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“Camaradas! Os vossos pais, avós, bisavós não lutaram contra os nazis, defenderam a nossa pátria comum, para que as forças neonazis tomassem o poder na Ucrânia. Existe um juramento de fidelidade ao povo ucraniano e não à junta antipopular que está a saquear a Ucrânia.”
Estas palavras foram proferidas por Vladimir Putin, a 24 de fevereiro, no dia em que começava a invasão ao país vizinho. Para justificar o início das hostilidades, o Presidente russo mencionou também a “desmilitarização e a desnazificação” da Ucrânia. E, para esse último objetivo, Moscovo aponta múltiplas vezes para um grupo paramilitar de infantaria que surgiu em maio de 2014, após a anexação da Crimeia e a revolução ucraniana desse mesmo ano.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o Batalhão Azov.
Se Mariupol ainda não é território controlado a 100% por Moscovo, isso tem uma única explicação: a presença de um grupo (de número incerto) de combatentes do Batalhão Azov que, durante dois meses e meio, resistiram aos intensos bombardeamentos e às sucessivas investidas dos militares russos sobre o complexo siderúrgico Azovstal. Durante a maior parte deste tempo, centenas de civis procuraram ali refúgio dos ataques aéreos e só um efetivo cessar-fogo, conseguido há poucas semanas, permitiu que partissem para outras zonas da Ucrânia. Foram ficando os militares — que garantiram resistir até ao último homem.
Na noite desta segunda-feira, porém, alguns começaram a sair: 53 feridos graves foram levados para um hospital e outros 211 que foram levados para uma localidade sob controlo russo para um “intercâmbio” — uma troca de prisioneiros. O presidente ucraniano fala numa “operação complexa”, que continua, mas sem grandes detalhes: “A operação para salvar os defensores de Mariupol foi lançada pelos nossos serviços secretos militares para trazer os rapazes para casa. O trabalho continua e esse trabalho exige delicadeza neste momento. Mantemos o máximo de atividade diplomática noutras áreas no interesse da Ucrânia”, disse Volodymyr Zelensky.
Mais tarde, em comunicado, o Estado Maior das Forças Armadas veio dizer que “a guarnição Mariupol cumpriu a sua missão de combate” e que a defesa da Azovstal “terminou”. Nas redes sociais, o próprio batalhão anunciou que “cumpriram a ordem” do Conselho Supremo da Ucrânia, “de salvar vidas”. Agora, “aguarda o apoio do povo ucraniano”.
Com aproximadamente mil membros — número que foi variando desde a sua fundação, tendo chegado aos 2.500 —, o Batalhão Azov, que integra as reservas das Forças Armadas ucranianas, é acusado pela Rússia de professar uma ideologia de extrema-direita e neonazi. As acusações não se ficam por aqui, sendo algumas dirigidas a uma alegada proximidade entre o grupo paramilitar e as estruturas militares e o próprio regime político ucranianos (apesar de o batalhão — sobre o qual pesou durante longas semanas a responsabilidade de evitar que a cidade de Mariupol caísse totalmente para o lado russo — representar uma ínfima parte das reservas ucranianas, das quais fazem parte 220 mil soldados).
Em declarações ao Observador, um elemento do batalhão Azov rejeita, por completo, o argumento do Kremlin de que a invasão da Ucrânia se fez para “desnazificar” o país: “A Rússia não quer ajudar os cidadãos ucranianos de certas regiões, nem nada do género”, considera Ilya Samoilenko. Esses argumentos, defende, foram apenas uma justificação formal para atingir outros fins: “O principal objetivo é eliminar a expressão ‘ucranianos’, eliminar a nossa nação.” Ilya Samoilenko garante que “as raízes da guerra são muito profundas” e acusa a Rússia de “genocídio”: “Todas as suas ações demonstram precisamente isso”.
Resistente ucraniano do Azov envia vídeo ao Observador e desmente Putin: “Mariupol não foi dominada”
Formado há oito anos, o batalhão Azov esteve na linha da frente na luta no leste do país e, de forma muito particular, em Mariupol, cuja situação Ilya Samoilenko relatou ao Observador. No meio de um conflito armado (e também de uma guerra de informação e contrainformação), o que representa o batalhão Azov? Qual é a sua história? E será, de facto, uma justificação para Putin “desnazificar” a Ucrânia?
