anunciados como uma solução dentro de fronteiras, para escapar ao cerco em torno da Área Metropolitana de Lisboa, entre as 15h de sexta-feira e as 6h de segunda-feira (também podem ser utilizados resultados de testes PCR ou antigénio negativos). O certificado digital vai ainda substituir a apresentação de um teste negativo para ir a um evento ou espetáculo com mais de 500 pessoas no interior ou 1000 pessoas no exterior, a um casamento ou a um batizado, anunciou Mariana Vieira da Silva após o Conselho de Ministros. A medida entra em vigor esta sexta-feira.
A Europa divide-se quanto ao uso deste certificado: se em países como Inglaterra, Espanha, Alemanha ou França, as autoridades ainda não exigem que sejam apresentados para validar viagens internas ou para aceder a serviços como restaurantes ou hotéis (como acontecia até agora em Portugal), noutros estes documentos são já utilizados para aceder a determinados espaços. Na Áustria, República Checa e Dinamarca, por exemplo, sem eles não se janta fora, não se entra num museu, nem se dorme num hotel. Quatro portugueses explicaram ao Observador como estes certificados são utilizados.
10 respostas sobre como pedir e usar o certificado digital Covid-19
Na Áustria, a testagem é muito simples e nem todas as vacinas dão ‘livre trânsito’
Na Áustria, um certificado de vacinação vale tanto quanto um teste negativo. A regra é só: seja habitante do país ou um estrangeiro em turismo, quem quiser entrar num espaço pequeno que reúna muita gente tem de apresentar uma prova em como já foi vacinado contra a Covid-19 ou, em alternativa, um teste negativo ou comprovativo em como já esteve infetado no passado.
A regra é válida para entrar em restaurantes, frequentar um hotel, gozar de serviços que exijam proximidade entre o cliente e o funcionário (como um cabeleireiro ou massagista, por exemplo), participar em eventos como concertos ou jogos de futebol; e para entrar em recintos desportivos ou de lazer (como um ginásio ou um spa), especifica o Governo na sua página oficial.
Ora, encontrar onde fazer um teste é a parte mais fácil. Miguel Poiares Maduro, ex-ministro social-democrata, a visitar o país, não encontrou uma rua no centro de Viena que não tivesse uns guichés montados nas paredes dos edifícios para fazer despistes à infeção pelo SARS-CoV-2 — é tão fácil como levantar dinheiro numa caixa multibanco, diz. São os “Teststraßen”.
Além disso, quase todas as farmácias permitem realizar testes de antigénio (válidos por 24 horas), os autotestes podem ser registados online em algumas províncias do país e em alguns estabelecimentos, como restaurantes ou museus, pode fazer-se um teste à porta para poder entrar.
Miguel Poiares Maduro não se socorreu de nenhuma destas hipóteses. Nos primeiros dias na Áustria, o teste negativo que trouxe de Portugal para entrar naquele país permitiu-lhe aceder a todos os locais onde pretendeu entrar. Quando esse expirou, encomendou um kit de testagem PCR (válidos por 72 horas), que lhe foi entregue em casa. Bochechou um líquido, armazenou a amostra num frasco e pouco depois ela já tinha sido recolhida. Ao fim de duas horas, já tinha o resultado.
Apesar da simplicidade do processo de testagem na Áustria, ter um certificado de vacinação permite evitar tudo isto. Mas não dá com todas as vacinas, nem logo após a vacinação e não para sempre. Primeiro, só são aceites as vacinas da Pfizer/BioNTech, AstraZeneca/Universidade de Oxford, Johnson&Johnson e Moderna — a da Sinopharm permite entrar no país, mas não isenta de fazer testes para aceder aos estabelecimentos.
Depois, uma pessoa só é considerada vacinada, com direito a certificado que o comprove, passados 22 dias da administração da primeira dose. Como quem já teve Covid-19 só toma uma dose da vacina na Áustria (à semelhança do que acontece em Portugal), isto basta para que o documento fique válido por nove meses. Para quem nunca esteve infetado, a primeira dose só dá direito a um certificado com validade de três meses. Só após a segunda dose é que o prazo se estende por mais seis.
