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O som dos Por Batuka
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O som dos Por Batuka

Cem Soldos (@viipaulo, @charliemartens, @veramarmelo, @photo.andrecoelho)

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Cem Soldos (@viipaulo, @charliemartens, @veramarmelo, @photo.andrecoelho)

Bons Sons. Um festival que mostrou a música portuguesa a voltar a ela própria

O regresso do festival em Cem Soldos trouxe grandes concertos e uma portugalidade que está viva e que se recomenda. Jogos tradicionais, contos, churrascadas, arruadas. O baile nunca parou.

Um miúdo pára, durante uns segundos, encostado à parede de uma das casas da aldeia de Cem Soldos. Tem dado voltas, de trás para a frente, na sua bicicleta. Posa para fotografias dos curiosos festivaleiros, enquanto a mãe o vigia ao fundo e lhe pergunta: “já estás cansado?”. Reguila, não conformado, pega de estaca outra vez o pedal e segue viagem até ao Largo de São Pedro, onde uma enchente de gente o faz desaparecer.

Comem-se caracóis no Aliquete, tapa-se o sol com pedaços de caixas de cartão, os mais altruístas borrifam água à multidão que está colada ao palco Giacometti. A voz rouca, profunda, que se cola ao ouvido é de A Garota Não, cantautora, pacificamente revolucionária, que nos veio dizer que “a vida está difícil”, mas que é preciso continuar. “Estava muito nervosa, mas por vossa causa, por estarem aí, desse lado, a ouvir-nos”, desabafa envergonhada. Não se poderá dizer que os nervos são só por ser uma das caras novas da nova música de intervenção. Não. É que a energia ternurenta do Festival Bons Sons cria um ambiente de festa familiar, onde o medo de desiludir choca com a vontade de estar ali e de corresponder às expectativas.

Foi precisamente esse palco, que recebeu bandas de todo o tipo — de Fado Bicha a Sun Flowers –, que carregou a alma dos Bons Sons. Qualquer pequeno problema técnico não previsto, qualquer pequeno incómodo causado por uma carrinha que, de forma inusitada, precisava de fazer a sua travessia pela multidão, resolvia-se sem frustração. Cada banda teve praticamente uma hora para atuar em cada um dos sete palcos e nem mais um minuto. Nem mais um minuto, é como quem diz. Se o público puxasse por mais, ai não que não tinham. “Só mais uma, só mais uma, só mais uma”, grito de revolução sem que a revolução se fizesse ver nos termos em que a conhecemos. Mas não seria de estranhar, não fosse Cem Soldos uma terra comunista.

Criatura, jogos tradicionais, cantadeiras: Portugal continua (e ainda bem) a ser tudo isto

Nestes quatro dias de festa, com dois dias esgotados e os passes gerais também, e após dois anos de pandemia que privaram a aldeia de voltar a reerguer o festival através da Sport Clube Operário Cem Soldos, é isso que se sente no ar: os artistas portugueses voltam à base, a ser pequenos, a quase chegar à memória da primeira vez que pegaram no microfone para um espetáculo da escola. O público, com sede de voltar, nunca os deixou na mão. Carrega-os às costas, aplaude, chora, abraça, sua. Quer seja para dançar “Canção da Burra” de Sebastião Antunes & Quadrilha, quer seja para ver o registo etnográfico, eletrónico e instrumental de OMIRI ou para explodir com o projeto Criatura, que tem tanto de arraial como de cigano, como diz Valter Hugo Mãe, e de outros tantos e tantas espalhados pelo país. Houvesse mais espaço e tempo para dançar, e mais concerto teríamos. Abra-se uma garagem (e abriu-se) se faz favor, que a viagem musical continua por aí fora.

