Continua a ser a maior comunidade de imigrantes do país. Segundo dados divulgados pelo SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) no passado mês de junho, referentes a 2018, um em cada cinco estrangeiros a viver em Portugal é brasileiro — quase 105.500 cidadãos. Ainda assim, face ao ano anterior, o aumento dos pedidos de autorização ficou na casa dos 147%.
Na hora de deixar o Brasil e de vir de armas e bagagens para Portugal, a segurança continua a ser um tópico preponderante. A mudança é mais planeada e quem chega agora demarca-se, em parte, da vaga de imigração dos final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Os cidadãos brasileiros aterram com mais qualificações e, muitas vezes, com dinheiro para investir em pequenos e médios negócios e “não só para trabalhar e mandar remessas para o Brasil”, como afirmou Cíntia de Paulo, no passado mês de abril, em entrevista à Lusa.
O fenómeno não é alheio ao desfecho político mais recente, mas os fatores económicos e sociais também contribuem para a decisão. “E sentimos que há um descontentamento e uma incerteza do que vai ser o Brasil, no próximo mês, por exemplo. No próximo ano, então, a incerteza é muito maior”, reiterou a presidente da Casa do Brasil.
“Mas [é] uma população que quer contribuir para Portugal, que quer aqui trabalhar, trazer os seus conhecimentos, aplicar aqui a sua profissão, investir, pequenos investidores, pequenos empresários — que não só a classe alta faz investimento –, são investidores com pequenas ideias e negócios”, ressalvou. A “nova vaga”, situou, ter-se-á revelado mais expressiva em 2018, acentuando-se no final desse mesmo ano. Ao mesmo tempo que reconhece a heterogeneidade desta comunidade, falou dos “profissionais mais qualificados, da faixa entre os 30 e os 40 anos” como o grupo mais significativo.
A segurança, a estabilidade política e social, o clima, a língua e a cultura europeia atraem novos empreendedores, vindos do outro lado do Atlântico. Muitos já vêm com ideias de negócio prontas a implementar, outros acabam por traçar o caminho do trabalho por conta própria quando deparados com uma janela de oportunidade. São a prova de que, uma vez na Europa, um empresário brasileiro não tem de vender Brasil. Da arte contemporânea à cerveja artesanal, da moda de praia aos doces, passando pelos livros e pelas flores, contamos sete histórias de quem chegou, viu e empreendeu, com sotaque.
Casa70: da Gávea para Alcântara, uma galeria transatlântica
Entre grandes sonhos e aspirações, Elisangela não teve de escolher que tipo de negócio viria implementar em Portugal. Na mala, trouxe um modelo de galeria que aproxima a arte de quem passa, dedicado, sobretudo, a novos nomes. Mais do que uma ponte entre o Rio de Janeiro e Lisboa, que possibilite o intercâmbio de artistas brasileiros e portugueses, criou um novo epicentro para a sua rede internacional. Ao Brasil, refere-se como um “país em guerra”, onde esta apenas “não é declarada”. No ano passado, tomou a difícil decisão de mudar de país e de continente. Trouxe o marido e a filha, deixando lá o resto da família. Miami chegou a ser uma opção, mas bastou uma viagem de reconhecimento, diferente das visitas ocasionais a trabalho, para deixar cair a ideia. Madrid e Barcelona também ficaram pelo caminho. Numa vinda a Lisboa, a primeira em cinco anos, encontrou uma paisagem diferente “Quando cheguei, vi cores e vi uma cidade pulsante. Estou aqui e me sinto como se viesse à casa dos meus avós”, afirma em conversa com o Observador.
Do outro lado do Atlântico, deixou aquilo a que se pode chamar obra feita, traduzida em cerca de 20 anos de experiência, na organização de eventos que colocaram o Brasil no mapa da arte contemporânea e na capacidade de detetar novos talentos. Recorda 1998 como o ano em que participou na primeira feira de arte internacional, no Grand Palais, em Paris. É jornalista de formação, mas foi através do marido que ganhou gosto pela área. “Tinha de me especializar. A Galeria Toulouse era muito conhecida, mas não participava em feiras internacionais há dez anos”, conta. Elisangela Valadares reverteu a situação e, à medida que foi devolvendo à galeria a projeção internacional de outros tempos, ganhou gosto por circular nos bastidores dos grandes eventos do ramo.