Como surgiu, afinal, o batalhão Azov?
O batalhão Azov nasceu em maio de 2014, num momento conturbado da política interna ucraniana, em que o país tentava reorganizar as suas infraestruturas após a deposição do Presidente pró-russo Viktor Yanukovich e quando despontava uma revolução popular (Euromaidan). Na altura, o governo provisório tinha dificuldades para assegurar as funções mínimas do Estado, ao mesmo tempo que se assistia a um cenário de guerra civil (com o apoio da Rússia) no leste do país.
De acordo com Ivan Gomza, diretor do departamento de Administração Pública da Faculdade de Economia de Kiev, foi nesse contexto que surgiu o batalhão Azov, que inicialmente até era conhecido por “Exército Negro”. Essa designação inicial não foi escolhida ao acaso, tendo-se inspirado nas SS alemãs (que usavam um uniforme preto). Na altura, o grupo era constituído em parte por membros neonazis e também por grupos de ultranacionalistas.
Mas não é só o antigo nome do batalhão que evoca referências histórico-ideológicas do nacional-socialismo — também a insígnia do “Exército Negro” se inspirava na força paramilitar da Alemanha nazi, um legado que o Batalhão Azov acabou por herdar do movimento percursor desta unidade paramilitar. Composto pelo símbolo neonazi Wolfsangel, o emblema usado nas fardas apresenta semelhanças com uma suástica negra sobre um fundo amarelo, ainda que o grupo tenha já defendido que a insígnia retrata simplesmente a junção das letras “N” e “I” — cujo simbolismo representa uma “ideia nacional”.
Um dos fundadores do “Exército Negro”, grupo que daria lugar ao Batalhão Azov, foi Andriy Biletsk, político ucraniano que já não faz parte do grupo paramilitar e que lidera atualmente o Partido Corpo Nacional, assumidamente de extrema-direita. A iniciativa de criar um batalhão aconteceu numa altura em que o governo ucraniano tentava, de todos os modos, conter a ofensiva russa que levou à anexação da península da Crimeia. Por esse motivo, Kiev autorizou que voluntários com experiência militar (mesmo não estando integrados nas Forças Armadas) se organizassem e lutassem no leste da Ucrânia.
A alteração de nome do batalhão, concretizada ainda por Andriy Biletsk, resulta de uma das grandes vitórias do grupo — a primeira batalha de Mariupol, cuja principal consequência consistiu no controlo integral da cidade que havia sido parcialmente tomada por elementos pró-russos. Banhada pelo mar de Azov, Mariupol foi a inspiração para a designação do batalhão, que começava a ganhar crédito e reputação pelas suas façanhas militares.
Nessa altura, Andriy Biletsk, agora com 42 anos, já ganhara experiência política. Nascido em Kherson, o fundador do batalhão opôs-se desde cedo ao controlo soviético da Ucrânia. Por influência do pai, chegou mesmo a recusar frequentar o Movimento dos Pioneiros, uma organização juvenil dedicada à memória de Vladimir Lenine e na qual os adolescentes se preparavam para ingressar na vida política, ao mesmo tempo que praticavam desporto e se envolviam em atividades lúdicas.
Com a queda da União Soviética e a consequente independência da Ucrânia, Andriy Biletsk começou a sua atividade política no início dos anos 2000, associando-se quer a organizações paramilitares de extrema-direita quer a partidos com o mesmo posicionamento ideológico. Em 2005, desempenhou o seu papel político mais relevante até então, tendo assumido o cargo de líder da organização Patriota da Ucrânia, o braço armado do Partido Social-Nacional da Ucrânia, com visões ultranacionalistas e neonazis.
Em 2008, Biletsk juntou-se à Assembleia Social-Nacional, que pretendia ser um movimento agregador de vários partidos de extrema-direita e neonazis. Tendo atacado os direitos de várias minorias, organizando também manifestações contra esses grupos, Andriy Biletsk afirmou, em 2010, que a missão da nação ucraniana passaria por “levar a raça branca” a uma “cruzada final” contra os “os semitas Untermenschen [palavra em alemão, usada pela propaganda nazi, para designar raças inferiores]”.
