“Belfast” abre com um cliché. Estamos na rua Mountcollyer, no norte de Belfast (Irlanda do Norte) e a data é 15 de agosto de 1969. Por todo o lado há crianças a brincar, com espadas e escudos improvisados de paus e tampas de caixotes do lixo. O barulho dos risos é quase ensurdecedor e o ambiente é caloroso. O recado de uma mãe para o filho vir para casa passa de boca em boca, entre vizinhos amistosos e crianças que provavelmente temem ter de ir tomar banho e ser esfregados furiosamente atrás das orelhas pelas mães.
Mas quem for ver “Belfast” e souber o momento histórico em que se passa, tem a certeza que o idílio será destruído em breve — e assim acontece. De repente, a violência irrompe pelo ecrã. Uma multidão furiosa invade a rua Mountcollyer e destrói tudo à sua passagem. Janelas são partidas, cocktails molotov lançados. Os gritos de “Católicos, rua!” repetem-se alto e os sons dos risos infantis são rapidamente substituídos por guinchos de aflição. O rosto aterrorizado de Buddy (Jude Hill), o rapaz de 9 anos que protagonizará o resto deste filme, é filmado em close up para transmitir a incompreensão do que está a ver. Torna-se claro e imediato para nós que a sua vida nunca mais será a mesma a partir daquele momento.
Como dizíamos, um cliché. Nada que surpreenda quem conhece a História da violência sectária na Irlanda do Norte, os “Troubles”, já tantas vezes captada em filme — basta lembrar “Em Nome do Pai” (de Jim Sheridan) ou “Fome” (Steve McQueen), para citar apenas alguns exemplos. O retrato de um conflito que matou mais de três mil pessoas e deixou feridas ainda por cicatrizar no canto norte da ilha da Irlanda é sempre um leitmotiv atraente para cineastas que querem refletir sobre as grandes questões da Humanidade: Como se explica a raiva? Porque uns se tornam agressores e outros vítimas? De que forma a violência alimenta a própria violência?
[o trailer de “Belfast”:]
Kenneth Branagh, porém, não se debruça sobre nada disto. A hora e meia de filme que se segue passa-se durante os “Troubles”, sim, à medida que o realizador acompanha a história de uma família protestante (a história da família de Branagh, na verdade) que não se quer envolver na violência para onde se vê arrastada. Empatizar com eles é fácil, até porque parecem estar logo do lado certo da História, ao recusarem-se a odiar os vizinhos católicos. Mais um cliché, diriam alguns.
Mas, no entanto, a política não é o cerne do filme. Não há relatos detalhados dos acontecimentos dos dias seguintes por toda a Irlanda do Norte. Ninguém menciona as UVF ou o IRA. As relações com o exército britânico são reduzidas a um pedido a dois soldados para que ajudem a carregar um sofá. Ninguém comenta o facto de, menos de um mês depois da rua de Buddy ser invadida, o bairro onde vivem ter passado a fazer parte das chamadas “no-go zones”, poucas semanas antes de a violência voltar a eclodir em Belfast a 27 de setembro. Sim, ouve-se o primeiro-ministro Harold Wilson na televisão a falar sobre a Irlanda do Norte e há barricadas a serem construídas no início da rua. Mas os “Troubles” em Belfast são sempre ruído de fundo, porque o foco está sempre no rosto de Buddy.
A decisão de Branagh de focar o filme mais íntimo da sua carreira no impacto pessoal na vida da sua família, recusando envolver-se na dimensão mais política dos “Troubles”, já lhe valeu muitas críticas no Reino Unido. O Guardian chamou-lhe “uma visão de caixa de chocolates” e concedeu-lhe apenas duas estrelas. O Independent compara o filme a Roma, de Alfonso Cuáron, mas diz que, ao contrário do mexicano, Branagh “não parece tão desejoso de interrogar as suas próprias memórias ou reconhecer como o véu protetor dos pais pode afastar uma criança da realidade”.
O antigo diretor do Daily Telegraph, Max Hastings, diz que Belfast é “demasiado bonzinho”. Num artigo onde recorda a sua experiência como repórter nas ruas da capital norte-irlandesa no início dos “Troubles”, Hastings acusa o realizador de esconder o lado feio do conflito. “Na noite de 14 de agosto de 1969 — 24 horas antes do início da história contada no novo filme de Kenneth Branagh — vi em Belfast um rapaz de 9 anos, com a mesma idade que o adorável protestante de celulóide chamado “Buddy”. A grande diferença entre os dois é que o meu Patrick Rooney era um católico a quem faltava metade da cabeça, por ter sido retirada por uma bala de metralhadora da polícia”, escreve, referindo-se a uma das primeiras mortes mais marcantes dos “Troubles”.
A crítica é compreensível num país que ainda não sabe lidar com o trauma do que aconteceu em 30 anos de violência civil. O Brexit trouxe ao de cima os velhos ressentimentos que opõem unionistas e nacionalistas, protestantes e católicos. Ali ainda se discutem amnistias, políticos locais fazem homenagens a membros do grupo terrorista IRA e não são conhecidos todos os detalhes da violência das operações militares e dos serviços secretos britânicos.
“Belfast” não faz nenhum julgamento moral sobre o passado, a não ser sobre o envolvimento de alguns membros da comunidade protestante, ali retratados num único vilão caricatural que diz ao Pai “Queremos limpar um bocado o bairro. De certeza que não queres ser o forasteiro da rua”. Mas, tendo em conta que o filme é contado pelos olhos de Buddy, será que queremos mesmo uma grande reflexão sobre a natureza do conflito? Afinal, o pai e a mãe são apenas Pa (Jamie Dornan) e Ma (Caitríona Balfe), sem nome próprio. O vilão é Billy Clanton (Colin Morgan) — mas aos olhos de Buddy nunca passará de um vilão que ameaçou o seu pai.