“Como não havia uma feira assim no Brasil?” — a questão era pertinente, porém fácil de responder. Os elevados impostos a que estavam sujeitas as obras de arte dissuadiam os colecionadores e, por sua vez, os galeristas. Comprada uma peça, a tributação fiscal podia ir dos 28 aos 50% do seu valor. Várias negociações depois, a empresária conseguiu uma isenção a nível estadual e, em 2011, organizou a primeira edição da ArtRio. Na segunda edição, eram já 28 as galerias presentes, em 2017, Elisangela deixou a liderança da feira e voltou a dedicar-se um projeto de pequena escala. Na própria casa, começou a receber jovens artistas, juntamente com amigos e convidados. Aquele número 70 do bairro da Gávea rapidamente se tornou um polo cultural. Pela Casa70, como lhe chamou, passaram mais de 500 pessoas no primeiro mês, porém, do lado de fora, o Brasil tornava-se um país cada vez menos seguro.
“Toda a questão política me fazia sentir sufocada. Estava dececionada e não queria mais participar daquela situação, daquela corrupção toda”, afirma. Em setembro veio para preparar a mudança definitiva, em janeiro mudou-se de vez e encontrou no primeiro andar da Lx Factory o poiso ideal para instalar a Casa70 em Lisboa. Além de pintura e escultura, aqui cabe também design, moda, ilustração, música, instalação, performance, cinema e fotografia. Para já, os portugueses e os brasileiros lideram a amostra. Caetano de Oliveira, os gémeos Gabriel e Gilberto Colaço, Martim Brion e João Dias foram os primeiros a chegar (os dois últimos já estão a ser representados numa galeria no Peru), enquanto nomes como Vitória Frate, Fernando de la Rocque, Lair Uaracy e Agostinho Moreira de Melo representam o lado de lá do Atlântico. Em breve, Elisangela quer começar um périplo pelas principais capitais europeias, em busca de novos artistas. Passará por Madrid, Paris e Londres, tudo para garantir uma plataforma de arte verdadeiramente internacional. A diversidade também se consegue através dos preços. Existem peças na casa dos 100 e dos 150 euros, adequando a oferta da galeria a todos os orçamentos.
Aqui, na grande fábrica de Alcântara, os turistas estão em maioria. Já foram vendidas peças a colecionadores portugueses, embora essa seja uma conquista mais demorada. “A crise reformatou a forma de pensar dos portugueses. Um brasileiro compra mais depressa, até algo de valor mais elevado”, refere. Ainda assim, a galerista não se deixa intimidar pelo temperamento cauteloso dos colecionadores portugueses. Mais do que uma galeria estática, quer ocupar a cidade. O espaço abriu portas em julho deste ano e, entre os dias 22 e 25 de setembro, a Casa70 programa a primeira edição do ArtWeek Lisboa, um roteiro gratuito de artes plásticas e performance que passará pelo Espelho d’Água e pela Travessa da Ermida, em Belém, e pela Casa Pau-Brasil, no Príncipe Real. As palestras continuam a preencher a agenda da galeria. O elo com o Brasil é impossível de apagar, ainda assim Elisangela não prevê regressar, a não ser a título de visita. Viver fora sempre foi um sonho, o que vive neste momento chama-se qualidade de vida.
Livraria da Travessa: uma ponte literária
Ao contrário de centenas de outros brasileiros que estão a vingar em Portugal, Rui Campos não deixou o seu país de origem. Apenas intensificou o ritmo das visitas e reforçou os laços que o unem a esta ponta do continente europeu, ou seja, tudo aconteceu através dos livros. Em maio, abriu a Livraria da Travessa, no Príncipe Real. É a número nove de uma cadeia quem tem crescido no Brasil (e que entretanto já assinalou mais uma abertura, em São Paulo), mas a primeira além-mar. “A gente não tinha esse plano, simplesmente havia essa admiração por Portugal”, revela Rui, que é um dos oito sócios da livraria. A princípio, a proposta feita pela Casa Pau-Brasil suscitou muitas reticências. A ideia era tão encantadora quanto impossível, na cabeça deste livreiro. “Aí comecei a passear pela cidade. Já conhecia o Bairro Alto, aquela zona do Miradouro de São Pedro de Alcântara, mas esse bairro não era o lugar que eu mais frequentava em Lisboa. Fiquei a achá-lo encantador e a perceber que era muito interessante para receber uma livraria internacional”, conta o livreiro natural de Minas Gerais.
