Reportagem em Luanda
De cócoras, em cima de uma pedra, vê as crianças a brincar junto à cunhada Afonsa, que vende mamões, batata doce, banana pão. Está ali há minutos, sem perder o equilíbrio, sem perder um movimento do que se passa na rua larga de terra batida, no castanho que pinta quase todo o cenário. Deixou o Bié, no planalto central de Angola, há 22 anos, um ano e meio antes do longo conflito armado acabar. Veio “fugido da guerra”, à procura de segurança. Encontrou o sossego que buscava mas não o emprego que ainda não tem aos 46 anos. E, agora, já não tem medo da morte.
Augusto Sapala pode bem personificar duas das razões apontadas para fazer do Cacuaco o bastião da UNITA na província de Luanda. Aliás, este subúrbio da capital pode bem ser um espelho da estratégia que está a fazer do partido do Galo Negro “este vulcão de simpatia”, como lhe chama o antropólogo Cláudio Fortuna que está a marcar a campanha eleitoral angolana.
Já de pé, o pai de sete filhos, todos com menos de 15 anos, encosta-se à parede vizinha da “Nails”, o salão de manicure de fachada garrida, para contar que trabalha “por conta própria, uma conta que não rende quase nada”. Faz uma agricultura de subsistência: “Mandioca, milho, etc., que dão para alimentar a família, o que não se vende no mercadinho, vai à moagem, faz-se uma fuba e o funge para comer com peixe seco, é assim que a vida do angolano vai”. De rosto impenetrável num colarinho tão gasto que já perdeu o azul da camisa, Augusto fixa os olhos em frente quando fala do governo:
“Tudo tem o seu tempo determinado. Quando as coisas terminam tens de abandonar o lugar. Podes ficar 40, 50 anos, mas chegará o tempo que tens de deixar o lugar” A “hora é agora” como diz o lema da UNITA? “Pode ser agora, sim. O povo está saturado com tudo, com todos”. Exemplifica com um bairro vizinho que “não tem hospital, não tem escola, os filhos não estudam, as pessoas não têm emprego, alguns trabalham mas não têm salário e isso leva à frustração de muita população em Angola”.
Relata como as pessoas com quem fala “quase todas só querem que haja mudança no dia 24, mais nada”. Como ele.”Eu com 4o e tal anos não trabalho nem nada, quero mais o quê?”, pergunta enquanto o tom de voz vai subindo. “Se os meus avós já foram aldrabados os meus pais já foram aldrabados, eu também cresci na mentira, estou a envelhecer na mentira, o que espero mais dessa pessoa [partido]?”
Augusto socorre-se de uma ilustração para explicar que a paciência se esgotou: “Quando mandas uma criança andar um pouco mais e ela anda, e depois ela vê que já andou um bocado e diz ‘Pai, já ultrapassámos aquela árvore, como é que é?’ e o pai diz “Vamos andar mais um pouco”, vai assustar a criança, os pés encheram e ela senta-se no chão e já não anda mais”.
Foi isso “que se passou com todo o povo angolano”, diz. “Um país tão rico e encontra homem saudável a colher o pão na lixeira. Se quem prometeu não consegue dar o pão, vai esperar o quê? Nada. Por isso temos de mudar o governo”.
João Lourenço “já está a batotar”
Este morador do Cacuaco acredita que daqui a cinco dias os votos nas urnas vão tirar o MPLA do poder. O rosto vai ficando mais expressivo enquanto diz: “Se não for assim, é porque foi batota. Já há batota mesmo agora, a minha cunhada vive aqui, o nome dela saiu [há 14 mil pessoas espalhadas pelo país munidas de tablets que imprimem um papel com a indicação da mesa de assembleia de voto a quem precisa de ajuda) para ela ir votar a 8 quilómetros, outros que vivem na Cerâmica (um bairro) e o nome saiu para ir votar no Bengo, a 15 km, será que vão pagar transporte para irem votar? Como é que eles vão? Não têm dinheiro. Isso é batota”.
