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O futebol inglês pode estar familiarizado com casos extra-conjugais, racismo ou problemas com drogas. Mas tudo se complica quando um grande escândalo começa com uns micro óculos de sol. A 22 de dezembro de 2018, afastado por lesão, Héctor Bellerín nem precisou de entrar em campo para ser apupado. “Assim vestido parece que vai resolver um crime às duas, vender uma pintura às três e roubar um banco às quatro”, lia-se entre a chuva de comentários que à época acompanharam as notícias. Nenhum deles salpicou a gabardina creme (desculpem, trench coat), o cachecol com o icónico xadrez Burberry, um gorro, e as tais lentes escuras da Blyszak, empoleiradas na ponta do nariz, que se tornaram virais a partir da bancada onde assistiu ao jogo.
Já ninguém se lembra que a equipa da casa recebeu e venceu o Burnley por 3-1 no Emirates, mas a imagem daquele look perdura entre os mais desatentos, apanhados de surpresa pelo estilo irreverente. Para o resto do mundo, é mais que certo que se procurar pelo nome do catalão que reforçou o Sporting no motor de busca, tanto vai desaguar aos jornais desportivos como ao moodbard do Pinterest (onde surge com um crop hoodie ao lado de Marcelo (o jogador, calma) ou a escolher a próxima tatuagem — uma das últimas, um palhaço na barriga, foi feita pela namorada, Elena, tatuadora e assistente social que o acompanhou à gala da GQ que o consagrou homem do ano).
Em janeiro daquele ano, já o espanhol desfilava o seu casaco Christopher Shannon pela Londres Fashion Week e trocava os pitons por uns cómodos loafers da Gucci. Ao seu lado, nomes como Toby Huntington-Whiteley ou Erin O’Connor seguiam as novidades servidas pelo designer Oliver Spencer. No ano anterior, ocupava a fila da frente ao lado de Dizzee Rascal e assistia ao desfile de J.W. Anderson. “A maior parte das pessoas não percebeu”, diria sobre o episódio da bancada. Mas é simples. Bellerín não gosta só de futebol, também gosta de outras coisas. E essas coisas incluem moda, arte e ativismo. “Algumas pessoas dizem que os micro óculos estão acabados mas adoro os que são tipo Matrix”, garantiu ainda em janeiro de 2019, à Vogue espanhola.
Héctor, o orador e outros passatempos
Há 200 anos que a Oxford Union é um dos espaços de debate mais prestigiados do mundo, também conhecido como “último bastião da liberdade de expressão”. Habituada a reunir oradores proeminentes da política à academia, passando pela cultura popular, foi preciso esperar até fevereiro de 2018 para receber o primeiro futebolista no ativo da Premier League. O convidado foi Héctor Bellerín, que à época vestia a camisola do Arsenal. E a roupa do lateral direito acabou por ganhar terreno ao seu desempenho dentro das quatro linhas. “Muitas pessoas me contactam a pedir para eu me focar no futebol, apenas pelo facto de aparecer em eventos de moda”, desabafou. “Digo simplesmente para não se preocuparem; sou humano, tenho hobbies, paixões, mas também sou um jogador de futebol, e esse sempre foi o meu maior foco”, rematou o atleta no evento em que entrevistador e plateia se revezam interpelando as celebridades.
Da independência da Catalunha à tecnologia, a conversa fluiu por diferentes domínios, como aliás se revela a vida e gostos ecléticos do defesa emprestado ao Sporting, que a revista Forbes chegou a incluir, em 2020, na lista dos jovens mais poderosos com menos de 30 anos, entre personalidades como Greta Thunberg. Aliás, Héctor, que é vegan desde 2017, conduz um Tesla, tem o ambiente como uma das suas causas, e prometeu plantar três mil árvores na Amazónia por cada vitória em campo. Em dezembro, num número sobre as alterações climáticas, revelava a capa que protagonizou para a Season zine, publicação impressa sobre futebol, moda e outros tópicos.