A chegada de Viktor Yanukovich ao poder, em 2010, levou a que a Assembleia Social-Nacional se posicionasse contra a aproximação à Rússia, levada a cabo pelo ex-Presidente ucraniano. Este movimento acabou por ser um dos principais propulsores da revolução popular ucraniana em 2014, começando a ganhar corpo ao mesmo tempo que nas ruas das cidades ucranianas subia de tom a contestação ao regime de Yanukovich e que crescia o movimento popular a favor de uma maior aproximação ao Ocidente.
Com a queda de Yanukovich, e a implementação de um novo regime na Ucrânia, Andriy Biletsk seguiu para voos mais altos. Além de ter fundado o Batalhão Azov — numa altura em que o Governo de Kiev era mais permissivo à constituição de grupos informais de defesa do território —, candidatou-se como independente e conseguiu ser eleito para o Parlamento, afastando-se quase de imediato do grupo paramilitar que acabara de fundar.
Biletsk acabaria por exercer responsabilidades parlamentares até 2019. E, durante o seu mandato, participou, juntamente com outros membros do Batalhão Azov, na criação do Partido Corpo Nacional, de extrema-direita. Atualmente, é ele quem lidera o partido, mas fora do Parlamento e de qualquer governo regional.
A institucionalização do Batalhão
“São os nossos melhores guerreiros. Os nossos melhores voluntários.” Foi desta forma que Petro Poroshenko, ex-Presidente ucraniano eleito em junho de 2014, descreveu o batalhão Azov no momento em que decidiu integrar esta unidade na guarda nacional da Ucrânia. Os Azov passavam, dessa forma, a fazer parte das reservas das Forças Armadas ucranianas — o que acabava por confirmar a sua institucionalização na estrutura militar ucraniana.
Desde novembro de 2014 que este grupo paramilitar está sob alçada do governo, respondendo perante o ministério do Interior e recebendo financiamento para colocar em prática as missões que lhe são atribuídas. Inicialmente, o batalhão Azov tinha por objetivo conter a ofensiva separatista, que contava com o apoio direto da Rússia, no leste do país. Em paralelo, o movimento foi ganhando cada vez mais militares, atraídos pela sua reputação.
Com o crescimento na frente militar, chegou também o desejo de expansão para outras áreas na sociedade. Em 2016, o batalhão Azov contribuiu para a criação do Partido Corpo Nacional (PCN), o mesmo que é atualmente chefiado por Andriy Biletsk. Durante os dois anos seguintes, o PCN foi ganhando popularidade, sendo considerado um dos partidos que representava o eleitorado de extrema-direita — mas não só: “Atraía ativistas de outras organizações de direita e até alcançou preponderância na defesa dos direitos dos animais e do ambientalismo”, esclarece Ivan Gomza.
No plano social, alguns membros do batalhão Azov — associado ao Partido Corpo Nacional — foram menosprezando, ao longo dos anos, os direitos das minorias, principalmente os da comunidade LGBT. Entre ameaças e perseguições, alguns elementos do grupo paramilitar condenaram a realização do evento Pride em Kiev, há cinco anos, que acabou numa contramanifestação (que o grupo paramilitar garante não ter organizado, apesar de alguns dos seus membros terem participado no evento): “Opomo-nos aos mais variados tipos de espetáculos destinados a fazer propaganda aos membros da LGBT, incluindo as chamadas marchas pela igualdade”.
Outro dos alvos era a comunidade cigana, tendo alguns membros do batalhão Azov destruído acampamentos, numa lógica que se inspirava no supremacismo branco e numa política claramente anti-imigração. De acordo com Ivan Gomza, certos elementos chegavam a utilizar indiscriminadamente a violência em desfiles que organizava. Este tipo de ações nunca foi oficialmente reivindicado pelo batalhão, sendo antes atividades realizadas por alguns dos seus militares a título individual.