Não espera pela pergunta: “Essa é a razão pela qual nós não vamos aceitar o resultado que vai nos dizer que o MPLA ganhou. Nós vamos reivindicar”. Como? “Na rua, sim. Vamos sair à rua, sim, porque ele [João Lourenço, presidente do MPLA e atual Chefe de Estado] já está a batotar”. Mantém os olhos no horizonte para dizer que o medo não é para aqui chamado: “Se nos matam matam-nos, porque estar em casa vai nos matar, estamos a morrer. Nós já vamos morrer, a morte é a mesma, não tem diferença”.
Angola. A última semana de uma campanha tensa mas pacífica, onde cresce o medo do “day after”
A pobreza, a falta de saneamento básico, de estruturas suficientes de saúde e educação são alguns dos motivos que fazem com que os municípios periféricos que muitas vezes se chamam erradamente bairros (estes fazem parte daquela divisão administrativa) se sintam mais próximos da oposição política, refere Cláudio Fortuna.
Cacuaco sabe bem o que isso é. “Aqui não se vive, sobrevive-se”, diz António de Sousa, um dos elementos do projeto Agir — que nasceu de uma associação cívica muito conhecida em Angola, a Omunga, e que luta pela participação apartidária dos cidadãos no poder local, explica esclarece Fernando Sakuayela, o líder deste grupo da sociedade civil.
Tal como Angola, Cacuaco — um dos 174 municípios do país e o quarto mais populoso, logo depois dos vizinhos, Vian, Luanda e Cazenga, com mais de um milhão e 400 mil habitantes — tem todas as condições para não ser pobre. “Tem mar, tem rio, tem terrenos agrícolas, tem inertes (pedra, brita, areia)”, enumera António de Sousa antes de concluir: “É dos que tem mais recursos naturais e é o mais esquecido”.
Pode ter tudo isso mas faltam-lhe duas coisas, esclarece Fernando Sakuayela, o líder deste grupo da sociedade civil que atua neste município. A primeira é o poder local (Angola não tem autarquias instituídas, foi uma das promessas não cumpridas de João Lourenço): “Com uma distância politico-administrativa fica difícil perceber as necessidades reais” da população e “os recursos naturais não beneficiam o bem estar da população”.
A segunda é a existência de uma “gestão discriminatória”, pela negativa, por parte da administração provincial e logo da central, denuncia Fernando Sakuayela. Não se julgue que este licenciado em História que se dedica à causa cívica está a exagerar, “há de facto uma discriminação” em relação a Cacuaco, confirma o politólogo Sérgio Dundão ao Observador.
O responsável pela Agir dá dois exemplos. O primeiro, que “chocou bastante”, foi a menor afetação de verbas no orçamento de 2020 para o Cacuaco do que ao município da Dande (Bengo), por exemplo, “de longe inferior em termos demográficos e geográficos”.
O outro, de há quatro meses, teve a ver com uma política de transportes públicos em que os outros municípios receberam autocarros e Cacuaco ficou de fora, recorda Fernando Sakuayela. A Agir promoveu uma petição pública a argumentar que era um dos municípios mais pobres e o que tem maior população estudantil pelo que não fazia sentido não terem transportes para Luanda (a 40 minutos de um trânsito exigente) e ameaçava fazer uma manifestação. “O governo provincial pediu calma e dez dias para resolver o assunto” e depois chegaram os autocarros.
Estudo e contestação, uma herança das igrejas do Planalto Central
Fernando Sakuayela pensa que esta gestão diferenciadora tem motivos políticos, é “uma forma de penalização dos munícipes que eventualmente não tenham muita simpatia pela forma de governação do país”. Há uma “espécie de abandono, uma política de distribuição da pobreza”, a “pouca afetação orçamental é complementada pela forma de aplicação de políticas públicas” como foi o caso paradigmático dos autocarros.