“Ele não é o futebolista típico”, alertava no arranque do seu texto a Luxury London, quando serviu os condimentos para emular o estilo único de Bellerín, o futebolista formado em Marketing que doou 50 libras por cada minuto jogado no Europeu de Sub-21 às vitimas do incêndio na Torre Grenfell em Londres, que aproveitou a pandemia para melhorar a queda para a fotografia e concentrar-se na sua agência criativa, a B-Engaged, que fundou com um amigo; e ainda para abordar temas como o direito ao aborto ou as causas LGBTQIA+
“Eu sei que muitas pessoas que apoiam clubes de futebol não se importam com moda”, disse Bellerín. “Para eles, pode ser muito estranho ver alguém que parece muito diferente. Mas aprendi a não ler os comentários.”
Instagram, capas de revista e a moda também é para meninos
Numa selfie frente ao espelho, ou nos bastidores de um concerto na Brixton Academy, com J Balvin, ei-lo muito para lá da bola – e mesmo quando o cenário é um estádio e um retângulo verde, consegue fazer-se fotografar ao lado de um criador de moda, caso de Guillermo Andrade, o guatemalteco que agita o streetwear de Los Angeles com a sua linha 424 e que assinou os fatos das equipas masculina e feminina dos gunners.
Daí que, pelo menos nos últimos anos, seja mais provável encontrá-lo entre editoriais e produções das principais bíblias do lifestyle. “Não é uma máscara, é um estilo de vida”, escreve a páginas tantas num dos seus posts. Basta passar pelo Instagram pessoal para perceber do que falamos. Das imagens na companhia de Giorgio Armani às sessões de fotos em Shoredich, é fácil perceber o acumulado de rótulos nos últimos tempos. “Já foi apelidado de “o jogador de futebol mais bem vestido do mundo” (Highsnobiety), “o jogador de futebol mais ousado do jogo” (Sr. Porter) e “o pioneiro dos pioneiros do cruzamento entre moda e futebol” (i-D). Ele até conseguiu usar um trench coat de PVC transparente da Maison Margiela — que combinou com um bucket hat da Prada no desfile de outono de 2019 de Christopher Raeburn — sem parecer um tarado”.
As palavras são do The New York Times, que em novembro de 2021 seguia os passos do defesa e influencer que aos 27 anos regressara a Camp Nou depois de mais de uma década em Londres e entrava em casa do “homem com mais estilo do futebol”, fotografado por Salva López com o seu gato Hanky ao colo. “Mesmo de óculos escuros Gucci, Héctor Bellerín não consegue ir do seu apartamento até a garagem onde mantém o seu Cupra Born elétrico sem causar polvorosa”. Compreende-se, e não será apenas pelo seu estilo peculiar, marcado naquela altura ainda por um mullet muito rock n roll, penteado que conheceu o seu auge em outras eras, e que atualmente cedeu lugar a uma versão bem mais curta. “Ser um futebolista em Barcelona é como ser uma Kardashian em Calabasas, Califórnia”, admite ainda o jornal.
Se no seu apartamento prevalecem obras dedicadas ao designer Kenzo Takada, às fotos de Paul Outerbridge ou a Andy Warhol, é a partir do bairro de Dreta de L’Éixample, a cerca de 10 minutos de distância, que o jogador que contribuiu como curador para uma exposição de fotos de crianças sírias num campo de refugiados na Jordânia, mantém o seu estúdio, indiferente a rótulos cada vez mais obsoletos. “Como seres humanos, estamos sempre a arrumar tudo dentro de caixas. A moda provavelmente está numa caixa marcada como ‘feminina'”, reconhece Bellerín, partilhando ainda que os mesmos colegas que começaram por troçar do seu estilo acabaram por pedir inspiração. “No começo riram-se, depois foi na boa. Agora querem fazer parte disto.” Ame-se ou odeie-se, o facto é que ninguém fica indiferente. A dsection, por exemplo, retirou a roupa da equação e pô-lo na capa de abril de 2022 em tronco nu.
