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José Manuel Fernandes. O Bloco tem 22 anos mas já está muito velho
O que teve o Bloco a dizer-nos de novo nesta Convenção? Nada. Bem espremido, nada de nada. Negociações com o governo do PS? A mesma agenda do ano passado. Ambições políticas? A mesma conversa sobre um ministério para Mariana Mortágua. Novidades programáticas? A mesma ladainha sobre as leis laborais, o SNS, a banca e os serviços públicos. Caras novas? Nem isso: apesar de tudo Catarina Martins (47 anos) é hoje mais velha do que Cavaco ou Passos quando chegaram a chefes de Governo (ambos tinham 46 anos).
Dizem-nos que o Bloco endureceu o discurso e quer “desgeringonçar”. Na verdade, o Bloco está prisioneiro de uma situação que ele próprio criou, e que é a armadilha mediática em que medrou anos e anos a fio. A geringonça, como todos já entendemos, foi desde a primeira hora um logro – a ilusão do fim da austeridade em troco de meia dúzia de medidas emblemáticas, da paralisia (ou da reversão) das reformas e do silêncio cúmplice das esquerdas. Durou enquanto durou, ou durou enquanto não se tornou obscenamente evidente. A partir desse momento, o Bloco tinha de exigir mais, mas o PS não queria nem podia dar mais. Sobretudo não queria nem podia dar mais para a fogueira mediática do Bloco. Preferiu, e prefere, a serenidade mais profissional do PCP. Até porque sabe que esta tem uma base social que falta ao Bloco.
Resta agora ao Bloco levantar o fantasma de sempre – o da “extrema-direita”, o do “fascismo”. E acha que o pode fazer em discursos onde mistura o patuá cada vez mais analfabeto dos analistas que se entretêm a falar dessa entidade mítica que é o “eleitorado do centro” com proclamações sobre as leis laborais, um tema que diz cada vez menos a boa parte do eleitorado urbano do Bloco.
Como já sucedeu a tantos partidos parecidos, o Bloco vai continuar a achar que falar de “esquerda” e dizer que os “problemas se resolvem à esquerda” é uma espécie de fórmula mágica para cativar o eleitorado e enfeitiçar o PS. Como esses partidos parecidos, um dia vai descobrir que está a falar sozinho, entre velhos ou então para marginais.
Helena Matos. BE, o grande costumizador do PS
O guião é o do costume: os líderes do BE sobem ao palco e, como se estivessem num exorcismo, prometem vencer a direita, a extrema-direita e todas as variantes reais e imaginárias da direita. Ou, mais propriamente, aquilo que o BE identifica como a direita e que, na prática, podem ser tudo e todos que num determinado momento entravam as pretensões do BE.
Findo o momento de catarse o dilema é outro: o que vai o BE fazer com o PS? No processo de mexicanização do país pelo PS,o BE assume-se como o item “mais picante” dos menus dos restaurantes mexicanos. Com o BE, o governo PS seria “mais”: “haveria mais SNS”; “haveria mais política de esquerda”… Ora, um partido cujo eixo ideológico é a relação que mantém com outro não é bem um partido, mas mais um grupo de sensibilidades com faro para a gestão de oportunidades: há quem ganhe a vida a costumizar móveis IKEA, o BE apostou nessa área só que na política. Costumiza o PS à esquerda. A ideia é boa, mas tem riscos: o que pode acontecer ao BE se a linha no PS que lhe é mais próxima ascender à liderança?
Esta é uma pergunta que os dirigentes do BE certamente se fazem mais do que uma vez ao dia. As outras têm resposta mais fácil, quanto mais não seja porque o passar do tempo impõe as respostas: tornou-se óbvio que na próxima convenção do BE já terá de se ter resolvido o problema daquilo que Mariana Mortágua podia ser (esta fixação acaciana de Louçã em Mariana como futura ministra das Finanças começa a ser ridícula, mas desgraçadamente Louçã nunca teve noção do ridículo); do que Marisa Matias vai deixar de ser (a candidata oficialmente jovem do BE a Presidente da República); e do que Catarina Martins vai passar a ser (a nova senadora da extrema-esquerda, candidata do BE a Presidente da República e a outros lugares institucionais). Catarina Martins é uma actriz que ninguém se lembra de ter visto representar, tornou-se líder numa golpada improvável, mas duvido que outro à frente do BE tivesse feito melhor.
Quanto aos portugueses, esta heteronímia das várias esquerdas do Bloco de Esquerda vai tornar-nos a vida ainda mais difícil: os bloquistas vão multiplicar as acções ruidosas nas ruas (como a que teve lugar esta semana junto ao aeroporto, em que uns betinhos vestindo camisolas com o Che gritavam que não devemos andar de avião) ou de ocupação de casas (como acontece em Lisboa) enquanto os seus dirigentes permitem ao PS ser governo. Para o BE, é um modo de vida interessante. Para os portugueses um factor de crispação numa vida que vai ser cada vez mais difícil.
