A tese do Ministério Público partiu da existência de um alegado esquema, concretizado por Luís Filipe Vieira, que assentava em fomentar empréstimos a clubes mais pequenos para criar uma dependência económica. Tal como o Observador já tinha revelado, as suspeitas do MP prendiam-se com clubes como o Santa Clara, o Desportivo das Aves e o Vitória de Setúbal — todos com dificuldades económicas. Mas, no final, apenas subsistiu o caso de Vitória de Setúbal.
Na acusação agora conhecida, está em causa um alegado esquema de contratos simulados de cedência de três jogadores do Benfica ao Setúbal que permitiram a injeção de 1,6 milhões de euros que não eram devidos aos sadinos. O MP acusou Luís Filipe Vieira, então líder do Benfica, o ex-assessor Paulo Gonçalves e a Benfica SAD de um crime de corrupção ativa, enquanto Fernando Oliveira, Vítor Valente, Paulo Grencho e o Vitória Futebol Clube SAD foram acusados de corrupção passiva.
Tudo porque o objetivo do clube encarnado, segundo o MP, era obter vantagens desportivas através da manipulação de resultados dos jogos. A acusação, porém, apenas indica prova indiciária sem qualquer ligação direta a jogos concretos alegadamente manipulados ou até mesmo jogadores aliciados. Todas essas situações foram arquivadas.
Todos os arguidos foram ainda acusados de um crime de fraude fiscal qualificada.
Imputação de corrupção desportiva baseia-se apenas na consumação que deriva do acordo
O mais surpreendente do despacho de acusação subscrito pela procuradora Cristiana Mota, do núcelo do Porto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), é a ausência de referências de indícios em relação aos jogos concretos em que a verdade desportiva tenha sido alterada ou a tentativas ou consumações de aliciamento de jogadores para perderem jogos com o Benfica.
[Já saiu o terceiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio e aqui o segundo.]
O raciocínio da magistrada do DCIAP é eminentemente jurídico e baseia-se na lógica indiciária de que existiu um alegado acordo entre Luís Filipe Vieira e os dirigentes do Vitória que teve como objetivo “atribuir vantagens patrimoniais” ao Setúbal. Porquê? Porque os “arguidos sabiam” que a SAD do Benfica “tinha interesses dependentes da atuação do Vitória e que tal “seria susceptível de trazer” à Benfica SAD “vantagens de diversa natureza”, lê-se no despacho de acusação. E a existência de tal acordo, na perspetiva da procuradora, faz com que o crime se consume.
E que vantagens são essas? Não são vantagens. São “interesses que se poderiam materializar em ocasiões convenientes” e “que poderiam satisfazer objetivos ao nível dos resultados desportivos”. Para ser mais precisa, a procuradora Cristiana Mota diz que, no contexto dos “jogos de futebol profissional das competições oficiais”, a Benfica SAD “teria necessariamente a pretensão de obter, nos jogos entre ambas disputados, resultados que satisfizessem os respetivos interesses desportivos — o que estaria dependente também da prestação do Vitória Futebol Clube”.
Seja como for, concretiza a magistrada do DCIAP, “o interesse da Benfica SAD poderia materializar-se na obtenção de resultados favoráveis às suas pretensões desportivas, designadamente quando o Vitória Futebol Clube SAD disputasse jogos com os seus rivais diretos, altura em que poderia ter a disponibilidade de promover um desfecho em concordância com aquele interesse”.
Seja como for, enfatize-se novamente, não há uma única referência no despacho de acusação aos casos de corrupção ativa e passiva concretos.
O caso do guarda-redes Bruno Varela: o primeiro exemplo do “plano criminoso”
O esquema que terá beneficiado o Setúbal terá servido essencialmente para promover a “disponibilização de fundos ou de outros ativos com valor desportivo” da Benfica SAD ao Setúbal, lê-se no despacho de acusação.
Os cofres vitorianos, entre as épocas de 2016/2017 e de 2019/2020 — época em que o histórico clube do Sado desceu de divisão, tendo sido relegado para o 4.º escalão do futebol nacional por não cumprir os requisitos financeiros das competições profissionais da Liga —, estavam muito depauperados.
