Há duas formas de perder umas autárquicas: perder em quantidade, isto é, em número de câmaras; ou perder em qualidade, isto é, perdendo câmaras emblemáticas. Foi o que aconteceu em 2001 com António Guterres, que não resistiu ao day after de umas autárquicas em que viu a oposição tirar-lhe o tapete em algumas das maiores cidades do país: Lisboa (que perdeu para Santana Lopes) e Porto (para Rui Rio), mas também Coimbra, Sintra, Setúbal ou Faro. Vinte anos depois, os socialistas olham para Lisboa sem grande temor, Coimbra preocupa e o Porto é dado como perdido. Em Setúbal, a luta PS-PCP pode fazer baixas. Mas o otimismo geral prevalece.
“Não vejo o PS a perder nenhuma câmara importante, e mesmo que perca uma ou outra, não não me parece que o day after vá ser difícil, até porque o problema está do lado da oposição não em nós“, comenta um dirigente socialista ao Observador.
Entre abril e julho os nomes estarão fechados, mas a esta distância o PS não teme um remake de 2001. Adiar autárquicas está fora de questão: quem quer ganhar tempo é o PSD, não o PS. A mesma fonte lembra ao Observador que o PS parte com uma vantagem acumulada de dois bons resultados em 2017 e em 2013 e nada indica que, apesar de partir de um ponto alto, a queda vá ser acentuada.
Talvez por isso, no terreno, os sinais de descompressão são palpáveis. “As federações estão paradas”, “o processo está congelado”, “no primeiro trimestre do ano vai ser difícil ter tudo fechado”, foi ouvindo o Observador de várias fontes socialistas ligadas a diferentes concelhias. Não houve ainda nenhuma reunião da Comissão Política Nacional, pelo menos até à semana passada, que tivesse sido inteiramente dedicada à abordagem para as autárquicas.
A ordem é para reconduzir todos os atuais presidentes de câmara que não estejam em final do terceiro mandato (há cerca de 20 autarcas socialistas nesta situação) salvo uma ou outra exceção de autarcas que não queiram prosseguir (é o caso de Tábua, por exemplo). Mas tirando o trabalho que já vem sendo feito no terreno — há até estruturas que organizaram primárias para a escolha do candidato, como é o caso de Vítor Costa em Vila do Conde, a janela temporal é clara: o confinamento deverá acabar no fim de março; entre abril e maio a direção nacional — e as federações onde a direção nacional tem mais peso — começam a definir critérios; e em julho há o congresso do partido.
Se o trabalho começasse só em julho já era tarde, o que quer dizer que entre abril e julho tudo tem de ficar fechado. Antes disso, não vale a pena: “Não adianta apresentar agora um candidato e fechá-lo em casa“, diz uma fonte.
PS discute mais dias para votação em vez de adiamento das autárquicas
A situação pandémica é um fator a ter em conta no maior ou menor planeamento das autárquicas, mas PS e PSD não estão alinhados no que fazer. Depois de Rui Rio ter aberto a discussão apresentando um projeto de lei no sentido de criar “um regime excecional e temporário” para adiar as autárquicas num prazo de 60 dias, o PS apressou-se a dizer que não fazia sentido.
José Luís Carneiro, secretário-geral adjunto e coordenador autárquico, disse logo, em conferência de imprensa que a marcação das autárquicas “é uma competência do Governo” e que, se as eleições presidenciais de 24 de janeiro se realizaram em pleno pico da epidemia e “foram a melhor prova do compromisso democrático por parte dos portugueses”, então não faz sentido empurrar as autárquicas, ainda para mais porque fazê-lo seria empurrá-las para o pico do inverno.
Na perspetiva do número dois da direção socialista, a proposta do presidente do PSD “ilustra que está mais preocupado em encontrar solução para as dificuldades internas no seu partido do que propriamente com o decurso regular dos atos eleitorais”.
Ao que o Observador apurou, o que se discute no seio do partido é, em vez de adiar autárquicas, fazer outra coisa: ou passar o dia da votação para dois dias, ou aumentar o número de dias do voto antecipado. Para evitar concentração de pessoas numas eleições que, por si só, envolvem mais gente com toda a dinâmica local de concelhos, juntas de freguesia e assembleias municipais. Se para isso for preciso alterar a lei, “ainda há tempo”.
Cartão amarelo pode chegar?
A maioria dos dirigentes socialistas ouvidos pelo Observador não está preocupado com a falta de tempo nem está — a esta distância — preocupado com um eventual cartão amarelo ao Governo por causa da gestão da pandemia. Há, aliás, quem acredita que o efeito será o inverso.
“O que corre mal é culpa do governo central e o que corre bem é por causa dos autarcas“, admite um desses dirigentes socialistas. Ou seja: uma vez que, em contexto de crise económica e sanitária, os autarcas têm uma ação preponderante junto das comunidades, podem mesmo capitalizar com a crise.