Cacuaco tem uma certa tradição contestatária, do município “saiu muita gente com veia revolucionária”, diz Cláudio Fortuna. Tal como de Cazengue (que tem votado mais MPLA) ou Sambizanga, origem de muitos elementos da elite do partido, incluindo o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, explica o investigador da Universidade Católica de Luanda. A diferença parece ser que no Cacuaco essa tendência continua a afirmar-se com muita intensidade até hoje.
Este “espírito contestatário mais forte” e ” uma grande propensão para o estudo” — Cacuaco “tem uma das populações de estudantes mais elevada de Angola”, (à volta da mesa do Agir, no bairro Ecocampos, estavam cinco elementos da associação, todos eles licenciados) — tem alguma coisa a ver com a densidade demográfica mas sobretudo com a raiz histórica, a mesma da UNITA.
A maior parte da população deste município veio, como Augusto Sapalala, do Planalto Central de Angola, Huambo, Bié, Benguela, território mãe do partido de Jonas Savimbi, fundador da UNITA, que ali nasceu. Chegaram no tempo da guerra e instalaram-se onde havia terreno para construir aponta Sérgio Dundão. Os chamados musseques que cresceram para verdadeiras cidades à volta da capital resultam deste fluxo migratório durante o conflito armado. Nesta zona fixaram-se sobretudo os ovimbundos, grupo étnico que marca claramente a UNITA, um pormenor nada despiciendo (ou já nem por isso), como veremos a seguir.
Na contexto colonial português, recorda Fernando Sakuayela, as missões das igrejas não católicas (a de Roma, ao abrigo da Concordata operava na totalidade do território) tiveram uma distribuição geográfica diferente e isso não foi irrelevante. Enquanto no Cuanza Norte, Malanje, Luanda, Bengo, de etnia Ambundu e fala kimbundu, se instalou a igreja metodista, e entre os bakongos no norte de Angola, Zaire,Uíge e Cabinda a igreja batista, o corredor central ficou para as missões evangélica, luterana, presbiteriana e adventista do sétimo dia.
A variedade de religiões “permitiu uma cosmovisão diferenciadora”, diz o historiador Fernando Sakuayela, esta “confluência de várias denominações” foi mais rica e deu sempre grande importância à educação.
Por isso, sublinha o líder do Agir, os “ovimbundos trazem para o Cacuaco (que já era habitado na zona costeira) uma população com propensão muito avançada para o estudo” e isso “faz com que tenhamos uma população estudantil mais alargada, é o município que tem mais escolas públicas, 80, fora as privadas”.
Manuel Fernandes, o rapaz do trote, cresceu e vai votar pela primeira vez
Ou seja, a primeira razão para o Cacuaco votar maioritariamente UNITA tem sido historicamente relacionada com a etnia mas essa explicação tem vindo a perder significado. “As novas gerações já não apresentam essa ligação forte aos valores dos nossos avós e pais ou etnias”, concordam Sérgio Dundão e Cláudio Fortuna. “Só falam português e dão mais importância a outros valores como a democracia, liberdade, emprego, os direitos sociais” afirma o mestre em Ciências Políticas pela Universidade Nova de Lisboa.
Por outro lado, continua o investigador angolano, já não há só uma etnia nas nossas famílias, “temos casado com pessoas de outras etnias” e, acrescenta Cláudio Fortuna, a composição dos subúrbios de Luanda não é homogénea. Com a crise imobiliária, “muita gente saiu do centro urbano para os chamados musseques onde era mais barato comprar a uma casa, e trouxe os seus hábitos, costumes e cultura que influenciaram os que já lá estavam”.
Sérgio Dundão faz questão de notar, por exemplo que há uma parte do Cacuaco, a que está mais junto à estrada, com mais acesso aos equipamentos sociais, que vota MPLA.
Se esta origem étnica pode ter no passado explicado o voto na UNITA, os investigadores consideram que atualmente é o peso da precariedade e da falta de água e luz e outras condições sociais que fazem as pessoas ficarem mais próximas da oposição. E a favor dessa tese conta a composição demográfica, metade da população de Angola é jovem e Cacuaco não é excepção à regra. “E eles são descomplexados, pensam pela própria cabeça e não estão agarrados ao passado”.