Contudo, com o crescimento e a sua consequente implementação na sociedade ucraniana, o batalhão foi, contrariamente às expectativas iniciais, perdendo fulgor até haver uma dissociação gradual (se bem que nunca oficial) com Andriy Biletsk e com Partido Corpo Nacional, que nem sequer participou (como independente) nas últimas eleições presidenciais de 2019. Sofrendo um forte processo de erosão e de fragmentação, o batalhão Azov também se viu enredado em múltiplos escândalos associados a processos de financiamento ilegal.
Nessa altura, terá começado uma mudança. Ao Observador, Vyacheslav Likhachev, diretor do Grupo de Monitorização dos Direitos das Minorias na Ucrânia e especialista russo que investiga o tópico do radicalismo de extrema-direita no país, aponta que não é “nenhum segredo” que Andriy Biletsk mantenha alguns contactos com o batalhão Azov: “Tem arrecadado dinheiro para o tratamento de soldados feridos e tem envolvido alguns membros do batalhão nos seus projetos políticos”. Ainda assim, o especialista ressalva que, desde outubro de 2014, não há qualquer “relação formal” com o grupo paramilitar e o seu fundador.
Quais são os argumentos da Rússia?
A operação para a retirada de alguns elementos do batalhão da fábrica Azovstal tem ainda contornos pouco claros, mas a permanência dos combatentes naquelas instalações foi, desde o início, um dos argumentos usados pela Rússia para a invasão, com Moscovo a acusar o grupo paramilitar de usar os civis como escudos humanos na siderúrgica.
No início de março, o Kremlin indicou que o batalhão Azov estava a abrir fogo contra civis no corredor humanitário de Mariupol. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, deixou duras acusações a estes “radicais”: “Tudo o que eles querem fazer é exterminar, punir e castigar civis por se revoltarem, e depois acabar com eles”. “Eles já tentaram de tudo”, acrescentou: “Artilharia pesada, tortura, pressão psicológica, humilhação e violência”. Mas, até ao momento, dos relatos dos civis que foram saindo das instalações da Azovstal, através dos corredores humanos — quando esses corredores efetivamente são abertos e não estão a ser bombardeados pelas forças russas —, não se ouviram acusações contra o batalhão que corroborem a versão apresentada pelo Kremlin de que estavam a ser usados como garantia de segurança dos militares ucranianos naquele reduto de Mariupol.
Encarado como uma organização terrorista pela Rússia, Moscovo tem estado empenhado em fazer trespassar internacionalmente essa imagem do batalhão. Em 2021, o Japão atribuiu esse rótulo terrorista ao grupo militar (ainda que nunca o tenha categorizado como neonazi), mas acabaria por retirar-lhe essa classificação já em abril deste ano. As autoridades nipónicas justificaram-no com a “desinformação” que tem sido publicada sobre o assunto.
A reação russa não tardou. O embaixador russo no Japão, Mikhail Galuzin, disse à agência de notícias russa TASS que a decisão se devia ao facto de o governo japonês “apoiar o regime de Kiev de todas as formas, incluindo aquelas que prejudicam a população das repúblicas [autoproclamadas] de Donetsk e Lugansk”. A sociedade do país asiático está ainda “sob uma enorme pressão de uma propaganda antirrussa”, denunciou.
O batalhão Azov pode ser considerado neonazi?
Após a invasão da Rússia à Ucrânia, o batalhão Azov voltou a ganhar preponderância — primeiro, porque era necessário defender o país de uma ofensiva que deixou de estar centrada no leste; e, segundo, por causa do objetivo de desnazificação apresentado por Vladimir Putin. Desde o início do conflito, a defesa de Mariupol — a cidade que havia dado credibilidade ao grupo paramilitar — foi uma prioridade assumida, dado que é a região em que o grupo possui uma maior influência nas reservas das Forças Armadas ucranianas.
No entanto, a associação com o neonazismo continua a perseguir o batalhão Azov, cuja reputação acaba indiretamente por se espalhar pela generalidade das Forças Armadas ucranianas. “O movimento tem enfrentado oposição e críticas internas e internacionais desde a sua formação”, reconhece ao Observador Alexander Ritzmann, conselheiro da Fundação Europeia para a Democracia e membro do Conselho Alemão para as Relações Internacionais. Mas será que o grupo paramilitar adota mesmo ideais neonazis?