Nem todos concordam, naturalmente. Entre os dirigentes socialistas, há quem receie que a médio prazo o desgaste do Governo possa ser maior, nomeadamente se o plano de vacinação não correr bem ou se o processo de desconfinamento não for bem planeado e houver uma recaída. “O governo ainda não está a sofrer em demasia pelo desgaste da pandemia, mas em outubro… nunca se sabe“, ouviu o Observador de uma socialista ligada ao processo autárquico.
“Saber se as pessoas vão usar as autárquicas para penalizar o governo como em 2001 acho que é imprevisível. Se fosse hoje, acho que isso não aconteceria”, diz a mesma fonte. Mas faltam nove meses. E o fantasma de Guterres paira representando tudo aquilo que não pode acontecer. As sondagens, até agora, não evidenciam esse cartão amarelo (ou vermelho) ao Governo.
Porto em “mínimos realistas” e de olho no pós-Moreira
Uma das câmaras que António Guterres viu fugir nas fatídicas autárquicas de 2001 foi a Câmara do Porto, que Rui Rio agarrou rompendo com 12 anos de governação socialista. De lá para cá, seguiram-se 12 anos de rioísmo (PSD) e, até ver, oito anos de Rui Moreira (independente), a caminho dos 12. Parece escrito nas estrelas que Rui Moreira vai completar o ciclo, daí que o PS esteja já com os olhos em 2025.
“A esta distância, a única certeza que temos é de que Rui Moreira vai para o terceiro e último mandato e aí tem de haver mudança”, diz ao Observador uma fonte local socialista. A essa certeza junta-se, afinal, uma outra: “O moreirismo não sobrevive à saída de Rui Moreira”. E outra ainda: o PS terá um candidato próprio, não irá apoiar Moreira, mas encara estas eleições com “mínimos realistas”.
Ou seja, é preciso preparar já o pós-Rui Moreira e a ideia é que a alternativa venha a ser construída no último mandato de Rui Moreira, mas há quem veja isso como tarde. “O partido tem de voltar a ter uma alternativa no Porto e isto não se constrói de um momento para o outro, tem de se começar já”, diz outra fonte.
A história do PS e de Rui Moreira no Porto é conhecida: quando o movimento independente de Rui Moreira (Porto, o Nosso Movimento, encabeçando até por um dissidente do PS/Porto) ganhou as eleições em 2013, o PS acabou por formar com ele uma coligação pós-eleitoral atribuindo a Manuel Pizarro, o candidato derrotado, um dos principais pelouros.
Chegados a 2017, o PS não iria ter candidato, para deixar via aberta a Rui Moreira, mas uma frase fatal de Ana Catarina Mendes (na altura secretária-geral adjunta do PS), em entrevista ao Observador, leva Rui Moreira a romper com os socialistas e o PS é forçado a avançar com uma candidatura autónoma. Manuel Pizarro dá o corpo às balas e consegue 28% nas urnas. E agora?
Agora, o nome de Manuel Pizarro, que por esta altura, além de líder da federação socialista do Porto é também eurodeputado, surge inevitavelmente na discussão mas há quem veja como uma mera solução de último recurso — no caso de não haver nada melhor. E ainda não está fechado. “Quando não há nomes vai-se sempre desaguar no Pizarro, mas não vejo que seja impossível ainda surgir um nome para fazer um trajeto de quatro anos em articulação com o Manuel Pizarro e ficar para o pós-Moreira”, avança uma fonte socialista do distrito.
Oficialmente o discurso é de que há “três ou quatro nomes” a ser estudados. O ministro João Pedro Matos Fernandes, apesar de já ter dito que não, pode ainda estar em cima da mesa, José Luís Carneiro é pouco provável por ser coordenador autárquico, e Manuel Pizarro é o eterno nunca descartado.
Mas também se reconhece os prós e os contras de jogar uma cartada batida: por um lado, Pizarro é reconhecido e teve 28% dos votos, o que não é mau; por outro, já perdeu duas vezes e é difícil ir à terceira sabendo que vai perder. “Um nome não experimentado pode correr o risco de baixar a percentagem de votação”, diz uma fonte socialista local ao Observador.
Certo é que o Porto tem votado sempre mais à direita: nas legislativas de 2019, o PS de Costa, mesmo tendo vencido a nível nacional, teve apenas 30% no concelho do Porto, atrás dos 34% do PSD de Rui Rio. Pelo contrário, o PSD tem massa eleitoral mas pode estar com problemas de protagonistas atravessando ainda o deserto do pós-Rui Rio.
O sonho minhoto
Se o Porto é dado como perdido e o trabalho ainda está em banho-maria, noutros distritos com lógicas locais menos dependentes da lógica nacional, o processo vai mais acelerado. É o caso de Viana do Castelo, que é visto como “dos poucos distritos onde há uma margem considerável de crescimento”. Ponte da Barca e Valença são duas autarquias atualmente do PSD que, devido a divergências internas, o PS sonha conquistar e já tem trunfos para isso, mesmo correndo o risco de perder a capital de distrito (Viana do Castelo) onde o autarca está em fase final de mandato e o PSD pode apostar forte.