O Setúbal encontrava-se com dificuldades financeiras desde 2013, tendo apresentado três planos especiais de revitalização em apenas seis anos. Só entre 2016 e 2018, a SAD do Vitória foi executada em 225 processos de execução final e devia cerca de 20 milhões de euros.
O primeiro caso identificado do “plano criminoso” entre a Benfica SAD, liderada por Luís Filipe Vieira, e o Vitória Futebol Clube SAD, então liderada por Fernando Oliveira (sucedido por Vítor Valente), prende-se com o guarda-redes Bruno Varela.
O guarda-redes, que começou nas camadas jovens do Benfica na época de 2002/2003, ganhava cerca de 90 mil euros brutos anuais em 2016, de acordo com um contrato celebrado a 24 de junho desse ano. Seis dias depois, o contrato é rescindido e Varela vai para o Setúbal para ganhar menos 24% do que ganhava no clube da Luz.
No mesmo dia, o Benfica cede gratuitamente os direitos desportivos e económicos ao Setúbal. Sendo que o Benfica ficava com o direito de readquirir o jogador mediante o pagamento de 100 mil euros — a exercer até 31 de agosto de 2020.
O Benfica vai readquirir o seu ex-guarda-redes e a 29 de maio de 2017 e faz o pagamento dos tais 100 mil euros. Pormenor relevante: o Benfica apenas readquire 50% dos direitos económicos quando o contrato original lhe dava o direito de readquirir a totalidade de tais direitos (assim como dos direitos desportivos).
O MP diz que esta cedência gratuita foi simulada por várias razões:
- porque Varela era realmente jogador do Benfica, visto que a rescisão contratual foi simulada;
- porque os contratos simulados permitiram ao Benfica injetar dinheiro no Setúbal, visto que o Benfica foi recomprar um jogador que já lhe pertencia;
- E, finalmente, porque realmente o que estava em causa era um empréstimo de um ano (Bruno Varela saiu logo em 2012)
Mais tarde, Paulo Grencho teve de insistir junto de Paulo Gonçalves para que os 123 mil euros (incluindo IVA) fossem pagos ao Setúbal para que os salários em atraso dos jogadores e de técnicos fossem pagos e várias dívidas fiscais e à Segurança Social fossem liquidadas — o que veio a acontecer a 7 de dezembro de 2017, quando a fatura era de 6 de outubro de 2017.
O jogador com três contratos sucessivos (e redundantes) e o adversário tripartido
Estão em causa várias operações polémicas — e que se sobrepõem por razões inexplicáveis. Como por exemplo, a aquisição, em janeiro de 2017, do direito de preferência sobre qualquer um dos jogadores do clube sadino nas categorias juniores e seniores por cerca de 369 mil euros (inclui IVA), valor que foi pago a 31 de janeiro de 2017.
Três meses depois, em abril, o Benfica assina um novo contrato com o Setúbal para garantir os direitos de preferência para a transferência temporária ou definitiva de cinco jogadores: André Pedrosa, Gonçalo Duarte, Diogo Ferreira, André Martins de Sousa e João Pedro Reis Amaral. Valor faturado e pago: mais 492 mil euros (inclui IVA). Problema? Esses cinco jogadores já se encontravam abrangidos pelo primeiro contrato.
E, em 15 de maio de 2017, surgiu ainda um terceiro no contrato no valor de 440 mil euros para a transferência de João Pedro Reis Amaral até 31 de agosto de 2020.
O contrato entre o Benfica e o jogador apenas foi assinado a 23 de maio de 2018. Só um pormenor: João Pedro Reis Amaral foi o primeiro reforço de 2018 do Benfica, mas não entrou no estágio de pré-temporada e foi vendido ao Lech Poznan da Polónia.
