Quando aos 60 anos a britânica de origem nigeriana Bernardine Evaristo ganhou o Booker Prize, contava já com uma longa carreira literária, iniciada nos anos 90, mas eram poucos aqueles que sabiam quem era. O facto de ter vencido o prémio, enviou uma mensagem para os escritores mais velhos, mas também às mulheres — Evaristo foi a primeira negra a receber o mais importante prémio literário de língua inglesa.
A experiência virou-lhe a vida de cabeça para baixo, mas Evaristo abraça com prazer a mudança. “Tem sido uma coisa maravilhosa”, disse ao Observador, apesar de confessar que anseia por ter pelo menos três meses de paz e sossego para se poder dedicar apenas à escrita — “Mas isso não vai acontecer”. Quem fica a ganhar é o público, que tem assim oportunidade de vê-la e ouvi-la, como aconteceu em Óbidos, onde o Observador esteve à conversa com a autora, que tem três romances publicados em Portugal: Raízes Brancas, Mr. Loverman e Rapariga, Mulher, Outra, que lhe valeu o Booker em 2019 em conjunto com a canadiana Margaret Atwood.
A sua vida mudou drasticamente com o Booker Prize. Foi fácil ajustar-se?
Sim, na verdade foi muito fácil. Estou no meio há muito tempo. Comecei como atriz, publiquei o meu primeiro livro em 1994. Desde então que tenho feito digressões como escritora, a falar sobre o meu trabalho, as minhas ideias, a minha vida. Acho que tinha uma base muito forte quando ganhei o Booker, porque não foi como se tivesse aparecido do nada e, de repente, aos 26 ou 36 anos comecei a receber muita atenção. Nunca tinha recebido este nível de atenção, mas estava habituada a falar em público e a ser entrevistada. Acho que o problema foi que foi tudo muito intenso e ainda não parou verdadeiramente. Quando o nossos livros são traduzidos para várias línguas, cada país quer entrevistas e também visitas. Então, continua, três anos depois. Mas escrevi dois livros desde então, por isso sinto-me bem.
Um dos livros que escreveu é de memórias, Manifesto: On Never Given Up. O que é que a levou a escrevê-lo?
Nunca tinha pensado em escrever um livro de memórias. A ideia era tão avassaladora… Como é que escrevemos sobre a nossa vida quando vivemos uma vida relativamente longa? Mas, como falei muito sobre mim depois de ganhar o Booker, e isso nunca tinha acontecido nessa escala, pensei que, na verdade, seria o livro ideal para publicar depois do Booker, porque não podiam comparar os dois. Não podemos comparar um livro de memórias com um romance. Deu-me espaço para respirar, mas também pude dizer às pessoas, nas minhas próprias palavras, de onde vim, quem sou. Senti que era perfeito registar, com a minha própria voz, uma história com base na minha vida.
Vários dos seus romances são inspirados na sua vida e experiências pessoais. Podia ter simplesmente escrito outro romance.
Nem por isso. As pessoas dizem isso, mas não é esse o caso. Um dos meus livros, Lara, que é o meu segundo livro, é uma versão ficcionada da história da minha família e também da minha infância, que abrange a Inglaterra, Irlanda, Alemanha, Nigéria e Brasil. Esse livro é sobre mim, mas os outros são ficção. É muito interessante que as pessoas pensem que escrevo sobre mim quando não escrevo [risos]. Em Rapariga, Mulher, Outra, uma das personagens é baseada na versão mais nova de mim.
Na altura em que era atriz e fundou o grupo de teatro Theatre of Black Women.
Sim. A Emma é baseada na versão mais nova de mim.
É mais fácil ter a realidade como ponto de partida?
É interessante, os meus livros não são fantasia, mas criei universos alternativos.
Muitas vezes baseados na História.
Sim, é verdade, são baseados na História. O meu interesse está em explorar a diáspora africana. É o que faço, e isso é obviamente uma experiência real — é histórica, é contemporânea —, mas faço-o através da criação de histórias realistas e de outras histórias que não são realistas.