“Fizemos tudo muito rápido”, continua, em conversa com o Observador. Fala de uma cidade deslumbrante, de uma agenda e de pessoas interessantes e de um processo acelerado de cosmopolização. “Quando pergunto a alguém se tem ido a Lisboa e essa pessoa responde que não vai há uns dois anos, falo sempre que ela já não conhece a cidade”, admite. “Depois, há uma enorme quantidade de brasileiros que estão vivendo em Lisboa e que fazem da livraria uma sede. Eles chegam logo com aquele sorriso de quem está em casa”, completa. Mais do que uma embaixada da literatura brasileira, a Livraria da Travessa posiciona-se como uma plataforma internacional. Mais de metade dos títulos são português, enquanto o restante catálogo fica irmãmente dividido entre obras brasileiras e outros autores estrangeiros.
Sempre que vem a Lisboa, Rui encontra amigos diariamente. Do lado de lá, muitos continuam a fazer planos para rumar a Portugal. “O Brasil, com todo o potencial que tem, tem passado por períodos bem complicados — foi de um governo populista de esquerda para um governo populista de direita, mas ambos inconsequentes e incompetentes. Isso deixa as pessoas muito tristes, mas todo o mundo que tem uma oportunidade de ter uma nacionalidade europeia tenta ir”, confessa. Já o livreiro mantém uma relação à distância com o país. Do próprio nome à fisionomia, diz-se “muito português”, embora encontrar um “cantinho” em Lisboa não esteja totalmente fora de questão, de preferência a dois passos da livraria, onde outros amigos já moram.
O investimento feito na livraria lisboeta, garantido pelos oito sócios brasileiros, ainda não chegou ao fim. Até ao final do ano, abre um café lá dentro e o espaço, já de si convidativo, promete apelar ainda mais a quem passa na Rua da Escola Politécnica. Rui Campos conta vir a Lisboa no início de outubro, mas por estes dias já duas diretoras de compras voam até Lisboa para uma estadia de duas semanas. Do Brasil chegam ecos do bom desempenho dos livros portugueses (que chegam cada vez em maior quantidade), por cá adapta-se o negócio à dinâmica sazonal da cidade — agosto foi, oficialmente, uma época baixa para vender livros. Mas a Livraria Travessa veio confirmar uma tendência. É no Príncipe Real que negócios e famílias assentam arraiais. Um enclave, portanto. A Casa Pau-Brasil, que reúne marcas e criadores num único espaço comercial, acaba por ser uma espécie de embaixada da cultura e do talento brasileiros.
“O mercado brasileiro é muito maior, mas o português tem uma nobreza”, afirma. Rui é um apaixonado pelo ramo editorial português, um amor que vem de há décadas. Em 1975, começou a trabalhar numa livraria, em Ipanema. “Naquela época, o Brasil estava sob uma ditadura muito dura, existia muita censura e um vazio cultural muito intenso. Isso era muito forte no mercado editorial”, conta. Recorria a livros vindos de Portugal, títulos que não eram permitidos do mercado brasileiro. “Existia uma procura muito grande de temáticas esquerdistas e das vanguardas artísticas e culturais. Os jovens ansiavam por esses textos”, continua. Entre os poemas de Mayakovsky, os ensaios de Artaud e livros de economia marxista, Rui recorda um em especial — “Escuta, Zé Ninguém”, do psicanalista Wilhelm Reich. “Na época, estava muito na moda. Era uma edição da Dom Quixote, acho”.
Do álbum de recordações também faz parte a primeira viagem a Lisboa, uma escala de uma semana entre Paris e o Rio de Janeiro, em 1990. “Cheguei pela manhã e estava ansioso por sair à rua e conhecer a cidade. Quando liguei a televisão no hotel, estava tendo um programa de debate sobre D. Sebastião e a cultura da melancolia em Portugal. Fiquei a assistir”, revela. Acabou por passear pela capital já com outro filtro e por se surpreender com as semelhanças entre portugueses e mineiros. A relação, até então literária, fortaleceu-se. Em mais de 40 anos neste ramo, Rui Campos nunca deixou de importar livros portugueses.