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Foi comum verem-se caras surpreendidas em praticamente todos os concertos. “Não sabia que era tão conhecido, não sabia que era um fenómeno”. Não tem mal. A música portuguesa pode ter sofrido um grande abanão com a Covid-19, mas regenerou-se. Ninguém se sente abandonado aqui. Se não se conhece a letra, aprende-se, se já se conhece, apoia-se ainda mais. Descobre-se o tipo que canta para uma árvore na Capela da rua das Caldeias ou o experimentalismo oriental de Rui Reininho no palco Zeca Afonso. É abrir a pestana e deixar ir, como o miúdo da bicicleta: ser criança outra vez. Porque não?

David Bruno, Sun Flowers, António Bandeiras e Criatura © Bons Sons (@charliemartens, @veramarmelo, @brunosantosphotos, @viipaulo, @photo.andrecoelho)

De dia, organizam-se churrascos dentro das casas da aldeia, brinca-se aos jogos tradicionais do Hélder, acompanham-se os concertos de rua — uma das novidades desta edição — para ajudar a continuar. Vai-se a casa da avó para se entregar o neto perdido, ajuda-se o tio, o amigo, o companheiro/a. É-se criança outra vez, uma, duas, as vezes que o Bons Sons deixar. E na rua, pode dar-se o caso de dar de caras com a música do B Fachada ao vivo ou com as Cantadeiras do Vale do Neiva, à porta da igreja, num daqueles momentos onde a comunhão entre quem ouve e quem canta atinge o nirvana. À hora do almoço, a vila já está, por isso, viva outra vez. Ela pertence também às famílias que ouvem os contos e percorrem a região nas visitas guiadas, às crianças que aprendem mais sobre burros, aos voluntários e comerciantes que não arredam pé.  Um manifesto de portugalidade em contínua construção.

Um Rembrandt para lembrar mais tarde

Para quem veio das cidades, e nunca teve “de voltar à terra”, tem a hipótese de o sentir na pele. Mas aqui não se brinca às aldeias. O trabalho é sério, a experiência é para levar para casa mas com respeitinho, não há cá pacotes turísticos que se vendem nas lojas. Beba-se. Festeje-se. Mas sem tiques de outros festivais (as colunas portáteis de alguns festivaleiros bem que podiam ter sido barradas à entrada). Povoem-se os pátios que são restaurantes, os caminhos de pedra destes 650 habitantes que são para estimar. Se no final sobrar dinheiro nas pulseiras, que se faça uma doação para completar a tarefa de continuar a tratar da aldeia. “Hoje na Adega à mesma hora?”. Pois, claro, o ciclo ainda não se completou. Descentralizar custa neste país, mas se as veias estiverem mais aguadas, tanto melhor.

Bons Sons

Mas é preciso organização. Debaixo de um dos parques de merendas improvisados, está uma pequena equipa a fazer uma reunião. Discute-se o que há para melhorar, nos recintos e no campismo. “Houve um senhor que me esteve a dar uma palestra sobre a melhor forma de fazer torradas. E outro pediu-me para abrir uma banca de rojões na próxima edição”. Anotam-se todas as queixas, faz-se um périplo sobre ideias: dividir-se ainda mais as famílias que acampam e o resto para evitar cruzamentos indesejados; tornar os questionários mais atrativos, porque um bom festival não é só feito com bons sons; arranjar depósitos orgânicos para as caravanas. O que vier à cabeça do público, ficou anotado. O desprendimento daquela reunião não é sinónimo de desleixo. O fato e a gravata, o ar condicionado e a frutinha na taça ficam de fora. É ver se em 2023 as queixas foram ouvidas.

Se as praias fluviais de Tomar recebem os emigrantes portugueses durante o dia, num quadro que nos dá a certeza de que estamos em agosto, Cem Soldos, fechada só para quem tem bilhete, é de todos. Com sol ou com lua, bem cheia por estes dias, como sinal de que não é só na terra que se sente completo. “Está bonito isto, nem Rembrandt pintaria melhor”. O insuspeito Manuel Cruz, que, no pós-pandemia, voltou a andar de norte a sul do país, foi com o seu Pluto ao palco Variações no segundo dia de festival. Cantigas “novas velhas” e outras, mas poucas, “novas novas”, deram ao vocalista dos Ornato Violeta um sorriso de lés a lés, pois mesmo que a música não seja um “Ouvi dizer”, nestas bandas há sempre alguém que não só ouviu dizer o que se canta em palco, como provavelmente já segue o artista desde início. Tenha um EP ou um álbum. Seja cá da terra, como Rita Vian, com costela bem soldada destes ares, ou como Bateu Matou, da terra de todos nós.  E se o público não segue o artista, finge bem. É difícil dar uma má crítica a um concerto por estes lados, ainda que alguns artistas (muito poucos) tenham parecido uns furos ao lado do que se esperava.

