As autoridades de saúde estão a estudar a possibilidade de dispensar quem já foi completamente vacinado de cumprir isolamento após o contacto com um caso positivo, mas apenas quando cerca de 90% da população vulnerável em Portugal estiver imunizada — um número que ainda é indicativo, mas que está em cima da mesa neste momento, avançou uma fonte próxima do processo ao Observador. Essa é a primeira prioridade, mas à qual se junta outra: mesmo atingindo essa percentagem, a nova diretiva só avança se uma percentagem elevada (qual em concreto ainda está em análise) dos outros grupos populacionais também já tiver sido vacinada.
Esta é uma mudança que já está a ser equacionada desde que o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) emitiu um documento sobre o impacto que a vacinação deve ter para permitir o relaxamento de medidas não farmacológicas, como a utilização obrigatória de máscara por pessoas imunizadas, o cumprimento do distanciamento físico ou o isolamento a que se deve sujeitar as pessoas caso contactem com um caso positivo de infeção pelo SARS-CoV-2.
O guia, intitulado “Orientação Provisória sobre os Benefícios da Vacinação Completa contra a Covid-19 para a Transmissão e Implicações em Intervenções Não-Farmacológicas” foi lançado a 21 de abril e admite que “à medida que o processo de vacinação avança, encoraja-se que haja recomendações baseadas na evidência, no sentido de a imunização poder permitir lentamente o relaxamento de intervenções não-farmacológicas”. Esse relaxamento deve ser “gradual” e “baseado em avaliações de cuidados dos riscos envolvidos”.
Os conselhos do ECDC são que, num grupo de pessoas em que todas elas estão totalmente vacinadas, a utilização de máscara e o cumprimento do distanciamento físico podem ser dispensados. Além disso, quando jovens adultos e de meia-idade se encontram com pessoas que não estão vacinadas, essas medidas também podem ser relaxadas se nenhuma das pessoas presentes tiver fatores de risco que aumente a probabilidade de desenvolver Covid-19 grave caso venha a ser infetada.
Quanto aos isolamentos de pessoas vacinadas após a exposição a um caso confirmado, o documento apela às autoridades nacionais a “continuar a seguir as orientações do ECDC” — ou seja, mantendo o isolamento tal como se a pessoa não tivesse sido vacinada. No entanto, o centro europeu também admite que “as autoridades de saúde podem considerar realizar uma avaliação de risco caso a caso e considerar as pessoas totalmente vacinadas como contactos de baixo risco”. São estas as recomendações que as autoridades de saúde estão a analisar para chegar a uma nova norma.
A avaliação do risco de um vacinado dependerá “da situação epidemiológica local no que toca às variantes em circulação, do tipo de vacina recebida [no caso de haver informações robustas sobre a eficácia dessa vacina para evitar a transmissão do vírus, um tema que ainda está envolto em incertezas] e da idade [porque as pessoas mais velhas e com comorbilidades podem desenvolver respostas imunitárias menos fortes com a vacina]”, assim como do “risco de transmissão posterior a pessoas vulneráveis”.
Uma fonte familiarizada com o tema contactada pelo Observador explicou que o relaxamento das medida de isolamento só pode avançar quando “a cobertura vacinal for suficientemente grande para uma pessoa vacinada estar maioritariamente rodeada de outras pessoas que também já foram vacinadas” — sobretudo se os indivíduos em causa forem mais vulneráveis perante uma infeção por SARS-CoV-2.
Este é “um momento de transição”: como a grande maioria de pessoas vulneráveis está vacinada — em termos de idade, por exemplo, o último relatório de vacinação indicava que 70% das pessoas com 50 anos ou mais já estava totalmente imunizada contra a Covid-19 —, já se começa a discutir essa alteração. Mas a variante delta retirou a confiança às autoridades de saúde para avançar para uma mudança por enquanto: “Preferiu-se manter as coisas como estão enquanto se tenta perceber a eficácia das vacinas para a transmissão desta variante”. Nem mesmo a chegada aos 70% da população vacinada com pelo menos uma dose será garantia de que o isolamento pode ser levantado em quem já foi imunizado.
Especialistas temem que isolamento em imunizados desencoraje a vacinação
Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, compreende que se mantenha a obrigatoriedade de cumprir isolamento quando se esteve em contacto com um caso positivo de infeção pelo SARS-CoV-2 — mesmo que já se esteja completamente vacinado contra a Covid-19. “É uma perspetiva conservadora, uma questão de precaução”, explicou a epidemiologista.