Manuel Fernandes tem 32 anos, parece ter 22, e vai votar pela primeira vez. Veio de Benguela aos 12 anos porque pensou que em Luanda, já que era a capital, poderia concretizar os seus sonhos. Desde pequeno que ouve os pais dizerem-lhe que tinha de estudar porque o futuro do país estava nas suas mãos e de jovens como ele.
Não foi no Cacuaco — “município onde a bandidagem tem aumentado muito” — que concretizou os projetos. Mas foi aqui que deu seguimento a outra experiência da infância, a de “fazer trote”. O trote é o que poderíamos dizer o pré-histórico de uma trotinete. É uma placa de madeira com uns rolamentos, rodinhas, algumas com uma corda que se puxava. Não a do Manuel. “Sentava uma criança lá e ia de empurrão, eu fazia girar aquilo e uma voltinha no campo davam-me 5 kwanzas e eu ia juntando”. Depois conseguiu uma bicicleta e o “giro pelo campo” já rendia 10 kwanzas.
Com dois filhos, agora ganha a vida “a trabalhar de mototáxi”, dá para “poder sobreviver” até conseguir voltar a estudar. Fez o ensino médio em ciência económica e jurídica com o objetivo de arranjar emprego para depois pagar a faculdade. Sem uma coisa não teve a outra, o mototáxi não é emprego, é trabalho.
“Nunca tive iniciativa de votar, mas desde que comecei a encarar o país e a ouvir os outros que têm votado para escolher o seu presidente para fazer algo que o povo quer e depois ao correr do tempo isso não acontece, eu fiquei revoltoso” revela. “Este ano também tenho que votar porque tenho que escolher o meu presidente”, porque Angola “não está bem, em muitos sítios “as pessoas não têm água, não têm energia e ainda temos pessoas a sobreviver da comida que está no lixo”.
A UNITA é a opção, mas o que Manuel quer mesmo é mudança. Mudar é um verbo que lhe enche a voz várias vezes, na conversa com o Observador. Mudar é o mantra da oposição ao MPLA que anda ao lado de uma outra palavra: “alternância”.
“Não é porque o João Lourenço não está capacitado, não é isso, o que está dentro de mim é que haja um outro presidente, fazer uma experiência ainda na vida, haja troca, se não estiver a trabalhar bem passados cinco anos vamos fazer outra escolha”. O MPLA já governa “há mais de 46 anos, é algo aborrecido, algumas crianças ficam a pensar que este é o partido mãe, que o partido é que é Angola e não é, ele deve ser só um partido”.
“O povo está de olhos abertos”
Afonsa mal abre a boca, abana mais a cabeça, responde telegraficamente, mas há um momento em que ganha coragem. Mãe de 4 filhos diz claramente: “Vou votar. Isto está mau”. E vem de novo a frase que o Observador ouviu em quase todos os interlocutores no Cacuaco: “As pessoas andam nas lixeiras para ter o que comer”.
Isabel não quer dizer a idade, não aparenta mais de trinta anos, tem dois filhos e vive no Cacuaco “desde o primeiro dia” em que os pais a “puseram no mundo”. Não se habitua a ver a fome à volta dela, crianças que não têm mata-bicho (pequeno almoço) para comer, mães com os filhos às costas que lhe batem à porta esfomeadas.
Com um pequeno comércio caseiro, mostra-se “revoltada” com o que se passa, a falta de água, as pessoas que não têm o que comer, as que comem do lixo, o preço do saco de arroz de 25 quilos, que passou dos seis mil kwanzas para os 15 e agora, “que as eleições estão próximas, baixou para os sete mil”. A confiança no governo é tão reduzida que ela diz que muitas pessoas estão a dizer que depois das eleições, o arroz vai subir de novo e eles vão ter de devolver ao Estado a diferença do arroz que compraram a preço mais baixo.