Volta ao mundo em 200 cervejas (e com sotaque brasileiro)
Um elefante cor-de-rosa, 35 torneiras de cerveja e uma vista sobre o Chiado — em janeiro de 2017, abria o Delirium Café, um delírio (sem dúvida) para todos os apreciadores de cerveja artesanal, um novo capítulo na vida de Neko e Verónica, na altura, a viver em Portugal há menos de um ano. Lisboa soube recebê-los e o casal retribuiu com cerca de 200 variedades de cerveja. Ao que tudo indica, um bom intercâmbio para ambas as partes. “Foi no início de 2015 que a vontade de sair do Brasil e de viver uma outra realidade começou a ficar mais forte. A gente começou a questionar se era aquilo mesmo que a gente queria. Vivíamos no Rio e a questão da violência está presente na vida dos cariocas. A cidade, apesar de ser fantástica, vive essa dicotomia”, conta Verónica ao Observador.
Dito e feito. Ela, carioca de gema e formada em direito, acabou por trazer até a mãe. Ele, natural de Belo Horizonte, regressou ao velho continente, depois de oito anos a morar em Itália, nos anos 90. Experiência que, aliás, veio a revelar-se decisiva na hora de encontrar um rumo profissional na chegada a Lisboa. “Ele foi sócio de uma cervejaria em Bergamo, muito voltada para as cervejas alemãs. Um pouco antes de a gente se mudar, havia, também no Brasil, esse boom da cerveja artesanal. Então ele retomou essa paixão fazendo alguns cursos e começando a produzir cerveja caseira”, continua. A língua, o clima e o sol ajudaram a tomar a decisão quanto ao destino da migração. Bem vistas as coisas, Lisboa tinha um bocado daquela vitalidade do Rio de Janeiro.
Para trás, deixaram uma produtora cultural, através da qual organizavam eventos de dança, artes plásticas, música e teatro, esta última, a arte que os uniu. Os filhos têm hoje oito e 14 anos e Verónica admite que a adaptação à vida do lado de cá do Atlântico foi, também para eles, um processo tranquilo. Três anos e meio depois de terem chegado, o balanço é positivo. E é claro que o sucesso do bar também ajuda. O casal optou por trazer a marca belga para Portugal — o espaço que abriu no Chiado é o primeiro, e até agora o único, Delirium Café da Península Ibérica. “Não vínhamos desse ramo. Empreender é sempre um desafio, mas num novo país esse desafio é dobrado. Em relação ao Brasil, é difícil dizer se aqui tem menos ou mais burocracia, é diferente”, explica Verónica.
Durante quase um ano, o casal apalpou terreno e, já depois de a decisão de vir para Portugal estar tomada, chegaram a fazer uma primeira visita para criarem a empresa. Por cá, encontraram um mercado pouco óbvio, mas no qual valia a pena apostar. “No Brasil, existe instabilidade, há sempre uma incerteza. Aqui, a gente sabe com o que contar, a moeda é forte, a economia é estável. E aqui tem menos impostos, a vida do empreendedor é mais fácil. Existe o IVA, lá tem vários — o imposto municipal, o estadual e o federal”, refere Neko. “Lá, trabalhar com produtos de importação é uma montanha-russa. Pelo menos, não é um bom momento, o câmbio está muito instável”, completa Verónica.
“O português também adora cerveja”, introduz Neko, rejeitando a ideia de ter aberto um bar para turistas, embora a maioria reconheça o elefante cor-de-rosa (símbolo da marca) à distância. Lá dentro, o ambiente é muito mais próximo ao de um pub, até existe uma mesa de snooker para fazer demorar as visitas. Na Bélgica, a luz verde foi quase imediata. Segundo o casal, Lisboa é o tópico que faz sobressair qualquer pitch. Hoje, as cervejas norte-americanas, alemãs, holandesas e britânicas estão em maioria. Quanto às nacionais, contam-se 15 produtores, mas sempre com lugar para mais um. “Das 35 torneiras, tem uma sempre com cerveja portuguesa. A gente está sempre aberto a provar novas cervejas, aliás, muitas a gente prova e acaba colocando à venda”, explica Neko.
