“Aí é que você não está muito bem. Ainda na semana passada me caiu mesmo aqui à frente da cabeça uma pedra que se soltou das paredes. Não morri por um triz. Isto está tudo a cair, não vê? Olhe ali. E ali. Ali então está tudo podre”. Margarida Martins vai apontando indiscriminadamente para as paredes em redor, ao mesmo tempo que diz não ter dúvidas do risco que corre neste velho edifício do Cais do Ginjal, em Cacilhas, onde entra, diariamente, há três anos.
A mulher, na casa dos 60 anos, prefere ainda assim correr o risco, até porque, como diz, “a morte é certa” e ali sempre fica mais abrigada do frio, no inverno, quando vai alimentar as dezenas de gatos que se passeiam pelo cais, nas margens do Tejo. No verão já não faz frio junto ao rio, mas o hábito vence e acaba por se sentar no mesmo sítio.
“Até há dois meses ainda havia gente a morar ali na casa principal, mas a senhora, que sempre viveu lá, saiu em março e entregou a chave ao proprietário”, apressa-se a relatar Margarida Martins, explicando que têm sido os proprietários a pôr tijolos nas portas e janelas dos edifícios, nos últimos anos, e a tornar impossível a vida naqueles prédios que hoje mais não são do que um monte de paredes devolutas. Os telhados, esses, já não existem. Mesmo assim há quem continue a encontrar abrigo por estas bandas.
Margarida não se lembra do espaço industrial de outrora. Tudo estava fechado quando começou a ir para lá à pesca, não faz muitos anos. Já para Helder Gonçalves as memórias são outras e mais antigas. Agora com 69 anos, tinha 19 quando começou a pescar neste cais. “Há 50 anos ainda o Ginjal tinha vida”, lembra com alguma saudade. “Isto é uma miséria. Dá-me pena tudo estar ao abandono. Trabalhava aqui tanta gente”, conta o antigo trabalhador da Siderurgia Nacional, enquanto ajeita a linha no carreto.
Onde Helder Gonçalves está hoje a tentar a sorte para o almoço, antes atracavam arrastões (barcos de pesca com redes de arrasto) bacalhoeiros e outras canoas cacilheiras, fragatas e faluas, lembra-se bem. Mas já naquela altura havia autorização para as pessoas pescarem. E onde agora se veem fachadas de edifícios com janelas e portas tapadas com tijolos, salvo uma ou outra exceção, antes operavam armazéns de apoio à frota bacalhoeira, tanoarias, armazéns de carvão e de outros mantimentos para abastecimento da frota pesqueira, armazéns de vinho, azeite e vinagre e fábricas de conservas de peixe. Havia também casas, quintas, tabernas e casas de pasto.
No século XIX nascia o Cais do Ginjal
“Isto tinha uma vida, queira lá saber. Era quase tudo homens, mas também havia algumas mulheres a trabalhar nas cantinas”. “Ali”, diz o pescador já de costas voltadas para o rio, ao mesmo tempo que aponta para o fundo à direita, “era o ti Toino Pereira da adega”.
Mas o “ti Toino Pereira” de Helder é, afinal, Teotónio Pereira, que não tinha só uma adega. E é aqui que começamos a recuar no tempo, até ao século XIX.
A família Theotónio Pereira tinha uma longa tradição no mundo financeiro segurador, nomeadamente na Companhia de Seguros Fidelidade, e teve uma forte ligação ao mundo da política.
Corria 1845 quando João Teotónio Pereira, ligado ao comércio, se instalou no Cais do Ginjal, levando a indústria de abastecimento de água aos navios e armazéns de vinho, azeite e vinagre. Construiu também uma residência e uma quinta, com várias árvores de frutos e muita ginja, nas traseiras dos edifícios, onde passava férias mais a família. “Era gente de bem”, descreve o pescador Helder. E não diz nenhuma mentira.
A família Theotónio Pereira tinha uma longa tradição no mundo financeiro segurador, nomeadamente na Companhia de Seguros Fidelidade, e teve uma forte ligação ao mundo da política. Um exemplo: Pedro Teotónio Pereira, neto de João Teotónio Pereira, chegou a ser subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social e Ministro do Comércio e Indústria, sob a liderança de Salazar, e é considerado por alguns como um dos seus principais interlocutores. Foi também ele o escolhido para ser embaixador de Portugal nos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Outro dos irmãos, Luís Teotónio Pereira, foi presidente da Câmara Municipal de Almada, presidente do Grémio do Comércio de Exportação de Vinhos, presidente do Grémio dos Exportadores de Azeite, integrou a Câmara Corporativa e foi deputado à Assembleia Nacional.