Ao Observador, Vyacheslav Likhachev, diretor do Grupo de Monitorização dos Direitos das Minorias na Ucrânia, recusa que todos os membros sejam neonazis: “A única ideologia possível é a do estatuto disciplinar [da Ucrânia]. Entre outras regras, defende a obrigação de ‘respeitar direitos humanos, a honra e a dignidade’”.
O responsável não nega que haja elementos, dentro do batalhão, com “um background neonazi e com visões de extrema-direita”, mas garante que são uma minoria entre os cerca de mil elementos que atualmente integram aquela força. “A maioria dos militares de extrema-direita saiu em 2014”, explica Likhachev, justificando-o com a saída de Andriy Biletsk — o fundador de grupo. Assim sendo, sinaliza que, “nos anos mais recentes”, não há qualquer justificação para rotular o grupo como sendo neonazi.
Para demonstrar o seu ponto de vista, Likhachev refere que existem, no batalhão, alguns soldados judeus e de outras etnias, como “tártaros da Crimeia” e pessoas com “variadas religiões e afiliações políticas”.
Esta posição é corroborada por Taras Kuzio, professor do departamento de Ciência Política da Universidade de Kiev e colaborador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Ao Observador, Kuzio — britânico, que cresceu na comunidade ucraniana de Halifax, em Yorkshire, no Reino Unido e que é filho de ucranianos — descreve o Batalhão Azov como um grupo de “heróis nacionais”, que estão atualmente a “defender Mariupol”.
Por seu turno, Alexander Ritzmann alerta para o facto de o batalhão Azov poder ainda ser “perigoso” para o crescimento do movimento transnacional “da extrema-direita”. “Tem servido como uma espécie de hub durante algum tempo, com ligações fortes aos extremistas de direita radical em muitos países da União Europeia e dos Estados Unidos”, denuncia em declarações ao Observador.
“As suas atividades, que incluíram torneios de artes marciais, festivais de música, eventos políticos e treinos paramilitares, são de grande preocupação”, salienta Ritzmann, dizendo que algumas das ações patrocinadas, ou pelo menos levadas a cabo por alguns membros do batalhão Azov, “desrespeitam os direitos humanos”. Estas ações existiram desde a sua fundação e até ao início da escalada de tensão com a Rússia, ainda que recentemente em menor número, devido à fragmentação que o grupo paramilitar foi sofrendo.
Ressalvando, por um lado, que o batalhão tem “provavelmente um número acima da média de ultranacionalistas que defendem a ideologia de extrema-direita”, por outro lado, Alexander Ritzmann admite que “não existe qualquer estatística que prove a crença de que maioria dos soldados são neonazis”.
Além disso, o especialista alemão recorda que o “batalhão [tem estado] a lutar contra os invasores russos em Mariupol” e que esse facto, de alguma forma, torna secundária a discussão sobre o eventual posicionamento ideológico de alguns dos seus membros. Ritzmann defende que, “quando um país está sob ataque de invasores estrangeiros, é aceitável que os ucranianos não se foquem nas visões políticas de quem os defende”, mas antes naqueles que “conseguem lutar contra os invasores”.
“É isso que está a acontecer na Ucrânia”, declara, recorrendo a um provérbio popular — “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” — para enquadrar a sua visão. O especialista assume também que, “como muitos países no mundo”, a Ucrânia “terá seguramente de lidar com os seus problemas relacionados com a extrema-direita”, que qualifica como “significativos” e “complexos”. Mas, agora, a prioridade é responder à invasão de um país estrangeiro.
Uma das grandes incógnitas continua a ser a de quantas pessoas do batalhão Azov professam a ideologia neonazi. Em 2015, numa entrevista ao USA Today, Andriy Diachenko, porta-voz do Batalhão Azov, referiu que 10% a 20% dos membros eram neonazis. Esse número não foi, contudo, confirmado por qualquer fonte oficial. E também não há dados objetivos sobre se esse universo é composto por elementos de comando — que poderiam exercer maior influência sobre os subordinados e, em tese, reforçar a presença de nacionalistas nas fileiras do batalhão — ou se, por outro lado, esta percentagem diz respeito a soldados de base e sem voz de comando.
