Debaixo da gelatina de açúcar e proteínas que os investigadores colocaram numa caixa de Petri cinco dias antes, exposta a temperaturas entre os 25ºC e os 37ºC, cresceu uma colónia cremosa e amarelada com pequenos pontos brancos. Só nesse momento é que os cientistas souberam que patogénio tinham em mãos. Não era um vírus, nem uma bactéria: o líquido que tinha sido drenado dias antes de um abcesso no pescoço de um paciente de 61 anos na Índia era, afinal, um fungo.
O homem tinha dado entrada numa policlínica ao fim de três meses rouco, com tosse, faringites recorrentes, queixas de fadiga, dificuldade em deglutir e perda extrema de peso. O que quer que estivesse a provocar aqueles sintomas estava a fintar um sistema imunitário aparentemente saudável: o homem não tinha um historial de diabetes ou de doenças crónicas, nunca tinha tomado medicação imunossupressora, não sofria de doenças infecciosas como a sida, nem tinha sofrido qualquer trauma.
A resposta parecia estar no abcesso detetado junto à traqueia, recheado de um misterioso pus que testou negativo para todos os agentes patogénicos humanos conhecidos pelos cientistas. A descoberta de que se tratava de um fungo fazia sentido: o paciente era um micologista de plantas — um especialista no estudo, precisamente, de fungos — e outro exame já tinha revelado umas estruturas redondas e tubulares na amostra retirada do organismo do homem. Só que ninguém sabia que fungo seria esse.
As interrogações, e os receios de se estar na iminência de uma nova crise de saúde pública, tiveram de ser reportadas à Organização Mundial de Saúde, que acionou o Centro para a Referenciação e Investigação de Fungos com Importância Médica. Este é o laboratório certificado para estudar a epidemiologia de doenças fúngicas. Por outras palavras, é o vigilante oficial que alertará o mundo caso a humanidade esteja à beira de assistir, na vida real, ao mesmo enredo que a série “The Last of Us”.
Só neste laboratório, sediado na cidade indiana de Chandigarh, é que se chegou à resposta que espantou a equipa médica e todos os cientistas que entretanto se tinham envolvido no caso: a sequenciação da informação genética do agente patogénio demonstrou que o homem de 61 anos, micologista do leste da Índia, estava infetado com o Chondrostereum purpureum — um fungo que normalmente infeta plantas. Mas que nunca tinha sido detetado em humanos até aquele momento.
É possível que já tenha visto este fungo nos jardins. Cresce nos troncos das árvores, parece um cogumelo com formato de folha de alface e está coberto por uma pelugem esbranquiçada. Enquanto cresce, é violeta no interior e cinzento claro nas orlas. Os esporos são cilíndricos e arredondados — precisamente como os cientistas observaram em microscópio durante a investigação. Duas semanas depois de brotarem das árvores, deixando manchas no casco, seca, fica castanho e torna-se quebradiço.
Às vezes, o Chondrostereum purpureum é um aliado dos jardineiros: a medicação à base deste fungo permite controlar a disseminação desenfreada de plantas como choupos, bétulas e cerejeiras — basta aplicar o produto, que é uma pasta mole, diretamente nas folhas. Noutras vezes, pode ser o seu pior inimigo: este fungo é o responsável por uma doença chamada “folha de prata”, em que as folhas ficam progressivamente prateadas até morrerem infetadas pelos esporos. As principais vítimas são as roseiras.
Embora seja um agente patogénico comum no mundo das plantas, não havia registo de que o Chondrostereum purpureum tivesse a capacidade de infetar humanos. O homem no centro desta descoberta científica, apesar de ser saudável, era um alvo fácil: trabalhava com material em decomposição, cogumelos e fungos infecciosos para plantas há muito tempo nas suas investigações, relatam os cientistas num artigo científico.
“A exposição recorrente ao material em decomposição pode ser a causa desta infeção rara”, conjeturam. Mas esta história pode também ser um sinal de alerta: “O agravamento do aquecimento global e outras atividades da civilização abrem a Caixa de Pandora para novas doenças fúngicas”, avisaram os autores do estudo. As viagens internacionais, o comércio global e a urbanização desenfreada também “podem ser responsáveis pela emergência de novas infeções fungais”.
Há milhões de espécies fúngicas, mas poucas cumprem as quatro características básicas para infetar humanos: tolerância a altas temperaturas, capacidade de invadir o organismo humano, habilidade de ser absorvida pelas células e a capacidade de resistir aos ataques do sistema imunitário. Jaime Nina, infecciologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), explicou que “alguns fungos são muito frequentes em humanos, mas não são graves”. É o caso da tinha, que afeta a pele.
Depois, há fungos que causam doenças graves, mas que são pouco frequentes — como o que causa a candidíase, uma vez que se torna potencialmente fatal quando entra na corrente sanguínea de pessoas imunocomprometidas. Mas, em suma, “não há no reino dos fungos um equivalente à tuberculose”, uma bactéria que é simultaneamente frequente no reino animal e capaz de causar quadros clínicos graves, explicou Jaime Nina ao Observador.
De resto, há poucos fungos intolerantes a altas temperaturas, mas com potencial patogénico, que podem sempre adquirir a capacidade de sobreviver em ambientes menos hospitaleiros para eles. Os fungos são “vidas livres”, conta o infecciologista, porque “não vivem à custa de outros seres vivos”. Eles estão em toda a parte, desde os cogumelos que utilizou no jantar de ontem à noite ao bolor que cresceu naquele tupperware que abandonou no fundo do frigorífico. Mas “só uma percentagem muito pequena se adaptou a crescer em seres animados”.
Mas “essa ameaça é ampliada” com as alterações climáticas: alguns fungos podem adaptar-se ao aumento da temperatura do ambiente, tornando-os sobreviventes às temperaturas típicas do organismo. E a seleção natural determina que esses fungos mais adaptados sobrevivem aos desafios da natureza.
Jaime Nina explica que os 2.000 milhões de anos de adaptação entre o reino animal, o reino fúngico e o reino vegetal levam a crer que este cenário continua a ser longínquo. “A maioria dos fungos não gosta do calor, por isso é difícil entrar no mundo dos humanos”, indica o infecciologista. Por isso é que são mais comuns em animais de sangue frio, como os insetos ou os crocodilos. “Mas há novos fungos que podem aparecer, como aparecem novos vírus e bactérias”, confirma Jaime Nina.
Por enquanto, e no caso deste micologista indiano, as invenções humanas conseguiram dar conta do recado. Depois de o abcesso ter sido drenado, o homem tomou voriconazol, um medicamento antifúngico de largo espectro: foram duas doses de 400 miligramas no primeiro dia e duas doses de 200 miligramas por dia durante os 60 dias seguintes. O doente continuou a ser acompanhado ao longo de dois anos. Ao fim desse período, um veredito: estava tudo bem. Não havia sinais de fungos.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, há 19 ameaças fúngicas contra os humanos — quatro das quais são “patogénios de prioridade crítica”. Um deles é o Aspergillus fumigatus, que afeta principalmente os pulmões, mata 47% a 88% dos doentes e está a tornar-se resistente aos medicamentos antifúngicos. Outro é o Candida albicans, que causa doenças comuns como a vaginite, mas que também se pode desenvolver em formas graves que matam 20% a 50% das pessoas afetadas.
O terceiro patogénio é o Cryptococcus neoformans, um fungo oportunista que infeta o cérebro e que é especialmente comum em doentes infetados com o vírus da imunodeficiência adquirida (VIH). O quarto é o Candida Auris, resistente à maioria dos medicamentos antifúngicos e extremamente infeccioso.