Porque o “povo está com os olhos abertos” diz que tem “de fazer uma mudança mesmo drástica” no poder.
Simão Hossi é ativista há 38 anos, voluntário e jornalista freelancer junto das comunidades locais, com um trato doce e calmo. Com larga experiência em voluntariado fora do país, sempre integrado em organizações internacionais, este angolano de 38 anos que vive no Cacuaco tem trabalhado sobretudo nos municípios de outras províncias no sul de Angola, e repete o mesmo diagnóstico: “As pessoas sentem-se mesmo agastadas pelo nível acentuado de pobreza”.
Na zona sul, “fala-se da fome endémica, até ao ano passado havia pessoas que morriam de fome, sem nada para comer, na capital do país é muito comum ver pessoas sãs, a ter que recorrer aos contentores do lixo para terem que comer”.
Mais do que tudo, as “pessoas querem experimentar uma coisa nova, querem ver o que outro partido pode fazer”. Não é “porque sejam militantes ou apoiantes da UNITA mas sentem que a única hipótese mais próxima de mudar e chegar ao poder” é com Adalberto Costa Júnior.
A “Frente Patriótica Unida [plataforma eleitoral promovida pela UNITA que integra o partido Bloco Democrático, o projeto PRA-Já Servir Angola, representantes de algumas associações de intervenção cívica vem no momento certo, em que parte da sociedade civil (aquela que não está a apoiar o MPLA) se revê nos seus objetivos e interesses e vê aí uma alternativa com mais força para vencer”, diz o ativista.
“Esta aliança é o que de mais positivo aconteceu na nossa política nos últimos anos”, congratula-se Simão Hossi, enquanto acompanha o Observador a um exemplo visível desta estratégia da UNITA em Cacuaco.
Hitler, de preso político para as listas de Adalberto
Umas ruas mais acima desta associação, numa estrada já com parte de asfalto mas ainda no bairro Ecocampos (o município tem vários bairros) Hitler Samussuku recebe-nos numa sala de formação cívica à volta de uma mesa com o típico pano angolano.
Faz parte do famoso grupo dos 15+2, os “revus” (de revolucionários) que José Eduardo dos Santos prendeu em 2015 e que tiveram de recorrer à greve de fome num processo muito mediático internacionalmente para serem libertados.
O coordenador da Terceira Divisão, movimento artístico (muito ligado ao hip-hop), cívico e social, nascido em 2000, está nas listas da UNITA como candidato a deputado. Faz questão de realçar que não passou a ser militante do partido, mas que se revê nesta frente patriótica “que juntou forças ativas da sociedade e algumas individualidades, alguma até vindas do MPLA como Francisco Viana, para um projeto comum”.
A UNITA “não só apresentou o melhor programa como a melhor proposta de lista, a mais inclusiva”, insiste. “Gostava que o MPLA nos pudesse surpreender também na sua lista, mas não, o que mostra que estão mesmo fechados na continuidade de tudo o que fizeram no passado. Poderia pelo menos ter integrado pessoas que estão na sociedade civil que os apoia”.
Com o seu boné permanente, Hitler lamenta que em Angola não haja uma tradição de acordos e compromissos entre os partidos como se vê noutras partes do mundo como a Europa. “Temos muito em Angola a exclusão dos outros, quando um partido ganha ganha tudo e os que perdem perdem tudo” e isso não permite que o país se desenvolva.
Sabe que vai perder a “legitimidade de intervenção cívica pelo facto de estar ligado a um partido político” mas ao mesmo tempo está consciente da responsabilidade que terá, caso seja eleito, perante os seus “amigos da sociedade civil”.