Propaganda do Kremlin ou realidade?
Num ponto, os três especialistas ouvidos pelo Observador estão de acordo: o Batalhão Azov tem sido, e continua a ser, usado como uma manobra de propaganda russa — exatamente para fundamentar a alegada missão primordial de desnazificar todo um país (a Ucrânia) por parte de Moscovo.
Vladimir Putin nunca foi completamente explícito sobre o que quer dizer com a desnazificação da Ucrânia, não se sabendo, por isso, se incide particularmente sobre o batalhão Azov (que está sob tutela ministerial) ou sobre o regime ucraniano. Ao Observador, Vyacheslav Likhachev considera que o Presidente russo tem como finalidade não a desnazificação, mas antes a “desucranização”. Este processo não implica uma “anexação formal”, mas sim uma “ocupação” e um “controlo da esfera política, social, cultural e educacional” da Ucrânia. “Uma russificação forçada”, resume.
Ilya Samoilenko, membro do batalhão Azov, dramatiza. A invasão foi “uma operação precisa para matar o maior número de ucranianos possível”. “Não se importam com a variedade de métodos, usam tudo ao seu alcance”, denuncia, salientando que as forças russas usam “mísseis não guiados” sobre o território ucraniano, levando a um número elevado de baixas civis por entre a população ucraniana.
Sobre a alegação de que a Ucrânia é um Estado fascista, Alexander Ritzmann rejeita por completo essa hipótese: “O mito de que a Ucrânia é controlada por radicais de extrema-direita não passa de uma mentira russa”. O especialista alemão justifica o seu ponto de vista com as últimas eleições presidenciais, em particular com o resultado do partido de extrema-direita — o Svoboda —, que não foi além dos 2%.
Adicionalmente, Alexander Ritzmann explica que este “mito” fabricado pela Rússia é inverosímil, uma vez que Volodymr Zelensky é “judeu”. Em entrevista à CNN Internacional, o Presidente ucraniano contou que o seu avô lutou contra a Alemanha nazi, tendo-se alistado no Exército Vermelho. Para mais, relatou Zelensky, os soldados alemães mataram os seus bisavós durante a ocupação da Ucrânia, sendo que o seu avô foi o único que sobreviveu à guerra — todos os seus tios-avós acabaram por morrer na sequência da ocupação pelas potências do Eixo.
O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, abordou o assunto numa entrevista a um canal italiano, desvalorizando o facto de Volodymr Zelensky ser judeu: “Isso não nega a presença de elementos nazis na Ucrânia”. “Quando dizem ‘que tipo de nazificação é esta, se somos judeus’, bom, penso que Hitler também tinha origens judaicas, por isso não significa nada.” Estas palavras foram duramente criticadas pelo chefe de diplomacia israelita, Yair Lapid, que as descreveu como uma “declaração imperdoável e escandalosa, um erro histórico terrível”. Israel exigiu depois um pedido de desculpa, que acabaria por chegar da parte de Vladimir Putin.
A influência política e os protestos contra Zelensky
Não obstante responder a ordens do Ministério do Interior, o batalhão Azov teve sempre uma influência política limitada, não interferindo nos assuntos estatais, apesar de manter ligações com o antigo ministro do Interior ucraniano, Arsen Avakov. Mais recentemente, com a saída do Parlamento de Andriy Biletsk, a par da eleição de Volodymyr Zelensky, o grupo passou a manifestar-se abertamente contra o Presidente e contra o governo, realizando protestos que terminavam com violência.
Em fevereiro de 2021, registaram-se desacatos com as autoridades em Lviv, depois de uma manifestação violenta em que alguns membros do batalhão participaram e em que quatro polícias ficaram feridos. Já em agosto do ano passado, após a detenção de sete membros do Partido Corpo Nacional, tiveram lugar mais protestos contra o governo, desta feita em Kiev.