Coro dos Anjos

Bons Soldos

Nem Rui Reininho, que veio com o seu experimental “20 mil Éguas Submarinas” de 2021, e que desiludiu alguns dos presentes que foram embora mais cedo (à espera de “Dunas”, mas até quando?) fez má figura. A provocação estava toda lá. Com pronúncia, com bongo, com o que for.  E, no fim, o aplauso, o agradecimento. Todos os músicos o receberam. Mesmo Lena D’Água, puxada pelo calor que veio do outro lado no quarto e último dia de festival, teve de regressar a palco para um bis completamente sozinha. “A culpa é da vontade”, último eco que lhe saiu da voz. E bem empregue. A vontade do miúdo da bicicleta em chegar, a urgência de quem queria aqui voltar e o êxtase dos artistas em tornarem-se protagonistas desta edição. Portanto, como fingir algo que parece tão verdadeiro? Difícil, difícil. “Nada acaba com algo tão verdadeiro. O Bons Sons diz-nos que a música não precisa de ser tão direta, porque se a arte não mover bons sons, é uma história que acaba rápido”, questionou a fadista Aldina Duarte, que regressou ao festival anos depois.

Nas histórias que os Bons Sons vão guardando desde 2006, guarda-se agora mais uma. Uma daquelas que contado ninguém acredita, a dos 5 Punkada. Coletivo criado por utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra que sonhou há 27 ter um disco. Fez-se finalmente em 2021 o “Somos Punk ou não?” e, após a estreia em tour pelo país, o projeto entregou-se em Cem Soldos, com Surma e Vitor Torpedo a compor o ramalhete. A resposta é simples: são do punk e do rock, sim senhor e mostraram-no no último dia dos Bons Sons. Um pouco pelo mundo inteiro dão-se por terminado alguns preconceitos, passos pequenos rumo a uma sociedade mais igual, mas uma coisa é o que está no papel, outra é fazer. E dar. Arriscar. Não se ter pejo algum em atirar-se para o que mais se gosta de fazer, mesmo que o corpo pregue rasteiras em contínuo, é, no fundo, viver-se em liberdade. Esta gente do punk mostrou-o e bem. Falta saber até onde podem ir.

João Gigante, fotógrafo, músico, autor do projeto “Phole”, homem da concertina, fez uma exposição sobre os homens e mulheres que construíram o festival em Cem Soldos. Fotografou-os uma semana antes e o trabalho pôde (e pode) ser visto por estes dias na Casa Sem Teto. Todos os materiais foram feitos na aldeia. Numa breve conversa com o Observador, dentro da Igreja, durante a atuação  das Cantadeiras do Vale do Neiva, “suas vizinhas” de Viana do Castelo, João Gigante fez o raio-x daquilo que significaram estes últimos quatro dias. “Quero voltar aqui para voltar à exposição e estar com as pessoas mas sem ser com um instrumento. Viver mesmo o festival. As pessoas unem-se de forma democrática, sem a procura de um lugar um função, é só vontade de querer fazer.  Num dia estão na cozinha, noutra estão a subir ao escadote. É especial. Quero estar cá só com os ouvidos, há aqui um poder de seleção que é diferente, nem sei se vou gostar, testo. Tem um cartaz que nos abre essa escolha. Essa experiência é que é especial”, diz. Não há palavras. Quer dizer, há, mas só moram em Cem Soldos.

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