Enviada especial a Angola 

À porta da escola portuguesa Mandume, no Lubango, uma professora pergunta a um grupo de duas ou três crianças angolanas, excitadas pela visita de Marcelo:

— Estão contentes?

— Siiiiim

— Gostaram de o ver?

— Siiiiim.

— É o Presidente de quem?

— Nosso!

— Não, mas é o Presidente de que país?

— De todos!, insiste uma delas.

A amiga que está ao lado dá uma ajuda: “É o Presidente de Portugal!” Isso. “E o nosso quem é?” “João Lourenço!”, respondem as duas em uníssono. Tudo certo, afinal.

Angola nunca viu um Presidente assim. Que olha “olhos nos olhos”. Ana, natural de Braga, é professora naquela escola, que foi erguida pela força de vontade da comunidade portuguesa no Lubango, há sete anos e não contém a emoção. “Ainda não acredito que ele está ali”, diz ao Observador já com a voz embargada. O “ali” é dois metros ao lado, engolido numa bolha de braços e telemóveis no ar. Por onde Marcelo passe, os mais novos — e os menos novos também –, não têm pudor em correr para o ir tocar. Já quase nem selfies pedem, basta tocar. Não é todos os dias que se pode dar um beijinho a um Presidente da República, ou estar à distância de um abraço.

“Devemos receber o Presidente português como deve ser, ele deve ser honrado no nosso país porque é um exemplo para os nossos governantes. Em Angola eles não têm esta liberdade como ele tem”, diz Pedro ao Observador, um homem de meia idade que estava mergulhado na fila barulhenta de cerca de três mil pessoas (números da segurança) que esta sexta-feira estava na Catumbela, província de Benguela, à espera do Presidente português. Conceição, uns metros à frente, confirma: “Ele é muito diferente dos outros porque é realista, os outros ocultam as coisas. Estamos muito felizes por o ver ao vivo. É muito bonito”, diz.

"A Catumbela ama você". Grupo de mulheres entoava cânticos para Marcelo

Ao fundo, por entre o mar de gente disposto num cordão humano, um grupo de mulheres entoava cânticos feitos à medida de Marcelo:

Sua excelência seja bem-vindo

Sua presença é um prazer

Com Jesus vos estamos dizendo

A Catumbela ama você.

Em África não costuma ser assim. E Angola não é exceção: “Não estão habituados a este tipo de relação com o poder, o poder é uma coisa muito distante”, comenta com o Observador o deputado e líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, que acompanha a comitiva, juntamente com Nuno Magalhães (CDS), Lara Martinho (PS), João Oliveira (PCP), e Maria Manuel Rola (BE). Depois de quase 40 anos de liderança de José Eduardo dos Santos, a chegada de João Lourenço terá mudado algumas coisas, mas a mudança não acontece ao ritmo de um estalar de dedos.

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[Vídeo: “A Catumbela ama você”. Marcelo volta a mergulhar nos braços da multidão em Angola]

“Se há exemplo de Presidente próximo é João Lourenço”. Palavra do mestre

Vistas bem as coisas, os banhos de multidão que Marcelo Rebelo de Sousa leva por onde passa nas províncias angolanas parecem quase ofuscar o Presidente angolano João Lourenço (que não acompanhou o convidado no périplo pelas províncias). E isso não há-de-ser por acaso. Angola tinha prometido uma receção grandiosa a Marcelo e os frequentes banhos de gente também fazem parte do plano da festa.

Depois de ter estado praticamente uma hora nos braços da multidão na Catumbela — sim, porque Marcelo faz questão de percorrer todo o cordão humano de uma ponta à outra, para pesadelo dos seguranças — o Presidente português foi questionado sobre se este calor humano era a prova de que os angolanos estavam carentes de uma presidência de proximidade. Mas Marcelo desvalorizou a comparação: “Quer dizer que eles sentem que Angola e Portugal estão muito próximos, e eles querem essa proximidade. Se há Presidente próximo é o Presidente João Lourenço. Ele é um exemplo de proximidade”, disse, lembrando, de resto, que João Lourenço tem uma visita marcada para Benguela na próxima semana: “Vão ver”.

A verdade é que se tornou claro, ao fim de três de quatro dias de visita de Estado, que Marcelo Rebelo de Sousa tem o objetivo concreto de passar uma mensagem de proximidade, afeto e amor. Não toca em mais nenhum outro assunto que não a fraternidade entre os dois povos; não fala da atualidade nacional nem por nada e faz questão de que os banhos de multidão fiquem registados e gravados.

Foi o que aconteceu logo na chegada à primeira província que visitou: o avião dos jornalistas saiu de Luanda mais cedo do que o do Presidente, e os jornalistas não acompanharam o percurso de carro feito entre o aeroporto e a praça do Governador da Huíla, onde todos o aguardavam: um percurso que seria feito em 20 minutos, mas que Marcelo demorou duas horas porque o Presidente se pôs em cima do carro (um pé dentro, outro fora) e cumprimentou toda a gente que encontrou pelo caminho. “Que saudades que tive vossas hoje de manhã, foi o melhor percurso que fiz na vida”, comentaria depois o Presidente aos jornalistas, em jeito de conversa informal, num jantar a bordo da fragata Álvares Cabral, já no Lobito, Benguela.