Duas mil pessoas saíram às ruas para protestar contra aquilo que diziam ser uma ação de “repressão” contra o partido de extrema-direita. Mas não foi o único motivo. Protestando perto da casa de Volodymyr Zelensky, os manifestantes chamaram “palhaço” ao atual Presidente ucraniano, acusando-o de estar a preparar a assinatura de “acordos traiçoeiros” para entregar a Ucrânia ao Kremlin. Estas ações mostram uma clima de permanente tensão entre o Batalhão Azov e o governo do atual chefe de Estado do país, que parece ter ficado em suspenso depois da invasão por parte da Rússia.
Mas estes episódios também fragilizam o argumento de que, partindo de um pendor neonazi que pudesse ser atribuído ao Batalhão Azov como um todo, o próprio Estado ucraniano estaria ‘minado’ pela ideologia nacional-socialista e representaria, por isso, uma ameaça para a Rússia e para a população russófona da Ucrânia.
Uma troca de argumentos recente também mostra como a ideia de um suposto alinhamento com o grupo paramilitar carece de sustentação. Há uma semana, elementos do Batalhão Azov que resistiam em Mariupol acusaram o governo ucraniano de ter falhado “na proteção da cidade”, afirmando que, nos últimos oito anos, “houve muitos governantes que sabotaram a defesa” contra uma guerra que se sabia que viria.
Batalhão Azov diz que governo ucraniano “fracassou” na proteção de Mariupol
As declarações surgiram depois de Volodymyr Zelensky admitir que, depois de “virtualmente” todos os civis terem sido retirados de Azovstal, teria chegado o momento de avaliar a retirada de todos os militares que continuam a travar a tomada de controlo daquelas instalações — e da cidade de Mariupol — por parte das forças russas. A reação daqueles que combatiam na siderurgia foi quase imediata: não saíam e condenavam aqueles — como o Presidente ucraniano — que pareciam ter deitado a toalha ao chão.
Propaganda russa “benéfica” para o Ocidente?
Sobre a ideologia dos Azov, Vyacheslav Likhachev concede que existe um fundo de verdade sobre o seu passado ligado ao neonazismo. Contudo, o especialista russo reforça que a “propaganda russa está empenhada em criar a imagem de um ‘batalhão nacional’ criminoso neonazi”.
“Não utiliza mentiras descaradas, usando para isso alguns factos objetivos”, diz Vyacheslav Likhachev, exemplificando com “o emblema do regimento” e o “passado político dos fundadores”. A propaganda russa conseguiu, portanto, “construir um cenário que parece verídico”. Ainda assim, sublinha, essa ideia é totalmente falsa: “Não devemos subestimar a propaganda russa.”
Estas manobras serão “sistemáticas, profissionais e surpreendentemente convincentes” e estão diretamente direcionadas à sociedade ocidental, que “tende a rejeitar uma visão do mundo a preto e branco e a preferir modelos mais complexos”, elucida o especialista russo.
Alexander Ritzmann concorda: o foco no Batalhão Azov “enquadra-se perfeitamente na propaganda de guerra de Vladimir Putin” e apenas serve para “atingir a população ucraniana”.
Apontando o dedo ao Ocidente, Vyacheslav Likhachev considera ainda que “um dos fatores que determina a partilha de mitos” — quer seja o argumento de que a Ucrânia é um Estado fascista quer a caracterização do batalhão Azov como neonazi — é o facto de que essa desinformação não é “apenas benéfica para a Rússia”. “É um grande argumento para não fazer nada, para assistir à Ucrânia a lutar sozinha contra um inimigo mais forte e não sentir grande empatia pelos combatentes do batalhão Azov, que morrem numa batalha desigual, a defender Mariupol.”
“Qualquer propaganda apenas funciona quando há pessoas que estão prontas para acreditarem nela”, prossegue o especialista russo, que explica que os mitos parecem “mais convincentes se as pessoas internamente já concordarem com eles”. Para o mundo ocidental, é “conveniente” acreditar “nas fábulas de que tudo é complicado e ambíguo porque, nesse caso, pode-se simplesmente não interferir, não sentindo qualquer peso na consciência”.