À conta destas medidas, a vida na Áustria aproxima-se do antigo normal. “Eles têm ecrãs gigantes e pessoas todas juntas para assistir aos jogos do Euro 2020”, descreveu Poiares Maduro ao Observador: “Ao ar livre a vida parece normal, já nem a máscara é obrigatória. Com tanta testagem conseguem fazer um rastreamento muito facilmente”.
Neste momento, ninguém na União Europeia está a testar tanto quanto a Áustria. A média de testes realizados diariamente naquele país ao longo da semana passada revela que se fizeram nove vezes mais análises por milhão de habitantes do que em Portugal, que está na ponta oposta: está entre os que menos testam e é o que tem a incidência mais alta.
Enquanto os austríacos efetuam perto de 46,6 mil testes diariamente por milhão de habitantes (média a sete dias), os portugueses realizam pouco mais de cinco mil. A diferença reflete-se na incidência: a Áustria registou uma média diária de 14,9 infetados por milhão de habitantes na semana entre 13 e 20 de junho, enquanto Portugal chegou na segunda-feira aos 108,4.
República Checa exige certificado, mas não verifica quem o tem
Ali ao lado, a República Checa rege-se por regras semelhantes. Pelo menos em teoria, mas não tanto na prática, contam ao Observador dois portugueses residentes em Praga — Beatriz Sousa, uma estudante de 25 anos, natural de Celorico de Basto que trabalha numa farmacêutica, e Joel Lima, um vimaranense de 32 anos que trabalha numa agência de viagens.
Segundo as regras, o certificado de vacinação só é emitido a quem já recebeu as duas doses da vacina contra a Covid-19. Mas para aceder a determinados serviços, incluindo restaurantes e hotéis, basta ter recebido a primeira dose duas semanas antes (e até seis semanas após a sua administração, depois disso só com a segunda dose já tomada) ou provar que se recuperou da Covid-19 nos 180 dias anteriores.
Quem não foi vacinado precisa de apresentar um teste PCR ou um teste de antigénio negativo — o primeiro feito no máximo com uma semana de antecedência, o segundo 72 horas antes. Nem mais uma hora, nem menos: uma vez volvidos três dias desde o último teste de antigénio, Beatriz dirigiu-se a um centro para obter um teste negativo e poder continuar circular legalmente e pediram-lhe que regressasse daí a cinco horas. Porquê? Ainda não tinham passado exatamente 72 horas desde o último teste.
Aos residentes com cartão de saúde do serviço público, o Estado oferece quatro testes de antigénio e dois testes PCR por mês. Quando estes esgotam, a testagem sai do bolso dos cidadãos e o preço varia de centro para centro. Há tantos desses postos de testagem que o Governo abriu dois sites (um especialmente dedicado a Praga, outro para a generalidade do país) com um mapa de todos os centros disponíveis para agendamento.
Aquele que Beatriz Sousa procura, por ser mais próximo de sua casa, cobra entre 32 e 70 euros por um teste PCR; e entre 8 a 32 euros por um teste de antigénio. Mesmo os testes gratuitos, oferecidos pelo Estado, exigem um pagamento de 14 euros para receber os resultados em 24 horas — caso contrário, só chegam ao fim de 48 horas.
Estas regras funcionam em teoria, mas não na prática. Joel Lima explicou ao Observador que, inicialmente, a responsabilidade de verificar se os clientes já tinham o certificado de vacinação (ou, em alternativa, o teste negativo) consigo era dos estabelecimentos, mas os setores da restauração, hotelaria e da cultura recusaram fazê-lo.
Essa tarefa passou depois para a esfera da polícia, que deveria confirmar os documentos das pessoas de modo aleatório em locais públicos — Beatriz chegou a ver dois agentes numa esplanada a pedirem documentos a uma mesa de clientes —, mas não tardou muito até também a polícia recusar esta atribuição. Agora, dizem estes portugueses, a regra caiu em terra de ninguém: nenhuma entidade verifica realmente quem está vacinado ou tem um teste negativo.