Hitler ainda não sabia, mas a essa mesma hora, a 400 quilómetros e mais de sete horas de carro de distância, João Lourenço fazia uma divisão de águas na sociedade civil. Depois de acusar um político, sem o nomear, de não ser patriota e estar a defender interesses externos, sendo uma mera “boca de aluguer”, disse ter encontrado conforto noutra área. “Resta-nos a consolação de que as igrejas e a sociedade civil, a verdadeira sociedade civil — não aqueles bandidos, lúmpenes, a quem eles chamam de sociedade civil —, a verdadeira sociedade civil, organizada juntamente com as igrejas, essas sim, têm uma postura patriótica”.
A quem se estava a referir João Lourenço? “A uma franja de jovens que se faziam passar por contestatários, como cidadãos apartidários que faziam manifestações anti-governo, sempre sob a capa de angolanos independentes que pretendiam mudança, etc. Veio a saber-se depois que estavam ligados à UNITA e que era esta que os atiçava, os empurrava para as ruas. Logo, era uma falsa sociedade civil, eram simples lumpens, simples bandidos. Alguns aparecem agora na lista eleitoral da UNITA como candidatos a deputados”.
Sem conhecer ainda estas palavras, Hitler já comentava que o facto de ter tomado posição política o tornava alvo de condenações. “Não quis ficar em cima do muro, como muitas ONG”. A FPU “é um projeto de curto prazo, tem objetivos bem traçados, como a revisão da Constituição da República, a criação de eleições legislativas, presidenciais e autárquicas, por exemplo, depois desintegramos e cada um vai seguir o seu próprio caminho, agora há que aproveitar essa janela de oportunidade para endireitar o Estado”. O “MPLA atomizou a sociedade, não gosta que os angolanos estejam unidos por isso é que a FPU os preocupa, gosta que estejam separados porque assim consegue manipular e fazer a manutenção do poder político”, condena.
Num discurso muito crítico em relação à governação de João Lourenço, que considera pior do que aquela que o prendeu, a de José Eduardo dos Santos, Hitler lembra, por exemplo, os presos políticos desta governação (o ex-Presidente nunca foi para eleições com presos políticos e só em Luanda há dois há oito meses na cadeia sem acusação feita). E, como não poderia deixar de ser, a repressão policial das manifestações como em Cafunfo, e não só, que causaram mortos. Para que não restem dúvidas, invoca o relatório da Amnistia Internacional que deu conta de pelo menos sete mortes por violarem as regras do combate à Covid-19 e pelo menos dez no caso de Cafunfo.
Angola/Cafunfo. Amnistia Internacional confirma pelo menos 10 mortes pelas forças de segurança
A UNITA libertou-se de um nacionalismo tribalista?
Que partido é este que conseguiu congregar partidos, ativistas e outras individualidades não militantes para o seu meio e parece estar a galvanizar as ruas de Luanda, sobretudo os jovens, e continua a ser o nome forte de Cacuaco?
“Não é seguramente o mesmo partido da Jamba. Ou melhor, a estratégia definida pelo seu líder nada tem a ver com o modus operandi do seu fundador, Jonas Savimbi”, defende o antropólogo Cláudio Fortuna que tem estado a trabalhar nos arquivos da UNITA. No mesmo sentido segue o politólogo Sérgio Dundão, que fala de uma abertura sem precedentes de um “partido hermético e fechado”.
Adalberto Costa Júnior, um mestiço católico, o primeiro a liderar um partido em Angola, vai em “contramão com uma tendência da UNITA”, salienta Sérgio Dundão. Historicamente, o partido sempre “teve dificuldades em lidar com os mestiços e os brancos, contrariamente ao MPLA, fundado por mestiços e brancos”, realça Sérgio Dundão.
É a partir da guerra civil, em 1975, que Jonas Savimbi acentua o seu nacionalismo tribalista, numa viragem pan africanista, em que “o partido se torna no partido da elite dos ovimbundos. Este pendor foi-se acentuando e afunilando, não eram quaisquer ovimbundos que poderiam chegar à liderança, por exemplo, mas sim os nascidos no Bié, tal como “o mais velho Savimbi”.