Se têm saudades da programação cultural? Correto e afirmativo, mas com um bar no coração de Lisboa não é assim tão difícil fazer uma ponte com as artes. Se há uns anos, chegaram a levar músicos portugueses ao Brasil, desde que vivem em Portugal, já apoiaram a vinda de Martinho da Vila e Milton Nascimento. Por estes dias, promovem leituras no Delirium Café, pela voz de atores portugueses e brasileiros. Existe a possibilidade de expandir o negócio para Madrid, prova de que as relações com os belgas vão de vento em popa. Quando acontecer, se acontecer, não há nada para repensar. Portugal continuará a ser a casa deles.
As flores touxeram-na até Lisboa
Marina Ortiz Caiuby nunca tinha imaginado um futuro tão florido, pelo menos, não num sentido literal. Durante sete anos, trabalhou num banco, em São Paulo, metrópole colossal com mais habitantes do que Portugal inteiro. Mas a estabilidade acabou por ceder ao desejo de mudar de continente. O apelo de vivenciar um novo contexto cultural, aliado ao facto de o marido ter nacionalidade europeia, falou mais alto e o casal acabou por mudar-se para Barcelona. “Me apaixonei pela cidade, em parte porque, assim que terminasse o meu mestrado, podíamos escolher morar em qualquer parte da Europa”, recorda ao Observador.
Foram quase dois anos a viver na capital catalã e durante esse período conheceu uma mão cheia de portugueses. Lisboa tornou-se um tópico de conversa frequente e Marina tinha de ver com os próprios olhos. “Tinha vindo há uns quatro anos. Quando voltei, no início desse ano, o país estava completamente diferente, muito mais movimentado, com o comércio mais aquecido, gente do mundo inteiro. Sentei num café e todo o mundo falava outras línguas”, continua. Voltar ao Brasil (e à banca) já não era uma hipótese, mudar-se para Lisboa era uma possibilidade cada vez mais real. Com o marido destacado para trabalhar em Portugal, Marina só tinha de encontrar a área certa para se tornar numa empreendedora. “Comecei a pesquisar em diversas áreas, mas sempre algo que trouxesse felicidade e bem-estar às pessoas. Pensei no desporto, depois cheguei às flores e às plantas. É um detalhe muito simples que, em casa ou no escritório, tem essa capacidade de melhorar o humor, diminuir o stress e de incentivar a memória”, explica.
Entretanto, conheceu Nicolas, descendente de uma família há décadas ligada ao cultivo de flores, na Guiana Francesa, ou seja, o melhor parceiro de negócio que podia encontrar. Ticolas, a startup que criaram arrancou em abril deste ano, quando Marina ainda estava em Barcelona. Em junho, mudou-se definitivamente. Sem um espaço físico, a relação com os clientes acontece exclusivamente online. Arranjos florais, plantas de interior (serviço adicionado em julho), serviços de subscrição e guias para melhor cuidar de cada espécie fazem parte desta plataforma que já garante entregas em todo o território continental.
A empreendedora fala num fenómeno que só agora está a chegar a Portugal. No caso das flores, não ter uma loja permite ainda encurtar a cadeia e aumentar a durabilidade dos espécimes — diz que ganham até sete dias de viço. “Vamos diretamente no produtor, que entrega na casa do cliente”. A Ticolas é a prova de que até um negócio que começa na terra tem lugar num co-work de uma cidade grande. No Beato, a empresa dá os primeiros passos dentro da Demium, uma incubadora espanhola com escritórios em Lisboa. Portugal é, em si, uma rampa de lançamento. “Temos planos para crescer e uma das características de todas as startups que nascem em Portugal é que elas nascem para se internacionalizarem”, prossegue.
Mas que não haja ilusões. O sucesso do negócio é só uma parte do pacote, a outra é um dia-a-dia vivido numa cidade segura e soalheira, mais especificamente no bairro de Campo de Ourique, onde ir ao mercado se tornou num programa semanal. “Sou muito feliz aqui. Pego o carro e em duas horas chego praticamente ao país todo”, refere. São as vantagens de um pequeno território, que Marina sempre viu como acolhedor. A impressão não mudou, muito menos agora que, tal como a maioria dos portugueses, trabalha para fazer crescer o país.