Kenneth Branagh preferiu contar como a violência mudou a sua vida e a de muitos outros, não de formas diretas. Filho de um pai canalizador e marceneiro — a mesma profissão de Pa — e de uma empregada de balcão numa loja de fish and chips, Kenneth tinha exatamente 9 anos quando os “Troubles” começaram. A sua família também partiu da Irlanda do Norte no ano de 1970, como a de Buddy, à procura de uma vida mais tranquila em Inglaterra. E o realizador não esconde os elementos auto-biográficos, desde a vez em que foi com a avó assistir a Um Conto de Natal no teatro ou ao facto de também ele ter roubado um chocolate Turkish Delight da mercearia do bairro.
“Acho que queria recuar e apertar a mão àquele rapaz de 9 anos e queria tentar compreender os pensamentos e sentimentos e o sacrifício que a minha família fez ao sairmos de Belfast”, revelou à Newsweek. Um projeto nascido da Covid-19, fruto de um confinamento que fez muitos, como Branagh, repensarem a sua vida.
Assim se explica que, mais do que um filme de explosões nas ruas, Belfast seja um filme de interiores. Buddy estuda matemática para se aproximar da rapariga por quem está apaixonado, vê o “Star Trek”, vai à missa obrigado, passa muito tempo com os avós paternos (os incríveis Judi Dench e Ciarán Hinds), delira quando vai ao cinema — os únicos momentos de cor em todo o filme a preto e branco são precisamente aqueles que saem do ecrã do cinema ou do palco, num toque ainda mais autobiográfico de um ator e realizador que viria a singrar no teatro e em Hollywood.
Mas o conflito está presente. Na televisão que toca em fundo, nos vizinhos católicos que abandonam o bairro — um problema ainda hoje real numa Irlanda do Norte altamente segregada —, nas conversas com a prima mais velha sobre como alguém se pode juntar a um gangue. Nada simboliza melhor o pairar dessa realidade nunca aprofundada (talvez porque nunca compreendida inteiramente por Buddy) do que a história do seu irmão Will. Adolescente, é recrutado pelas milícias do bairro para transportar “garrafas de leite”, que mais não são do que a matéria-prima para cocktails molotov. Buddy nunca compreende o que está em causa, nem pergunta ao irmão, demasiado absorto no seu dia-a-dia de criança preenchido por outros afazeres. “Belfast” pelos olhos de Will, seria, certamente, muito mais político — um provável relato asfixiante de uma cidade onde é impossível não tomar partidos ou escolher lados, à semelhança do espantoso Milkman (ed. Porto Editora) de Anna Burns.
Mas Buddy não é Will, é Buddy. Aquilo que recorda são memórias tingidas pela nostalgia de uma infância ainda feliz. Não compreende as conversas sobre “impostos em atraso” e “dívidas”, não compreende o choro da mãe que apanha à socapa, não vê no sobrolho carregado do pai a preocupação nem entende os olhares trocados pelos avós em surdina. Buddy sabe apenas que gosta de ouvir os conselhos do avô sobre como conquistar uma rapariga, que admira o maxilar firme do pai quando enfrenta os bullys, que a mãe é um poço de beleza e calma sentada a descascar batatas à porta de casa. Nada comprova mais essa visão do que a sequência de dança entre Pa e Ma perto do final do filme, que mais não é do que a felicidade de uma criança de ver os pais apaixonados, esquecendo as discussões que não ouviu pela calada da noite.
A única consequência da violência que vai penetrando na sua vida são os pedaços de conversas que ouve e que tornam real a possibilidade de a família partir de Belfast. Afinal, a violência afeta-os e começam a equacionar partir — para destinos longínquos como Sydney ou Vancouver ou para a velha e familiar Inglaterra, como tantos outros antes deles e tantos outros depois?
É o exílio, e não a violência, a grande tragédia de “Belfast” — embora naturalmente provocada por esta. “Tudo o que os irlandeses precisam para sobreviver é de um telefone, um copo de cerveja e a partitura do Danny Boy”, diz a certa altura do filme a tia de Buddy. O tom ligeiro contrasta com a letra da canção, que a tia Violet (Josie Walker) cantará pouco depois, em mais um convívio familiar regado a risos e álcool:
“When winter’s come and all the flowers are dying
And I am dead, as dead I well may be
You’ll come and find the place where I am lying
And kneel and say an ‘Ave’ there for me”
Lentamente, a realidade vai-se infiltrando pela vida de Buddy, como quando ouve a confissão contida da avó que nunca partiu porque “não havia estradas para Shangri-La na nossa zona de Belfast”.
É essa reflexão sobre o exílio que tanto marca a História das duas Irlandas que deixa a marca mais profunda em “Belfast”, bem explícita na sua dedicatória final: “Para aqueles que ficaram. Para aqueles que partiram. E para todos os que se perderam.” Talvez por isso é que Kenneth Branagh recordou numa entrevista como um iraniano e um nigeriano lhe disseram que o filme também contava as suas histórias. A experiência de partir, de abandonar o sítio que nos faz ser quem somos, é universal. E pode também ser o maior trauma da infância de alguém, um corte que deixa as nossas Belfasts idealizadas nas memórias que carregamos, menos sujas de beatas, mijo e sangue do que realmente eram.
O Reino Unido, que ainda hoje tem dificuldade em olhar para a Irlanda do Norte como mais do que uma zona mártir do conflito, pode querer mais de “Belfast”. Nós, que estamos longe e procuramos no cinema uma experiência universal onde nos revermos, podemos ficar satisfeitos. No escuro do cinema, cada um de nós pode chorar o momento em que também fomos um pequeno Buddy e vimos a nossa infância terminar.