Mas de onde vem o gosto pela moda? A semente está na filiação. Filho de uma costureira, quando Héctor não estava na escola ou a brincar com a irmã mais velha, Gisela, fazia bainhas a calças. A avó tinha uma pequena fábrica nos arredores de Barcelona e Bellerín recorda-se ainda de limpar o chão em troca de doces. “Na verdade, não sei a coisa mais cara que já comprei. Provavelmente seria um casaco, porque eu realmente não gasto muito em outras coisas. Muitos jogadores adoram carros. Muitos jogadores adoram os mercados de ações. Para mim, é a moda. A minha mãe e a minha avó fizeram roupas a vida toda. A minha avó tinha a sua própria fábrica. Quando não havia crianças para jogar futebol no meu parque local, ia para a fábrica da minha avó. Ela costumava dar-me o equivalente a duas libras se eu limpasse todos os fios e restos do chão. Até aprendi a costurar.”, contou, na primeira pessoa, à Wealthsimple Magazine.
Héctor abordou o tema das finanças pessoais, do investimento precoce além relvados, e admitiu que a moda está longe de ser um simples passatempo. “Tornar-me um designer é um objetivo de longo prazo. Eu vi a minha mãe fazer isso desde que eu era muito jovem e vi algumas das peças que ela foi capaz de criar. Não gostaria de apenas estampar uma t’shirt com o meu nome e colocá-la online. Quero fazer algo que seja diferente, que as pessoas possam apreciar, não apenas por quem eu sou, mas pelo que essas peças são.”
Rodear-se dos próximos é outro dos seus traços. Em setembro de 2022, numa produção para a capa da revista Mundial, o ícone de estilo que dispensa stylists chegou com dois amigos, em vez de assistentes. E trouxe a sua própria roupa de casa, incluindo um par de calças que fez com a mãe.
As colaborações e os desfiles (e ainda um fenómeno no Tik Tok)
Já em abril de 2019, a edição britânica da Vogue consagrava o “jogador de futebol com mais estilo”. Mas até o “jogador de futebol com mais estilo” teve os seus momentos cliché. O miúdo que treinou no Barcelona desde os 8, rumou a Inglaterra com 16 para alinhar pelo Arsenal, onde rapidamente ascendeu à equipa principal, depois de uma passagem pelo Watford. Fiel à tradição entre os pares, o primeiro passo seguinte foi comprar um Mercedes, conduzir até ao centro comercial Westfield, e trazer de lá um cinto da Gucci e uma bolsa da Louis Vuitton. “Agora, sou mais cuidadoso. Aprendi que o dinheiro vem muito rápido, mas sai ainda mais rápido.”, admite o homem que combina o melhor dos street wear com o garimpo de preciosidades nas lojas vintage.
Para a história ficam instantâneos como o dia em que conjugou um gorro amarelo Fear of God com um blusão de ganga e umas calças de xadrez Balenciaga. Ou um top Puma com calças de patchwork da Loewe e ténis da Acne Studio. Entusiasta de criadores como Craig Green ou Haider Hackermann, do seu círculo de amigos fazem parte outros designers cool, como Supriya Lele e Colm Dillane, da KidSuper. E já sabem que se estiver a assistir à partida da bancada, talvez seja com um boné preto Raf Simons com um logo da Atari. Os melhores momentos ao nível dos ténis? Também há listas sobre o assunto. Em novembro de 2019, numa produção para a Matchesfashion, um casaco Ann Demeulmesteer encontrava-se com uns ténis Jil Sander ou umas chelsea boots da Marni.