Moda de praia e sustentabilidade num estúdio de design a quatro mãos
Se há coisa em que o Brasil bate Portugal, e com uma larga margem de avanço, é na moda de praia. São décadas de tradição e de desenvolvimento de uma indústria para a qual só acordámos há menos de dez anos. Que o digam Maira e Vitória, duas paulistanas que, depois de terem frequentado o mesmo colégio, ainda durante a infância, se reencontraram em Lisboa. Não vieram juntas, tão pouco com o objetivo de criar a própria marca de biquínis e fatos de banho. Esse viria a ser um plano b, na realidade, bem mais promissor do que ficar à espera de que o mercado de trabalho português absorvesse uma técnica de marketing e uma designer de moda.
“Eu vim pensando em continuar atuando na minha área, talvez numa agência de publicidade. Confesso que sinto ainda uma grande limitação no mercado, tem muito pouco espaço para uma mão de obra especializada e as agências são estruturas muito pequenas. Ao mesmo tempo, pensei em criar a minha própria história e não ficar sempre trabalhando para a marca dos outros” conta Vitória Doyle ao Observador. Maira Martins, a amiga de infância e agora sócia, veio para fazer um mestrado, mas a possibilidade de construir um projeto próprio veio muito antes da conclusão do curso. Através de amigos em comum, as duas reencontraram-se em Lisboa, poucos meses depois de terem aterrado.
“O facto de a gente se ter encontrado mudou o rumo das duas. Era um sonho de ambas”, continua Vitória. “Existem muitas marcas de beachwear, mas que, na nossa visão, não são muito autorais. Na estamparia, nos materiais, na modelagem — tinha espaço para trazer algo diferente”, conclui a jovem empresária de 30 anos. Ainda em 2017, ano em que as duas, por coincidência, trocaram São Paulo pela capital portuguesa, começaram a discutir uma linha de estilo e uma identidade para a marca. Em março de 2018, já havia um nome — Studio Areia — e uma coleção, a primeira, pronta a produzir. Mas onde? “Felizmente, a gente encontrou uma fornecedora que lidera o mercado. Portugal perdeu muito para a Ásia, foi difícil encontrar quem fizesse esse tipo de produto. A gente achou e com a mesma qualidade que no Brasil”, explica Vitória.
Em agosto, a primeira coleção foi lançada, composta por quatro fatos de banho e dez biquínis. Foi um exercício comedido, em que as duas criativas tentaram encontrar um equilíbrio entre as próprias ideias e um estilo mais português. Os folhos impuseram-se, mas Vitória e Maira responderam com uma modelagem e padrões mais elaborados. “Soava a novidade”, admite. Com a sustentabilidade no topo da agenda, o Studio Areia não podia deixá-la de lado. Produziu a primeira coleção num único material, o econyl, uma licra feita a partir de resíduos de plástico retirados do oceano.
Este ano, a segunda coleção seguiu o mesmo princípio, apenas com um pouco de brilho à mistura. Sem os receios de não agradar ao mercado, arriscaram num estilo mais próprio e também em mais peças. Com loja online e um showroom da Estrela, as duas empreendedoras focam-se em resultados, mas também numa moda mais consciente. “Portugal esteve muito focado na fast fashion, roupa barata, quase descartável, mas as pessoas estão começando a se abrir para novas marcas, a investir mais no produto, a entender a origem e a história”, defende. Tirando algumas vendas pontuais, a Europa continua por explorar. A viabilidade da marca passará por explorar o potencial dos mercados espanhol e italiano. Neste momento, 30% da produção ruma ao lado de lá do Atlântico, mas nada que as faça repensar o futuro.
“O Brasil não vive um momento muito interessante. Tem a violência e as questões económicas e políticas e isso nos fez questionar onde a gente estava vivendo. Eu estava bem profissionalmente, mas não estava satisfeita. Deixei tudo, vim e encontrei aqui uma paz e uma vida maravilhosa”, recorda Vitória. Para ela, que tem ascendência portuguesa, foi mais fácil. As vindas a Portugal sempre foram frequentes e há muito que se imaginava a viver no país. No Brasil, chegou a trabalhar em marcas como a Farm e a Francesca Romana Diana, tal como Maira. No dia-a-dia em Portugal, é fácil dar de caras com amigos e conhecidos que tomaram a mesma decisão. Uma espécie de legitimação da grande mudança que fizeram em 2017. “Nenhuma das duas está a pensar ir embora. A Maira está terminando a tese, eu estou trabalhando com retalho. Estamos construindo uma história muito legal”.