Os únicos serviços na República Checa onde ainda se questiona os clientes pelo certificado de vacinação são os ginásios, piscinas, cabeleireiros e saunas. Mas tudo funciona à base da palavra de honra, conta Joel Lima: “Ainda ontem fui ao ginásio e perguntaram-me se tinha vacina ou um teste negativo. Eu respondi que sim e disseram-me para entrar, ninguém me pediu para mostrar nada. Já aconteceu não ter o teste negativo comigo, dizer que sim e entrei à mesma”.
Mesmo ao entrar no país, a averiguação do certificado de vacinação e dos testes negativos não é rigorosa. Há duas semanas, Joel Lima regressou à República Checa após umas férias em Portugal, e pediram-lhe a identificação no aeroporto. O emigrante voluntariou-se para mostrar o contrato de trabalho e um teste negativo — só foi vacinado com a primeira dose a 18 de junho —, mas logo guardou os papéis: “Não quero ver nada disso”, respondeu o agente que o abordou.
No fundo, “pode-se fazer quase tudo”, resume o vimaranense: não é obrigatório usar máscara, porque se assume que toda a gente está vacinada ou testou negativo. Mesmo antes disso, quando as autoridades de saúde exigiam à polícia que verificasse se os ajuntamentos com mais de cinco pessoas ocorriam entre membros da mesma família, os agentes recusaram fazê-lo. E na última terça-feira, dia em que se jogou o Inglaterra-República Checa, as ruas estavam cheias de adeptos. Ninguém andava entre eles a confirmar os certificados de vacinação.
Dinamarca usa “Passaporte Corona” com códigos de barras
A Dinamarca é outro dos países que exige certificado de vacinação para frequentar quase todos os serviços — restaurantes e cafés, escolas e atividades extra-curriculares, lojas, locais religiosos e espaços culturais, por exemplo. Mas tanto o documento que comprova a vacinação, como os testes negativos exigidos a quem ainda não foi inoculado e os certificados de recuperação à Covid-19 estão guardados num único local: uma aplicação chamada “Passaporte Corona”, que reúne todas as informações relativas a uma pessoa. Quem não tem acesso digital ao Passaporte Corona pode pedi-lo em formato físico.
Dentro do Passaporte Corona, o certificado de vacinação (que também pode ser consultado noutras aplicações aprovadas pelo Governo, como a MinSundhed e a MinLæge) só é aprovado 14 dias depois de as pessoas receberem a primeira dose. Se a segunda dose não for administrada num prazo de 42 dias após a primeira, o certificado passa a estar inválido e, nesse caso, a pessoa deve servir-se de testes negativos para poder aceder aos serviços que os exigem.
Foi este o procedimento que Cristina Amaro, lisboeta de 49 anos e funcionária da embaixada da Suíça na Dinamarca, teve de cumprir ao fim da tarde desta quarta-feira para jantar fora, antes de assistir com a comunidade portuguesa em Copenhaga ao jogo decisivo contra França. Podia ter mostrado o certificado de vacinação à porta através do telemóvel, mas preferiu imprimir o documento e mostrar ao funcionário quando chegou ao restaurante. Ele, munido de um leitor, passou-o no código de barras que acompanha o comprovativo. Quando a luz verde acendeu, Cristina entrou.
Mas uma amiga ficou para trás: tinha-se esquecido do telemóvel em casa e, por isso, não tinha como provar ao restaurante que tinha sido inoculada contra a Covid-19. A solução foi servir-se do telemóvel de Cristina para poder entrar, mas tinha outro remédio: “Aqui há locais de testagem espalhados por todo o lado. Quem não tem certificado de vacinação pode simplesmente ir a um posto na rua e levar um teste. É tão rápido e tão fácil que 30 minutos depois, com um teste negativo, a pessoa pode entrar em qualquer lado se não tiver nada a comprovar que já está vacinada”.
Nem sempre os funcionários dos estabelecimentos verificam se os clientes têm realmente um certificado de vacinação ou, na falta dele, um teste negativo. “Já me aconteceu não pedirem, mas porque aqui na Dinamarca tudo funciona à base da confiança. Parte-se do princípio que toda a gente está a cumprir as regras e pode-se confiar. Mas na maioria das vezes, esses documentos são solicitados. E toda a gente os tem”, assegura Cristina.