“É por isso que o mito do fascismo ucraniano deve morrer o mais cedo possível”, sentencia Vyacheslav Lykhachov, numa visão partilhada pelo professor do departamento de Ciência Política da Universidade de Kiev, Taras Kuzio, que caracteriza todos estes processos como “desinformação do Kremlin”.
Os grupos neonazis russos e as ligações ao Kremlin
Alexander Ritzmann sublinha, aliás, que as “ligações” que o governo russo tem à extrema-direita são até “em maior número” do que na Ucrânia. O especialista sublinha que não se deve ignorar “organizações perigosas como o grupo Wagner e o Movimento Imperial Russo” — algo que também descredibiliza o objetivo de desnazificação proposto por Vladimir Putin para justificar a invasão à Ucrânia.
O Movimento Imperial Russo é descrito pelo Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford como um grupo de “extrema-direita” e uma “organização militar de supremacia branca com sede em São Petersburgo”. Promove valores como o “nacionalismo étnico russo” e defende “a restauração do regime dos czares”. “O Movimento Imperial Russo mantém também contacto com grupos neonazis e com grupos de supremacia branca na Europa e nos Estados Unidos”, acrescenta.
Fundado em 2002, o Movimento apenas ganhou destaque mediático em 2014 com a anexação da Crimeia e a situação no leste da Ucrânia, apoiando os separatistas das regiões de Donetsk e de Lugansk através do seu “braço armado” — a Legião Imperial, que também treina “militares russos para lutar contra as forças do governo”, indica a Universidade de Stanford.
Este foi também o primeiro movimento de supremacia branca que foi considerado uma organização terrorista pelo governo norte-americano em abril de 2020, numa ação conjunta com o Canadá, que também o designou desta forma.
Ao Observador, Jason Blazakis, professor do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury e autor de um relatório do Soufan Center sobre o Movimento Imperial Russo em 2020, confirma que este grupo “tem membros a combater no leste da Ucrânia”, previsivelmente “como maneira de reforçar a invasão ilegal russa”.
Para Blazakis, as visões de Vladimir Putin e do grupo neonazi “estão bem alinhadas”. “Ambos veem a Rússia como uma grande potência” e almejam “voltar aos tempos em que o Estado russo era mais dominante”, clarifica o especialista norte-americano, reforçando que a invasão à Ucrânia (e possivelmente a outros países) “ajuda a alcançar o objetivo de a Rússia” tornar-se novamente “uma potência de primeiro relevo no cenário mundial”.
Além disso, Jason Blazakis expõe que o Kremlin permitiu “de forma tácita” que o Movimento Imperial Russo “usasse território [russo]” como “santuário” para “treinar terroristas que levaram a cabo ataques noutros locais”. De acordo com o relatório publicado há dois anos, o grupo esteve presente em operações militares na Líbia, Síria e República Centro-Africana.
No que diz respeito ao Grupo Wagner, o modus operandi é idêntico, apesar de, oficialmente, não existir (ou, pelo menos, o Kremlin tentar esconder a sua existência). Segundo avançou o Guardian, este grupo contratou parte dos 20 mil mercenários que combateram na Síria e na Líbia, para lutarem no Donbass.
O grupo Wagner foi criado por Dmitry Utkin, aliado e próximo do Presidente russo. De acordo com a NBC News, o seu nome foi inspirado pelo músico e compositor Richard Wagner — que Adolf Hitler idolatrava. As ligações com o regime nazi alemão não ficam por aqui: o fundador tem tatuagens nazis, incluindo uma suástica, uma águia e relâmpagos associados à ideologia de extrema-direita. Os mercenários do grupo são também acusados de deixar propaganda neonazi nas regiões em que combatem.
Tendo participado em vários conflitos espalhados por todo o globo, o Grupo Wagner tem estado presente na Ucrânia desde o início da anexação da Crimeia, tendo, tal como o Movimento Imperial Russo, apoiado os grupos separatistas no leste do território ucraniano. O Reino Unido chegou a acusar o Kremlin de contratar mercenários do grupo Wagner para assassinar o Presidente ucraniano.