Brigadeirando: uma lição de marketing e brigadeiros
No Brasil, são uma espécie de elemento democratizador. Em qualquer festa, seja qual for o estrato social, lá estão eles — guloseimas multigeracionais, invariavelmente esféricas e doces. Por muito que estivesse ciente de ambas a dimensões dos brigadeiros — a social e a gastronómica –, Carolina Henke nunca tinha pensado em lançar-se num negócio desta espécie. Há 12 anos, fez as malas e mudou-se para Portugal. Nada era definitivo, pelo contrário. Veio para fazer um mestrado em Marketing, mais precisamente na Universidade da Beira Interior. Trocar São Paulo pela Covilhã tem muito que se lhe diga e o choque foi inevitável. Ao fim de um ano, foi para Lisboa, onde começou a trabalhar com o Café na Fábrica, na Lx Factory. A estratégia de marketing que desenvolveu valeu-lhe uma proposta praticamente irrecusável — ficar com o negócio.
Aceitou e, naquela cozinha, começou a pôr em prática as primeiras receitas. Mas criar uma marca própria ia requerer muito mais do que isso, era preciso fazer destes brigadeiros os mais apetecíveis. Depois de trabalhar a imagem e a comunicação, Carolina criou a Brigadeirando em novembro de 2015, cinco anos depois de ter conquistado o seu primeiro negócio. “Para mim, o Café na Fábrica é, até hoje, como um filho mais velho”, refere. Ao mesmo tempo, a forma como os brigadeiros iam ser recebidos era incerta. Se no Brasil eram imprescindíveis a qualquer festa, por cá, era preciso abrir espaço para eles. A primeira loja nasceu ali mesmo, na Lx Factory, e nenhum dos receios da jovem empresária se confirmou. Logo nos primeiros meses, a faturação superou a expectativas. “Sabia que ia ter muita concorrência no futuro, por isso tinha de valorizar a marca, de investir nas nas caixas, no logótipo”, explica.
A Brigadeirando caiu nas boas graças dos lisboetas e o prosperou. Em dezembro do ano passado abriu dois novos os espaços — uma segunda loja no Príncipe Real e um laboratório, também na Lx Factory. Por estes dias, é lá que se testam as receitas para o próximo Natal. De segunda a sexta-feira, a cozinha funciona à porta fechada, reservada a experiências com novos ingredientes e combinações, e abre ao fim de semana para que os clientes possam provar os últimos avanços. Carolina continua a pôr as mãos na massa. Mais do que a venda direta nas lojas, as encomendas representam hoje o grosso da faturação. Das variações da receita original, como é o caso dos brigadeiros de morango, framboesa, amendoim e crème brûlée, ao uso dos mesmo ingredientes para criar novas receitas — a tarte recheada com brigadeiro, o bolo de pistacho, os mini cheesecakes e os salames são só uma ponta de um livro de receitas que continua a crescer.
Há 12 anos, a receção era diferente do que é hoje. “Não conhecia ninguém, foi muito difícil no início. Na faculdade, eu era a única brasileira e a descriminação era muito maior”, afirma a empresária, ao recordar todas as entrevistas em que o sotaque foi motivo de exclusão. “Hoje, o preconceito existe mas é muito menor”, admite. Carolina fala de uma nova vaga de brasileiros que ruma a Portugal — uma geração jovem, criativa e com formação que ajudou a combater o preconceito. “Vêm à procura de uma vida melhor, mas não financeiramente. Os salários continuam a ser baixos, comparando com a Europa mas também com uma cidade como São Paulo”, explica.