Já Ponte de Lima, a histórica autarquia do CDS, também está no horizonte: com o CDS “em perda”, com o atual presidente em fase final de limitação de mandatos, e com a vice a dizer que não aceitará encabeçar uma solução de continuidade, sobra espaço para ocupar. Resta saber se o PS “resiste à tentação de apresentar um candidato próprio” ou se mantém o apoio ao ex-centrista Abel Batista que se candidatou como independente e que se vai recandidatar.
“O PS tem aqui uma oportunidade que nunca teve, porque há um elevado risco de ingovernabilidade”, diz uma fonte socialista ao Observador.
Também no distrito de Braga, que só tem uma autarca em final de mandato (Barcelos), há a convicção de que o PS pode ganhar caminho em pelo menos três autarquias: Amares, Póvoa do Lanhoso e Vieira do Minho.
Medina resiste?
Lisboa é o ponto de rutura: se vai, racha. Fernando Medina perdeu a maioria absoluta nas últimas autárquicas e a câmara da capital é vista por alguns socialistas como uma das câmaras emblemáticas que está menos firme. Se abanar muito pode cair, mas poucos acreditam que caia de facto. Há dois fatores que podem fazer tremer: o candidato que o PSD, em coligação com o CDS, vier a escolher (a hipótese Batista Leite vai ganhando força), e também o estado em que a governação socialista estará nessa altura.
É nas grandes cidades e nos grandes centros urbanos que mais se pode refletir um eventual chumbo ao governo, como aconteceu com António Guterres em 2001. “Tudo depende da conjuntura nacional“, diz-se nos corredores socialistas.
Nas restantes autarquias do distrito, como Sintra ou Odivelas por exemplo, a convicção é a de que estão seguras e vão manter-se do lado socialista. Nesses casos, as recandidaturas dos atuais presidentes são um dado adquirido.
Ana Catarina Mendes atirada para Setúbal
No distrito de Setúbal, o combate é outro: com o PCP. Ao que o Observador apurou, os comunistas deverão apostar a cartada da autarca de Setúbal, Maria das Dores Meira, em Almada — um dos bastiões que o PCP perdeu há quatro anos — para dar luta à socialista Inês de Medeiros que, acreditam os socialistas, está a conseguir colher frutos em Almada e é para apostar numa recandidatura.
Quanto a Setúbal-concelho, o nome de Ana Catarina Mendes, a líder parlamentar socialista que é eleita por aquele círculo, é atirado para cima da mesa em várias ocasiões mas entre os dirigentes locais há quem aposte que não vai acontecer.
Em todo o caso, o debate ainda vai no adro, e a hipótese de apostar num independente ou em alguém da estrutura local não parece descartada. A par do Seixal, Setúbal é o único município do distrito onde o nome ainda não está fechado. Certo é que, ao que apurou o Observador, a ideia de um pacto de não agressão com os comunistas não é do agrado dos socialistas locais, mesmo que venha a ser parte de uma estratégia nacional mais ampla.
Coimbra de alto risco
Falta Coimbra, que é, a par de Lisboa, um dos ex-libris que, fugindo das mãos do PS, podia fazer soar as campainhas de alarme. Até porque uma derrota de Manuel Machado, que é presidente da Associação Nacional de Municípios, seria emblemática. “Das câmaras emblemáticas, Coimbra é a que corre mais riscos”, admite uma fonte socialista ao Observador. Com Manuel Machado a governar sem maioria absoluta desde 2013, ainda vai recandidatar-se uma terceira vez. Mas há um ‘mas’. É que em 2017 houve uma divisão no PSD que fez com que aquele eleitorado se dividisse por duas candidaturas, a oficial e a do movimento independente ‘Somos Coimbra’, que já assinaram inclusive um esboço de acordo para uma coligação eleitoral.
“Havendo algum desgaste do PS em Coimbra, se houver uma coligação na oposição, o PS pode ter dificuldades em manter o poder autárquico”, ouve o Observador de uma fonte socialista próxima do município. Na Figueira da Foz, a ameaça seria Santana Lopes, mas ao que tudo indica o nome escolhido pelo PSD será mesmo Pedro Machado, presidente do Turismo do Centro, o preferido da estrutura local. E, nesse caso, o atual autarca socialista, Carlos Monteiro, que sucedeu a João Ataíde (entretanto falecido), não terá dificuldades, acredita o PS.
As peças ainda se mexem, as decisões tardam em tomar-se à distância de um ecrã, e o PS vai gerindo o processo com pinças: um deslize de Costa na gestão da pandemia pode vir a traduzir-se num chumbo aos autarcas.