Alexandre Homem Cristo. O Bloco dos entalados (pelo ódio à direita)
Os bloquistas passaram o fim-de-semana à volta de uma pergunta: o BE serve para quê? Ouviram-se duas respostas e o problema dos bloquistas é que as duas respostas são por vezes incompatíveis. A primeira não é original: o BE serve para condicionar a governação do PS e influenciar maiorias de esquerda. A segunda resposta diz que o BE serve para impedir que a direita volte a governar (ou seja, assegurar sistematicamente que as maiorias parlamentares de esquerda travam governos minoritários de direita, mantendo o PS no poder). Agora o problema: enquanto o PS souber que o BE está indisponível para permitir um governo liderado pelo PSD, o poder negocial do BE à esquerda pulveriza-se e as suas ameaças aos socialistas soam a mau bluff. Por mais que gritem contra o PS, o ódio à direita bate mais forte nos corações bloquistas.
O erro na análise das intervenções dos bloquistas seria escutar nos ataques ao PS uma demonstração de força. Pelo contrário: o BE está apavorado com a possibilidade de cair na irrelevância e de se tornar um “fantoche” dos socialistas. E tem razões para isso. Primeiro, a sua influência é cada vez menor — votou contra o último Orçamento e isso não teve impacto na governação do PS. Segundo, colocou-se na dependência estratégica do PS — todos os seus objectivos dependem do PS (coligações governativas) ou reforçam o poder dos socialistas (governo minoritário PS para impedir a direita de governar).
Ou seja, esta convenção revelou um BE entalado numa situação (aparentemente) impossível: quanto mais garantir que futuramente impedirá a direita de governar, mais forte será a posição do PS; quanto mais forte for o PS, menos influente será o BE nas suas negociações. Em 2018, na Convenção anterior, o BE preparava-se para integrar uma coligação governativa e entreteve-se a escolher pastas ministeriais. Em 2021, o BE está a viver a ressaca da euforia gerada pela geringonça e da desilusão pelo fracasso dos seus planos: afinal, o PS consegue obter do BE aquilo que dele necessita sem lhe oferecer uma migalha de poder. Qual Ícaro do sistema partidário, o BE aproximou-se demasiado do sol e as suas asas derreteram.
Reconheça-se a ironia: o ódio do BE à direita está na sua natureza de esquerda radical, mas é também hoje a razão pela qual o BE não se consegue afirmar politicamente junto do PS. É quase um beco sem saída. Quase, porque a saída existe, mesmo que o BE não a tenho querido usar: para não ser “fantoche” do PS, o BE tem de abandonar o seu compromisso de que, no que depender dos bloquistas, a direita não volta ao poder. O PS já enterrou a geringonça. Se o BE quer voltar a ser levado a sério, tem de a enterrar também.
João Marques Almeida. O dilema do Bloco
O Bloco de Esquerda enfrenta uma encruzilhada muito complicada: quer ser simultaneamente um movimento revolucionário e um partido de poder. Seria possível resolver o problema se houvesse uma revolução marxista em Portugal. Mas como não parece provável assistir a essa revolução nos tempos mais próximos, o Bloco está condenado a viver com o dilema.
Os dirigentes do Bloco têm consciência da enorme dificuldade de resolver esse dilema. Elas (e eles) assistiram ao que aconteceu noutros países. Ainda durante a presidência de Lula, na primeira década do século, o movimento brasileiro da Quarta Internacional dividiu-se, com uma parte a integrar o governo e os mais radicais a atacarem a rendição ao capitalismo dos moderados, juntando-se ao PSOL na oposição a Lula. Na Grécia, os irmãos revolucionários do Bloco afastaram-se do Syriza, acusado pelos ortodoxos lá do sítio de deriva social-democrata. Finalmente, em Espanha, o fundador histórico do Podemos, Pablo Iglésias, pagou um preço elevado pela coligação com o PSOE, com um desastre eleitoral em Madrid.
Mas o Podemos também é um exemplo para o Bloco noutra questão igualmente fundamental. O Podemos só se juntou ao governo socialista espanhol depois de neutralizar os herdeiros do partido comunista, integrando-os na prática no partido de Iglésias. O Bloco nunca será capaz de integrar o PCP, o que agrava o seu dilema. Num governo com o PS, corre o risco de ver o seu eleitorado mais radical e anti-sistema regressar ou juntar-se aos comunistas.
O Bloco enfrenta o dilema com um discurso mais radical do que a sua praxis política. Também lhe podemos chamar hipocrisia revolucionária ou burguesa, conforme as preferências. Durante os quatro anos da geringonça, o governo socialista vendeu o Novo Banco, o Fundo de Resolução injectou dinheiro no banco, e o Bloco aprovou todos os orçamentos. Os ataques que fazem agora ao Novo Banco são apenas mais um exemplo da hipocrisia do Bloco.
Os dirigentes do Bloco querem ir para o governo, mas sabem que nesse dia o partido se divide e que o PCP crescerá. Como Louçã sabe muito bem, se um dia Mariana Mortágua se tornasse ministra das Finanças deixaria de ser Mariana Mortágua. Se quiser continuar a ser Mariana Mortágua, nunca poderá trabalhar no Terreiro do Paço. A vida dos revolucionários não é fácil.