O estilo superlativo pode não resolver as lesões mas um telefone oportuno ajuda a esquecer que não se joga há 31 jogos. Bom, isso e o cenário azul do Mediterrâneo. Na primavera de 2019, Bellerín encontrava-se na Grécia quando recebeu uma chamada do amigo Virgil Abloh. O então diretor artístico da Louis Vuitton queria convidá-lo para desfilar na semana da Moda de Paris, com um conjunto rosa choque de calções e hoodie com pele de cobra. Ao The New York Times, lembra como ocupou a posição 22 na entrada para a passerelle e como o seu coração batia apressado na antecâmara desse momento de estreia. “Virgil inspirou a nossa geração”, disse Héctor sobre Abloh, que morreu com um cancro raro. “Mostrou-nos que não importa em que setor estamos – se temos a chance de fazer o que amamos, devemos agarrá-la com as duas mãos.”
No inverno de 2020, Bellerín criava assim a sua primeira linha de roupa, assente em pilares como a sustentabilidade, encontrando em Horacio González-Alemán, o seu parceiro de negócio. O design ficou a cargo de Israel Frutos e Quim Barriach, que desenvolveram uma coleção de 25 peças sem género, a que se deveria seguir um conjunto de acessórios como calçado, decoração, e artigos de cerâmica. Em fevereiro de 2021, envolvia-se em mais uma colaboração, agora com a sueca H&M, apadrinhando uma linha feita de materiais orgânicos e reciclados.
De Sir Bobby Moore a David Beckham, a edição britânica da revista GQ enumerava nessa altura as (parcas) referências quando o assunto é futebolistas com um estilo digno de nota, pelo menos os que atuam ou atuaram em Inglaterra. E apurava as lições de Héctor para construir uma identidade muito pessoal, que passa quase sempre por corrigir algumas falhas passadas. Ainda se lembra daquele look em que o New York Times disse que ele não parecia um tarado? “Arrepio-me quando olho para fotos minhas antigas, quando ia a semanas da moda, acho que nunca usaria isso agora. Era jovem e queria experimentar tudo. Uma vez usei um casaco de PVC Margiela, um blazer roxo, um bucket hat da Prada e ainda uns óculos muito pequenos. Olhando para trás, as peças eram giras, mas aquilo tudo junto era demais.”. Recusando comprar pele nova e apostando na circularidade das peças, Héctor confessou ainda que durante o isolamento usou as camisas antigas para fazer almofadas.
O gosto pela moda chegaria mesmo ao FIFA21, ao criar a primeira coleção Volta Football, inspirada pelas raízes na cultura do skate de Barcelona e no seu estilo de vida vegano. Já este ano, com o Mundial do Qatar em fundo, e Bellerín fora de campo, os fãs vibravam com a sua campanha para a Golf Gang de Tyler the Creator. Por tudo isto, é normal o frenesim nas redes e os mais de 4 milhões de seguidores que tem apenas no Instagram, onde tanto segue o Victoria and Albert como a conta Addicted to Humus, e é seguido por criadores nacionais como Alexandra Moura ou Behén. Ve-lo-emos em breve a vestir português?
Enquanto isso, a revelação de cinco curiosidades chegou e bastou para voltar a agitar as redes sociais — as da baliza, veremos. No Tik Tok dos leões, o camisola 19 anunciou ao mundo que além de comer verde e jogar de verde, também fala com plantas, tem um gato com três pernas, ouve rádio todas as manhãs, e apaga o despertador oito vezes por dia. Quem sabe tudo se torna moda. “Esta nova geração cresceu totalmente nas redes sociais, onde a estética é importante, para eles vestir bem e expressarem-se dessa maneira é importante. Eu sinto que estão a perceber que podem fazer isso, e só porque fazem isso não significa que sejam menos jogadores de futebol ou mais alguma coisa. São o que são.”, defendeu à Esquire. Como se escreveria na Versus nos idos de 2018, há muitas coisas erradas no futebol, “mas o estilo de vida de Héctor Bellerín não é um delas”.