Como em Raízes Brancas, em que virou a História ao contrário, apresentando os brancos como escravos e os negros como escravizadores.
É verdade. Queria explorar o tráfico transatlântico de escravos. Tenho de dizer “tráfico transatlântico de escravos”, porque existiram outros tipos de tráfico de escravos. E a escravatura ainda existe hoje sob diferentes formas. Queria fazer alguma coisa diferente com isso. Acho que muitos escritores negros sentem a certa altura que devem falar sobre escravatura, porque afetou grande parte do mundo negro, mas achei que se virasse a história ao contrário, estaria a abordar o tema de forma muito diferente e a expor as estruturas de poder que estavam por trás do tráfico de escravos e os fatores económicos envolvidos. Foi a maneira que encontrei de explorar o tema. Todos os escritores têm a sua própria imaginação e, no meu caso, sinto sempre que devo fazer alguma coisa diferente. Não quero explorar os temas como outros os exploraram.
A protagonista de Raízes Brancas, Doris, é uma mulher branca. Foi difícil escrever de uma perspetiva não negra?
Nem por isso. Não, estou a mentir. A minha mãe é branca e um lado da minha família é branco. Quando escrevi Raízes Brancas, dei a uma mulher branca a experiência negra. Apesar de Doris ser uma protagonista branca, ela vive a história negra. Foi divertido fazer isso. Mas com o meu livro mais antigo, Lara, no qual ficcionalizei a minha mãe e a minha avó, a certa altura questionei-me se conseguiria ficcionalizar a minha avó porque era branca e isso não fazia sentido, porque ela era minha avó, eu conhecia-a. Era como se existisse uma barreira quando tentava escrever a sua história. Depois ultrapassei isso e escrevi a sua história.
Alguma vez sentiu essa barreira em relação à sua avó?
Nem por isso. Convivi com ela desde que nasci até aos 26 anos, quando ela morreu. Conhecia-a muito bem. Ela era muito querida.
Sei que ela não gostava do seu pai.
Não, ela não gostou que a minha mãe casasse com o meu pai. Ela adorava os netos, mas não conseguia aceitar a nossa cor. É interessante, não é? As pessoas estão cheias de contradições. Por um lado, havia uma ligação emocional, porque éramos do mesmo sangue, mas por outro, ela tinha sido levada a acreditar que os negros eram menos humanos. Ela não gostava desse aspeto nos netos.
Deve ter sido difícil crescer sabendo isso.
Acho que não tinha noção disso, porque ela era amorosa connosco. Era um avó adorável. Mas conhecia a história. A grande história da minha infância era que a minha avó se tinha oposto ao casamento dos meus pais. Mas não sei em que altura é que realmente percebi o que isso significava, mas, quando era criança, ela era apenas a minha avó.
Usa sempre uma linguagem contemporânea e coloquial nos seus livros, mesmo naqueles que têm uma base histórica, como Raízes Brancas, criando um forte contraste entre o discurso das personagens e o meio em que elas estão inseridas. O que é que pretende atingir com isso?
Quando escrevo sobre História, quero que as pessoas sintam que é algo imediato e contemporâneo. Não quero que sintam que é uma coisa tão antiga que não se conseguem relacionar. Quando escrevi Raízes Brancas, quis que a história parecesse viva, como se se passasse nos dias de hoje. É também por isso que crio universos paralelos. Não sabemos exatamente quando é que a ação se passa. É histórico, passa-se talvez há 200 ou 300 anos, mas a linguagem e certas coisas no livro fazem com que pareça que se passa nos dias de hoje. É uma grande mistura de todas essas coisas. É como se quisesse abanar as expectativas do leitor, para que ele consiga ver as coisas de outra forma e de uma maneira fresca. É era nisso que estava a pensar quando escrevi o livro.