Esse “garrote”, ligado a uma sociedade fechada como a que vivia na Jamba até 1992, levou mesmo alguns nomes históricos da UNITA como Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes, a abandonarem o partido, recordam Sérgio Dundão e Cláudio Fortuna.
O primeiro momento de abertura dá-se em 1992, depois de assinado o acordo de paz um ano antes em Bicesse, Portugal, por Jonas Savimbi e José Eduardo dos Santos. Como todos os partidos tinham que estar sediados em Luanda, por imposição legal, a UNITA, muito conotada então com o meio rural, teve de abandonar o seu reino na Jamba.
Na cidade, “algumas famílias da UNITA que se sentiram oprimidas, apertadas” pelo pulso autocrático com que Savimbi, “fruto do contexto da luta armada comandava o partido” tiveram “alguma liberdade e oportunidades que não tinham tido antes”.
Em 1992, Savimbi recusa os resultados eleitorais, estala a violência em Luanda, parte da cúpula da UNITA é dizimada e o líder volta para o mato, para o Andulo e Bailundo. Mas quando regressa para o Huambo, Savimbi já não reedita a mesma sociedade fechada da Jamba, diz Cláudio Fortuna. “Proclamando-se arauto da democracia, não poderia não começar a assumir algumas práticas mais democratas”, insiste o investigador.
Mas, na sua “essência continuou a ser um partido muito tribalista”, continua Sérgio Dundão. A mudança não veio com Isaias Samakuva, também natural do Bié, que assumiu a liderança do partido desde 2002, ano da morte de Savimbi até 2017, as últimas eleições gerais de Angola, quando saiu pelo seu pé.
A lufada de ar fresco, diz, chegou com Adalberto Costa Júnior, do Huambo/Benguela, cuja estratégia é a de uma UNITA “mais virada para Angola, para fora e não para dentro do partido, mais arejada, mais moderna e aberta”, como analisa Sergio Dundão.
Esta sua postura e origem trouxe-lhe alguns problemas internos. Eleito com 54% dos votos, vê a sua eleição ser impugnada pelo Tribunal Constitucional (com o argumento de ser estrangeiro por ter também a nacionalidade portuguesa) numa ação interposta por elementos do seu próprio partido. No novo congresso em que concorre sozinho obteve uma vitória de 96% e via livre para implementar a sua estratégia de inclusão.
Sergio Dundão não acredita que esta abertura a outros partidos e à sociedade civil, em que a UNITA na verdade é “uma barriga de aluguer”, não esteja a causar divisão dentro do partido.
A inclusão de independentes e membros de outros partidos na lista às eleições, sobretudo a de uma figura carismática como Abel Chivukuvuku, que figura como número dois — ou seja, se a UNITA ganhar, será vice-presidente — não terá sido do agrado de todos. Alguns têm muita dificuldade em esquecer que quando deixou o partido, Abel lançou farpas dolorosas ao partido.
Nada disso, garante ao Observador Lukamba Gato, responsável pela campanha eleitoral do partido. “A matriz centro-esquerda da UNITA manteve-se e desde 2019, temos uma liderança mais ousada, um salto para o desconhecido que veio ao encontro das expectativas da sociedade civil e da população” assegura o general.
E, na sua opinião, é uma estratégia vencedora, porque “conseguiu dar voz ao povo, isto não é uma questão de partidos, mas sim de um lado que é o povo que está contra o MPLA”.
O que a UNITA vai ser depois de 24 de agosto ainda é uma incógnita. O ovimbundo Augusto Sapala, do Cacuaco, só quer que vença as eleições. De volta à sua posição de equilíbrio em cima da pedra, não está interessado em partidos. Manuel Fernandes, de Benguela, também não pensa na UNITA. Antes de se despedir, com o seu pólo amarelo da Lacoste, repete: “Eu só quero mudança, porque não experimentar uma coisa nova e ver o que é que vai dar?”
Isabel não sabe se vai acontecer, mas a sua esperança é a mesma de Manuel: “Entregamos só nas mãos de Deus para que o próprio Deus complete o que falta”.