Miguel Pinheiro. O BE quer que Deus abençoe e guarde o PCP
1. No discurso de abertura da convenção do Bloco de Esquerda, Catarina Martins acusou o PS de “ter fechado a porta a uma solução de estabilidade para quatro anos”. E, dito isso, anunciou: “É a sua escolha, nós abriremos outra porta”. A porta que o Bloco de Esquerda pretendeu abrir nesta convenção foi, como se percebeu, a porta da rua, onde planeia estar em confortável oposição ao PS.
Por um lado, há as realidades da vida: o BE já percebeu que António Costa não lhe dará nada a que não esteja estritamente obrigado — e aquilo a que estará estritamente obrigado será sempre pouco. Por outro lado, há os exemplos internacionais: em Espanha, o Podemos, partido-irmão do BE, foi para o Governo com os socialistas e acabou sem votos, sem chão e sem líder. Assistindo a isso, o Bloco tirou notas e tirou conclusões. Como didaticamente explicou o major Mário Tomé, o Bloco deve estar sempre “do lado da luta dos explorados e espezinhados”, “mesmo que isso não deixe a Mariana ser ministra das Finanças”.
Esta estratégia de regresso à oposição só enfrentaria dificuldades se um dia o BE tivesse de optar entre o apoio expresso e subserviente a um governo minoritário do PS ou a ameaça do “regresso da direita”. Mas, como notou António Filipe no Facebook, enquanto os comunistas mantiverem a “atitude responsável” de ajudar os Orçamentos de António Costa, o BE poderá evitar ter de escolher entre um lado e o outro.
Nestes dias, ficou claro que a negociação do próximo Orçamento será uma grande encenação. Este fim de semana, o BE exigiu ao PS aquilo que o PS não quer, nem pode, dar-lhe — os socialistas não pretendem implodir o sistema bancário nem desenterrar as velhas leis laborais. O Bloco será, por isso, novamente o partido do contra. Como bem sabe o próprio Francisco Louçã, a ministra Mariana Mortágua vai ter de esperar.
2. O Bloco está muito preocupado com o crescimento e os votos do Chega. Mas continua a cometer os mesmos erros de sempre. Fernando Rosas, procurando ocupar o cargo de Grande Sacerdote da Pureza das Ideias, exigiu “outra atenção à luta no plano ideológico”. E o partido parece pronto a seguir acriticamente o seu conselho. Nas longas horas que durou esta convenção, os bloquistas falaram de todas as ideias que preocupam os militantes de Lisboa e Porto, os trabalhadores de Lisboa e Porto e os eleitores de Lisboa e Porto. Numa das moções apresentadas à convenção escrevia-se que o partido não consegue chegar “às pessoas que moram nos bairros, nas freguesias, nas cidades e que só conhecem o Bloco através da televisão”. Aparentemente, ninguém a leu. Se a leu, não a compreendeu. Se a compreendeu, não se importou.
Rui Pedro Antunes. A esquerda fillet mignon
O Bloco não desenrolou o novelo no qual se emaranhou, entalado entre a tentação de querer ser Governo (ou influenciar a governação) e a necessidade de ser oposição (é no protesto que está a força do partido). Perante isto, de forma intencional, o Bloco não se definiu.
Os bloquistas colocaram um pé na porta para um acordo com Costa, mas não conseguiram convencer ninguém que queriam mesmo entrar. A Convenção foi mais eficaz a definir o que o Bloco não é: não é social-democrata (as influências marxista e trotskista resistem), não é um parceiro com que o PS possa contar para o Orçamento, não é partido da oposição tout court, como nos tempos de Passos ou Sócrates.
O Bloco, tantas vezes rotulado como esquerda caviar, apresentou-se a querer o melhor de dois mundos: quer ser visto como um partido responsável que se senta com o Governo, mas também como uma espécie de watchdog da ação do Governo. O partido quer o fillet mignon do combate político: mostrar que o que é conquistado é por influência do BE, o que está mal é porque o Governo não fez o que o BE exigiu. A receita é a mesma sobre Lisboa: o que é bom foi por influência do BE, o que está mal é culpa de Fernando Medina.
Mas se o Bloco não se definiu, da ombreira da porta viu que o céu tem um limite. Há dois anos Francisco Louçã — citando Buzz Lightyear, personagem do filme “Toy Story” — apontou para o infinito e mais além. Agora, o partido parece mais convencido de que o infinito afinal tem teto e há limites para o crescimento do BE, mesmo que Catarina Martins tenha repetido que é a terceira força política.
A animação de Louçã evoluiu agora para sugerir que Mariana Mortágua vai ser ministra das Finanças. Mas foi mais em modo “senhor cabeça-de-batata”, personagem mais errática e que gera confusão.
No fim do dia, mantém-se o novelo e a novela. O Bloco vai continuar a fingir que quer negociar com o PS. E o PS vai continuar a fingir que o Bloco conta. Até porque o BE só aceita fillet mignon e na mesa do Governo há pouco mais do que restos de ontem.