Mas é uma medida que não pode estar imposta para sempre, prossegue a especialista, e deve começar a ser dispensada quando uma percentagem mais significativa da população estiver completamente inoculada contra a Covid-19. “Isto tem de ser uma decisão de curto prazo, um alinhamento num período sensível em que há uma variante altamente transmissível em circulação”, considerou Carla Nunes.
A especialista em saúde pública recordou o esquema do queijo suíço, em que cada uma das camadas ajuda a impedir o contágio, sem que nenhuma seja 100% eficaz. A vacinação é uma dessas fatias e, tal como as outras, não assegura uma proteção total. Por isso, enquanto não se atingir a imunidade de grupo, o melhor é ser cauteloso: “São medidas que interrompem pouco a economia, assim como a utilização de máscara pelos vacinados. Não se perde em aguentar mais um pouco”, defendeu a epidemiologista.
Também Raquel Duarte, pneumologista e investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, concorda que os vacinados devem sujeitar-se ao mesmo isolamento que as pessoas não vacinadas quando contactem com um caso positivo: “A vacinação é muito eficaz em reduzir o risco de desenvolver uma forma grave da doença e da mortalidade, mas não evita a infeção. A saúde publica tem a obrigação de avaliar o risco de exposição”.
Atualmente, as pessoas vacinadas têm de cumprir isolamento durante duas semanas, exceto se realizarem um teste com resultado negativo ao décimo dia. Mas Valter Fonseca, coordenador da Comissão Técnica de Vacinação Contra a Covid-19, admite que se podem “adaptar as medidas recomendadas para as pessoas vacinadas” se os dados sobre o impacto da transmissão variante delta na situação epidemiológica do país assim o permitirem.
Manuel Carmo Gomes, epidemiologista da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, já tinha partilhado que não concorda que a generalidade das pessoas totalmente vacinadas contra a Covid-19 seja obrigada a cumprir isolamento profilático — exceto se os indivíduos desenvolverem sintomas, se estiverem imunossuprimidos (se tiver uma doença que afete o sistema imunitário ou tome medicamentos que o façam) ou se trabalharem em lares.
Em entrevista ao Observador, o perito concorda que a variante delta veio trazer mais incertezas: os estudos mais recentes sugerem que as vacinas são capazes de evitar a infeção pelo coronavírus na esmagadora maioria dos vacinados, mas muitos deles foram executados num momento em que a variante delta ainda não era dominante. E há evidência de que as pessoas vacinadas, quando infetadas, desenvolvem cargas virais mais baixas, mas isso não dá certezas sobre se a transmissão é travada, muito menos quando a variante dominante é a identificada originalmente na Índia.
Ainda assim, Manuel Carmo Gomes argumenta que “há um grau de proteção contra a infeção”, o que “dá algum suporte à recomendação para aliviar, de um modo geral, as pessoas completamente vacinadas de rastreios de rotina e do isolamento”. Mais: fazê-lo traz vantagens para “diminuir o absentismo que as quarentenas causam e chamam a atenção para a importância de ser vacinado”.
É este também o ponto de vista de Francisco Antunes, infecciologista do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que em declarações ao Observador defendeu que, ao obrigar-se uma pessoa vacinada a cumprir precisamente as mesmas regras de isolamento de alguém não vacinado, “está a dar-se espaço ao negacionismo, às correntes de desconfiança em torno da vacinação”.
O médico alerta que, embora as vacinas não anulem totalmente o risco de transmissão do coronavírus, são capazes de o reduzir: como a carga vírica é reduzida em relação aos indivíduos não vacinados, a transmissibilidade também deve ser menor. Depois, mesmo que a pessoa fique efetivamente infetada, nos vacinados os mecanismos de defesa induzidos pela vacina atuam de forma imediata e conseguem controlar o vírus precocemente, evitando na maioria dos casos os quadros clínicos mais graves.
Mas isso só é válido para quem já completou o esquema vacinal (uma dose para a vacina da Johnson&Johnson e duas para as vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca). Ora, quanto mais pessoas estiverem completamente vacinadas, menor a probabilidade de surgirem novas mutações do SARS-CoV-2 — inclusivamente aquelas que podem dar origem a novas variantes de preocupação.
Por isso, e já que clinicamente os indivíduos estarão mais protegidos, parte do incentivo para a vacinação deve ser relaxar as medidas para quem já a completou: “O isolamento tem um efeito do ponto de vista social e psicológico, afeta grandemente as pessoas e, se for obrigatório entre quem já recebeu as vacinas, coloca grandes dúvidas relativamente ao efeito vacinal“, resume Francisco Antunes.