Olhando para trás, é impossível comparar os dois povos, sobretudo, quando já se apercebeu de uma boa parte dos traços dos portugueses. “Portugal me fez descobrir a minha essência, me fez ser o que sou hoje. As pessoas são muito mais verdadeiras aqui e, por outro lado, menos materialistas. No final, acho essa mistura muito boa. Costumo dizer que nós somos mais simpáticos e menos educados e os portugueses menos simpáticos e mais educados”, continua. Admite que, há dez anos, foi o negócio que a prendeu à terra onde só queria vir de passagem. Com os brigadeiros, veio a qualidade de vida e uma família constituída em solo português. De repente, a realização era completa, ao ponto de afirmar, hoje, que se sente mais portuguesa do que brasileira. O sotaque é que não foi a lado nenhum, ficou onde estava, juntamente com a mão para os doces.
Brasileiros em Portugal: pressa, calma e outros contrastes
“A gente saiu do Brasil meio refugiado”, admite Rique Inglês, tatuador e proprietário da Wozen, galeria de arte pouco convencional, inaugurada em junho de 2016. As declarações são de intervenção. Tem 32 anos, vive em Portugal há quatro, mas não é por isso que deixa de acompanhar e de sentir, quase como na própria pele, os desenvolvimentos políticos e sociais no seu país de origem. Mesmo a milhares de quilómetros de distância, a ascensão de Bolsonaro é uma pedra no sapato. “O nosso presidente é um racista, homofóbico, fascista, misógino. Se já era difícil fazer arte, hoje não consigo imaginar. Gente muito boa está saindo do Brasil, muitos mais brasileiros virão para cá. Ao mesmo tempo, esse é um momento histórico para a arte se posicionar”, continua.
Rique não está sozinho. À frente do espaço está também João Marcus Cavalcanti, o amigo de adolescência que chegou a Lisboa no ano seguinte. “As pessoas têm uma ideia de que o Brasil é um lugar de liberdade, mas é uma prisão a céu aberto”, afirma, remetendo para os problemas de segurança no país. Por cá, não quiseram abrir só mais uma galeria. Depois de mais de dois anos a ocupar a loja do lado com residências artísticas, a Wozen está agora a voltar-se para um calendário de micro residências, mais curtas e proporcionando um espaço de trabalho para os artistas numa fase bem mais inicial do processo criativo. As também brasileiras Marta Rosas e Mari Cecchini (na fotografia de abertura) fazem parte de uma primeira leva de autoras e usam o espaço para trabalhar num projeto próprio de fotografia e vídeo, o Casulo. Entre as obras que ocupam as paredes, um exército de plantas à entrada, a instalação que está na montra e um estúdio de tatuagens que funciona no andar de cima, a pluralidade das expressões artísticas percebe-se de imediato.
“Não queremos ser aquela galeria preocupada em vender, queremos dar liberdade total aos artistas”, refere Rique. A disrupção com os conceitos predominantes é total. Expanded Eye, dupla britânica que também acaba de se mudar para Lisboa, é um bom exemplo. As peças que deixaram na galeria, após meses de residência, são o resultado da colaboração de todo o bairro. As cadeiras velhas (e outros objetos de madeira inutilizados) foram trazidas pelos vizinhos e deram origem a obras escultóricas que inspiraram o duo, que também tatua, a passar a arte para a pele.
Ao ouvi-los falar, é impossível não visualizar uma espécie de sonho português. Nele, Lisboa é uma Silicon Valley das propostas artísticas e culturais — com espaço e tempo para que projetos como este possam florescer, mais barata do que metrópoles fervilhantes como Londres e Paris. Um contexto, em tudo, diferente do Brasil. “A filosofia de empreender no Brasil é muito acelerada. O tempo que um negócio demora a ter uma identidade não existe. É a filosofia norte-americana. Abres um bar e já estás a pensar no franchising“, explica João, demonstrando a inviabilidade de um projeto como a Wozen do lado de lá do Atlântico. Pelo contrário, a vinda para Portugal exigiu uma dura adaptação. Tudo parece drasticamente “desacelerado”, usando a expressão da dupla. Rique já cunhou, entretanto, uma outra — “capital paciente”.
Ainda assim, não se podem queixar. A cidade soube receber esta proposta cultural, os potenciais compradores entram naturalmente, atraídos pela atmosfera incomum. Há poucas semanas, puseram em funcionamento um bar de apoio, mais um pretexto para as visitas fortuitas. Sem o espaço do lado, a próxima residência artística será em Marvila. De portas abertas a uma nova geração de criadores, a brasileira Maria Lynch será a próxima a dar provas de talento aqui.