Os seus livros têm sempre um lado profundamente informativo. Por exemplo, em Rapariga, Mulher, Outra, ao mostrar diferentes formas de feminismo, o leitor aprende sobre essas perspetivas e sobre a diversidade da experiência feminina. Tem isso em mente quando escreve? Procura fazer com que o leitor fique melhor informado?
Tento não o fazer [risos], mas sei que as pessoas aprendem com os meus livros. É ótimo, mas, por um lado, só quero contar uma história. Para mim, o mais importante é a ficção. Quero criar um mundo, quero que o leitor se envolva, que acompanhe as personagens e as suas viagens. Por outro lado, sei pelo que me dizem, especialmente com Rapariga, Mulher, Outra, que o livro lhes abriu os olhos para as vidas de diferentes mulheres. Acho que isso é ótimo se acontece, mas se tivesse escrito o livro porque queria educar os leitores, não teria sido o sucesso que foi, porque as pessoas tinham sentido que lhes estava a bater na cabeça e que estavam a ler um manual escolar. Em vez disso, criei essas figuras muito humanas, que são simplesmente humanas. O leitor sente-se próximo delas e chega ao fim e pensa, “hm, ok, isto foi uma viagem transformadora”.
Um dos temas centrais de Rapariga, Mulher, Outra é o feminismo negro e o facto de não ter a mesma visibilidade que o feminismo branco. Porque é que isso acontece?
Conhece o termo “feminismo interseccional”? É muito importante nos Estados Unidos e no Reino Unido, não sei se acontece o mesmo em Portugal. O feminismo interseccional é totalmente inclusivo e as intersecções a que se refere podem ser a raça deficiência, cultura, classe ou neurodiversidade [termo que se refere às diferentes formas de funcionamento do cérebro, pressupondo que essas são variações naturais e não problemas cognitivos]. Não tem apenas a ver com mulheres brancas de classe média, tem a ver com todas as outras pessoas também e com essas intersecções. Quando era jovem, dizíamos que éramos “feministas negras”, porque o feminismo branco não era inclusivo em relação às mulheres negras. O feminismo dos anos 60, 70 e 80 no Reino Unido era muito branco e de classe média. Enquanto mulheres negras, tínhamos também de lidar com o facto de sermos tratadas de maneira diferente por causa da cor da nossa pele. Não podíamos separar as duas coisas; não podíamos dizer que éramos mulheres e fazer de conta que não éramos negras. Então começámos a usar esse termo — “feminismo negro” — que vinha da América e que significava que estávamos a olhar para esses dois problemas e a lutar por igualdade nessas duas frentes. Agora, especialmente com as feministas mais novas, trata-se de interseccionalidade.
Vê então uma mudança na forma como essas questões são tratadas?
Sim. Tudo mudou nos últimos anos, com os movimentos Me Too e Black Lives Matter. Não sou especialista no novo feminismo, mas pelo que vejo e pelo que oiço, o feminismo tornou-se algo em relação ao qual as mulheres mais jovens são mais inclusivas, e isso é diferente do que acontecia há uns anos. Isso ocorre também porque não estamos separados uns dos outros como estávamos antes. Por causa da internet, das redes sociais, sabemos quais são as opiniões das outras pessoas. Toda a gente tem uma plataforma. Antes, podíamos fechar-nos e permanecer completamente imunes a qualquer outra realidade em termos de feminismo, porque os media não estavam interessados no feminismo; podíamos ser feministas de classe média e achar que o que estávamos a fazer era ótimo e não pensar sequer que estávamos a excluir outras pessoas, enquanto que as feministas de hoje têm uma grande consciência de que existem pessoas com outros problemas, porque essas pessoas falam sobre isso.
Tornou-se um fenómeno verdadeiramente global?
Sim, tornou-se.
Disse no Hay Festival of Literature, este verão, que temia que o interesse dos editores nos escritores negros fosse apenas uma “moda”. O que é que pode ser feito para garantir que esse interesse se mantém?