Marcelo viajou 10km “pendurado no carro”. “Ia caindo, mas tinha de falar às pessoas”

Não faz mal, não faltariam outras oportunidades. O modelo “um pé dentro, outro fora no carro blindado” acabaria por ser a forma de deslocação escolhida para o resto da viagem pelas províncias. No Lubango, Lobito ou Benguela, bastava ver concentrações de gente, disposta na estrada, para Marcelo, 70 anos, subir ao estribo. “O melhor Presidente do mundo”, gritavam alguns.

Nem quando, nesta manhã de sexta-feira, fez uma simbólica viagem nos históricos caminhos de ferro de Benguela — de construção portuguesa e reconstrução chinesa –, que historicamente faziam a ligação do porto do Lobito ao interior africano para transporte de mercadoras, Marcelo optou por falar de política. Limitou-se a sublinhar que o velho caminho Lobito-Benguela era agora um “símbolo da construção do futuro”. A política aqui não entra. E mesmo nos negócios, também há espaço para amor — já que, disse Marcelo no discurso de encerramento do Fórum Económico em Benguela, é o facto de Portugal e Angola se conhecerem na prática e se “amarem no concreto” que faz com que tenha sido possível reatar num tão curto espaço de tempo (seis meses) as relações que estavam tremidas e congeladas há uma década, fazendo desta fase um novo impulso para os negócios.

Marcelo dá lições de amor a empresários. “Não se ama em teoria, só no concreto”

Emanuel Borges é um empresário transmontano que se fixou no Lubango, província da Huíla, há dez anos. Trabalha no ramo da distribuição, numa empresa de produtos de limpeza e produtos alimentares, e sobreviveu à crise financeira e da desvalorização da moeda que empurrou para Portugal muitos portugueses que tinham escolhido Angola para fixar negócio. Já produz cerca de 50% do que vende e não tem qualquer desejo de voltar. A vida de funcionário público numa divisão municipal, que levou durante 23 anos, ficou para trás. Agora tem esperança no futuro no Lubango, onde escolheu viver. “Tirei o dia para vir ver o Presidente porque acho que pode trazer um novo alento para os empresários portugueses e angolanos. É um Presidente que nos olha olhos nos olhos, e a irmandade dos PALOP, que estava morna, agora pode mesmo fazer a diferença”, disse ao Observador na quinta-feira enquanto esperava a chegada do Presidente da República português, sublinhando que Portugal tem com Angola uma mais-valia que nenhum outro tem: “A língua que nos une”.

É a essa mais-valia que Marcelo chama “amor”. Um amor que derrubou “os que duvidavam”. E quem são esses? “Aqueles que estavam interessados em estar presentes economicamente em Angola e que subestimavam o poder das relações entre portugueses e angolanos”, como explicou o próprio aos jornalistas durante uma caminhada noturna pela marginal do Lobito.

A estrela mais brilhante do firmamento angolano

Ao fim de três dias de visita oficial, dizer que foram trocadas juras de amor entre os dois Presidentes e os dois países não é um exagero. João Lourenço chamou-lhe, a Marcelo, “a estrela mais brilhante do firmamento angolano”, e Marcelo retribuiu todos os dias com palavras de afeto e “abraços do tamanho da esperança, da coragem e da determinação”.

“Condenados a serem irmãos”, como disse Marcelo na sessão solene na Assembleia Nacional, Angola e Portugal querem tirar o máximo proveito de uma relação que começou por ser de amizade, mas que agora é de fraternidade (amor de irmãos) e de “parceria estratégica”. Habituado que está a dar notas, Marcelo tem dito nas duas aulas que deu por estes dias, que a relação entre os dois tem a nota máxima: um Excelente que pode vir a transformar-se num Excelente+. “Temos de trazer mais empresas, e mais e melhor qualidade também”, disse, num almoço na Huíla, repetindo depois para outras plateias que é preciso trazer mais empresários de outros setores que não apenas a construção civil, para outros lados que não apenas Luanda. Mais, mais, mais.

Os 35 acordos bilaterais de cooperação que foram assinados pelos dois Estados no espaço de seis meses — aí Marcelo faz questão de dividir os louros com o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros, que tem passado despercebido nesta viagem — não chegam. João Lourenço chegou a dizer que “a sensação que dava era de que tinham esgotado os domínios de cooperação”, mas que iam encontrar outros. Mais, mais, mais. O Presidente angolano garante que está empenhado neste intercâmbio e entreajuda e não quer que nenhuma questão perturbe a lua-de-mel.

O grande candidato à perturbação é a questão das dívidas de Angola às empresas portuguesas, mas também isso João Lourenço garante que não vai beliscar um milímetro: “A dívida certificada para com empresas portuguesas ainda por liquidar está a ser resolvida com pragmatismo e espírito de responsabilidade, para não ser um fator de estrangulamento das relações de cooperação que pretendemos aprofundar”.

Marcelo também não está preocupado: dois terços da dívida certificada já foi paga, garante, com um sorriso. O resto, “segue a todo o vapor”. As televisões e rádios angolanas abrem os noticiários com a visita de Marcelo, e acompanham a visita em permanência. Vê-se e ouve-se falar de otimismo, de afeto, de amor. Marcelo veio com tudo na bagagem. E a verdade é que Angola não lhe teria pedido para trazer nada mais: isso parece chegar.