Outro caso prende-se com o jogador brasileiro Willyan Barbosa. Tratava-se de um jogador do Nacional da Madeira que, em nome de uma dívida de 600 mil euros daquele clube madeirense em relação ao Benfica, foi transferido para o Benfica. No mesmo pacote, veio também Salvador Agra.
Luís Filipe Vieira veio a comunicar Nacional da Madeira que o jogador Willyan seria cedido ao Setúbal. Em 24 de maio de 2017, o Nacional cedeu 70% dos direitos económicos do jogador ao Setúbal. Dez dias antes, o Setúbal tinha acordado com o Benfica que lhe vendia 40% desses direitos do Willyan pelo valor de 40 mil euros.
Ou seja, além de o Setúbal ainda não ser titular de qualquer parte do passe (e, mesmo assim, conseguiu vender 40%), o Benfica aceitou comprar uma parte de um passe que já era seu na totalidade pois tinha acordado a cedência dos 100% dos direitos económicos de Willyan em nome de uma dívida do Nacional para consigo.
A 13 de março de 2019, o mesmo jogador é alienado pelo Setúbal a um clube coreano por cerca de 120 mil dólares pela totalidade dos direitos económicos e desportivos — mas o Vitória apenas detinha 30% do passe, enquanto que o Benfica tinha 40’% e o Nacional da Madeira tinha 30%.
De acordo com o despacho de acusação, todos estes esquemas permitiram ao Benfica injetar cerca de 1,6 milhões de euros nos cofres do Vitória de Setúbal.
O alegado esquema de intermediação que terá prejudicado o Fisco
Luís Filipe Vieira e Paulo Gonçalves são igualmente acusados de terem criado, desde pelo menos junho de 2014, um plano para fazer circular elevadas quantias de dinheiro fora da contabilidade da Benfica SAD e, que no final do dia, levou a um prejuízo significativo para o Fisco.
Assim criaram um esquema de faturação relacionada com a intermediação da contratação de jogadores de futebol. Mas uma intermediação que, do ponto de vista prático, nunca existiu.
Ou seja, serão contratos simulados, relativos a negócios que, na realidade, nunca existiram.
Logo, segundo o raciocínio do MP, as faturas que o Benfica recebeu de empresários de futebol serão alegadamente falsas e dão origem a uma alegada burla tributária. Porquê? Porque a Benfica SAD apresentou essas faturas como custos e terá conseguido, assim, diminuir a coleta que é tributada em sede de IRC.
Dito de outra forma, a Benfica SAD teve um ganho fiscal através dessas faturas falsas e, dessa forma, terá prejudicado o Estado, visto que o Fisco não terá cobrado os impostos reais.
Os casos em causa têm a ver com a contração de três jogadores brasileiros que, tal como João Pedro Amaral e Willyan Barbosa, nunca jogaram no Benfica: Luís Filipe (ex-Palmeiras), Marcelo Hermes (ex-Grémio do Porto Alegre) e Daniel dos Anjos (ex-Flamengo) estavam todos em final de contrato.
Daniel dos Anjos, por exemplo, foi formado no Flamengo, foi contratado pelo Benfica no verão de 2017 por estar em final de contrato com a equipa sub-20 do popular clube do Rio de Janeiro.
Pormenor muito importante: o Benfica sentiu necessidade de assinar um contrato de agenciamento com uma sociedade chamada Olisports Marketing e Gerenciamento de Carreiras, que tinha como representante Adolfo Oliveira. E quem é este Adolfo Oliveira? Segundo a PJ, é filho de Francisco Oliveira, scout, agente e observador de jogadores que colaborou com a Benfica SAD no Brasil desde a década de 2000.
A tese da acusação é a de que houve um alegado acordo entre a Benfica SAD e Francisco Oliveira para que este criasse empresas de agenciamento no Brasil para prestar serviços fictícios de representação.
Terá sido, assim, que a Olisports terá entrado na transferência de Daniel dos Anjos, cujos 80% dos direitos económicos do passe do jogador foram transferidos gratuitamente do Flamengo para o Benfica. Como alegada remuneração, a Olisports terá emitido uma fatura de 1.250.000 euros, mas apenas terá recebido cerca de 450 mil euros por serviços que não foram prestados.