Acho que estamos a atravessar um período muito interessante no Reino Unido, porque o mundo da edição é muito mais inclusivo. Ainda falta percorrer um longo caminho, mas as coisas estão muito melhores. Quando somos tratados como uma minoria num país e certos ganhos são alcançados, temos sempre de lutar para garantir que são sustentáveis. E no passado nem sempre foram sustentáveis. Atualmente, os editores têm uma grande consciência de que as editoras não podem ser apenas organizações brancas de classe média. E não só na edição, mas em todo o setor da literatura. Há vários anos, os festivais literários ficavam muito satisfeitos por terem quase exclusivamente autores brancos; os editores nos jornais e revistas quase não faziam críticas a livros de escritores negros. A indústria da edição, do topo ao fundo e do fundo ao topo, estava muito contente por ser apenas branca e por publicar apenas livros de autores brancos. É um sistema muito injusto e desigual. Agora, as pessoas sabem que isso não é aceitável, mas isso acontece sobretudo por causa do Black Lives Matter. Mudou realmente as coisas. Por outro lado, temos também noção de que quando não somos a maioria, que a maioria pode reverter as coisas e voltar ao status quo, porque é mais fácil. Por essa razão, acho que devemos estar sempre vigilantes e manter os olhos na indústria e na forma como está a progredir ou a regredir.
Foi a primeira mulher negra a vencer o Booker Prize.
Sim, eu sei! Quem diria? É interessante, porque sempre quis ganhar o Booker, há muito tempo que o queria ganhar. É como quando nos tornamos atores. Levamos a nossa carreira muito a sério e podemos pensar que um dia gostávamos de ganhar um Óscar. Tenho a certeza que muitos atores se sentem assim, se acreditarem neles próprios. Foi a mesma coisa comigo com o Booker. Mas estava tão longe dele, sempre tão longe. Nunca integrei a longlist ou a shortlist e nunca diziam que devia ganhá-lo. E, de repente, apareci na longlist, depois na shortlist e depois eu e a Margaret Atwood ganhámos [em 2019]. Pensei, “oh meu Deus, ganhei”. Foi uma bênção. Acredito em manifestarmos os nossos desejos, e eu manifestei essa vontade, mas quando aconteceu, pensei, “aconteceu mesmo?”. Aconteceu. Honestamente, tem sido uma coisa maravilhosa. E acho que enviou uma mensagem para a indústria e para os aspirantes a escritores — as editoras não devem desistir dos seus autores — a minha nunca desistiu de mim — e os escritores mais velhos podem vingar numa idade mais tardia. Se olharmos para quem atualmente vence o Booker, são escritores mais velhos: Marlon James, Paul Beatty, George Saunders, Anna Burns, Damon Galgut, Douglas Stuart… Diz alguma coisa sobre a maturidade da escrita. Enquanto mulher mais velha, [ter vencido o Booker] diz à indústria que o futuro não está apenas com os maravilhosos jovens de 20 anos que estão a produzir, o futuro está com todas as idades.
No ano passado, foi anunciado que ia publicar em breve uma coleção de contos e um novo romance. Como é que isso vai?
O livro de contos vai sair dentro de alguns anos. São contos que foram publicados nos últimos 20 e tal anos e vou escrever alguns novos também. Esse é o livro fácil, porque basta juntar tudo. O romance é um projeto em andamento. É tudo o que posso dizer [risos].
A verdade é que tem andado bastante ocupada.
Sim, tenho andado bastante ocupada [risos]. Anseio por ter apenas três meses em que não tenha de fazer nada, mas isso não vai acontecer. E talvez quando acontecer, me pergunte: “Onde é que está toda a gente?! Esqueceram-se de mim?” [risos]. Mas é preciso esse espaço sagrado para a escrita, para ser capaz de me focar. Há muito tempo que não tenho isso.
O Observador viajou até Óbidos a convite do FÓLIO – Festival Literário de Óbidos