O atleta jogou essencialmente no Benfica B — fez apenas um jogo na equipa principal — e em julho de 2021 foi transferido em definitivo para o Tondela.
Resumindo: com estes contratos alegadamente simulados, a Benfica SAD terá conseguido contabilizar de forma ilícita custos num valor total de 7,1 milhões de euros, tendo obtido uma alegada vantagem patrimonial de cerca de 900 mil euros entre entre 2014 e 2022.
Os casos de Luís Filipe e de Hermes
No caso de Luís Filipe, cujo alegado contrato simulado está em causa dos factos acima descrito, está em causa um alegado empolamento do custo da transferência de 570 mil euros para 3,6 milhões de euros sem qualquer racionalidade económica, segundo o MP.
Contratado pelo Benfica em 2014, o defesa é mais um dos que nunca chegaram a vestir a camisola benfiquista em jogos oficiais, sendo sucessivamente emprestado aos clubes brasileiros Joinville, Paysandu, Rio Claro e Oeste.
No mercado de inverno de 2016/2017, o Benfica decidiu emprestá-lo depois ao Vitória de Setúbal. Luís Filipe Vieira rescindiu-lhe o contrato com o clube da Luz e ele assinou pelos sadinos até 2019. Ao minuto 90 do jogo entre Vitória de Setúbal e Benfica, o jogador brasileiro entrou e acabou por provocar um penálti polémico a favor do Benfica, ao derrubar o argentino Sálvio na grande área do V. Setúbal. O Benfica ganhou por 2-1 esse jogo, numa fase decisiva da época, e ficou com quatro pontos de vantagem e mais um jogo que o FC Porto.
Luís Filipe foi contratado na alegada lógica antiga de Luís Filipe Vieira de criar uma espécie de entreposto de jogadores no Benfica, na tese do MP. Jogou uma única vez pela equipa principal, por 21 minutos, num jogo para a Taça de Portugal, e foi cedido gratuitamente ao Tondela em julho de 2021 e ao fim de quatro anos a representar a equipa B do Benfica.
Por último, o caso de Marcelo Hermes. A Benfica SAD contratou em outubro de 2016 a sociedade de intermediação chamada Drible – Gestão e Assessoria Desportiva Eireli, pertencente a Adolfo Oliveira, para contratar o jogador Marcelo Hermes. Desde que o jogador fosse contratado a custo zero e a cláusula de rescisão fosse de 45 milhões de euros, o Benfica obrigava-se a pagar à intermediária cerca de três milhões de euros — o que aconteceu através de pagamentos realizados entre o início de 2017 e os primeiros meses de 2018.
Uma vez mais, o DCIAP e a PJ entendem que os serviços de intermediação foram fictícios. Tudo para que fosse encontrada uma justificação para a saída de cerca de três milhões de euros dos cofres da Benfica SAD para fins indeterminados. Pior: a fatura emitida pela sociedade Dribel é alegadamente falsa e não devia ter sido tomada como um custo pela contabilidade da Benfica SAD.
Uma curiosidade relevante: tal como o Observador revelou em janeiro de 2021, o Benfica comunicou ao mercado em abril de 2017, no âmbito de um empréstimo obrigacionista, que Hermes terá custado cerca de 2,9 milhões de euros — valor que, sabe-se agora, terá servido para pagar uma comissão à agência Drible, que, segundo o MP, não terá prestado qualquer serviço.
Hermes apenas fez um jogo (45 minutos) pela equipa principal do Benfica na época 2016/17, tendo sido posteriormente emprestado ao Cruzeiro e a outros clubes brasileiros. Em janeiro de 2019, a imprensa brasileira noticiou uma parceira entre o Benfica e o Cruzeiro, segundo a qual Hermes seria transferido para o clube de Minas Gerais a custo zero, com os dois clubes a partilharem em igual proporção os direitos económicos do passe do jogador. Na época de 2020/2021, o lateral transferiu-se a custo zero para o Marítimo.