Foi o neto de Luís Teotónio Pereira que o Observador descobriu. Numa conversa por telefone, André Teotónio Pereira começa por esclarecer: “o cais foi feito por nós, com dinheiro privado”. Este tetraneto de João Teotónio Pereira, que continua à frente do negócio de vinhos, azeites e vinagres, com escritório no Cais do Sodré, em Lisboa, sabe a história de fio a pavio. E os registos do Centro de Arqueologia de Almada confirmam-na.
A verdade é que o Cais do Ginjal sempre foi privado, embora tenha resultado de uma exigência da Câmara Municipal de Almada, em 1860. Com vários investidores interessados naqueles terrenos, a autarquia começou a aforar lotes, obrigando à construção de uma parcela de cais em frente aos edifícios.
E assim nasceu o Cais, ponto de passagem e paragem quase obrigatória. Localizado num sítio estratégico, frente à capital e perto da barra do Tejo, O Ginjal foi muito importante numa época em que todo o trânsito se fazia por via fluvial. E durante largos anos teve muita atividade, muita vida e muita gente.
E tudo a Ponte Salazar levou
O início da queda veio anos mais tarde. O “grande símbolo do futuro”, como foi anunciada quando da sua inauguração em 1966, é apontado como principal motivo do abandono deste cais. É isso mesmo, a Ponte Salazar, hoje Ponte 25 de Abril, tirou o fulgor àquele pedaço de terra pois o rio “deixou de ser a principal autoestrada” e a via rodoviária destronou a fluvial, segundo permitem perceber os arquivos históricos, referidos pelo Centro Arqueológico da cidade. A este motivo acrescem outros como a criação de cooperativas vinícolas, a proibição de exportação de vinho em barris, a descolonização – as colónias eram importantes mercados para o vinho, azeite e conservas – e a concorrência externa na pesca do bacalhau.
Mas para André Teotónio Pereira a explicação para o fim do Ginjal é outra. “O meu avô Luís, a quem o meu bisavô tinha delegado a gestão dos negócios do Ginjal, zangou-se com os irmãos. Um deles morreu cedo, o meu tio Pedro passava a vida a viajar e aquilo acabou por ficar em autogestão entregue aos empregados e foi morrendo lentamente”, resume.
Em 1973, ainda antes da Revolução, já a família de André estava a vender os tonéis à Taylor’s, uma das mais antigas casas de comércio do vinho do Porto, e a indemnizar os trabalhadores. E não foi só esta família que começou a saltar fora. Também outras detentoras de edifícios no Ginjal sentiram muitas dificuldades, acabando os bancos por ficar, na altura, com muitas parcelas. Com o 25 de Abril, vários edifícios foram ocupados e a degradação não mais parou desde então, atesta André Teotónio Pereira.
Entretanto, em 1986, os Teotónio Pereira regressaram ao Ginjal, onde instalaram uma fábrica de formas de alumínio, mas saíram novamente passado dez anos, para Sintra.
Projetos que não saem do papel. Degradação que se agrava
E foi precisamente nos anos 1990 que um consórcio de proprietários (credores das anteriores empresas) tentaram, juntamente com a Câmara Municipal de Almada, avançar com um projeto de reabilitação para este local, que acabou por não ir para a frente.
Os projetos de reabilitação do Cais do Ginjal nunca saíram do papel. O último previa a criação de uma praia, de um jardim, habitação para jovens e espaços culturais.
Mas esse foi só o primeiro projeto. Em 2009, já depois de a empresa Tejal – Empreendimentos Imobiliários Lda ter comprado mais de 90% da área do Cais do Ginjal, foi assinado um protocolo tendo em vista a elaboração de um Plano de Pormenor para o desenvolvimento urbano da área do Ginjal.
E esse projeto de plano prevê que seja desde logo garantida a estabilização sustentável da arriba e que as obras respeitem a primeira linha da fachada dos edifícios. Mas estão previstas muitas novidades: criação de praças urbanas e miradouros, uma praia e um jardim, a abertura de espaços culturais, ateliers e escolas de artes, a construção de habitação para jovens, bem como a melhoria das condições de acessibilidade ao Cais, com zonas de cargas e descargas e um silo automóvel.
A Câmara Municipal de Almada explica o atraso com “o quadro de dificuldades económicas e financeiras dos últimos anos”, mas não deixa de atribuir as responsabilidades pela recuperação do espaço à empresa proprietária, a Tejal, que, contactada pelo Observador, não quis prestar esclarecimentos. De resto, poucos dos que vão ao Cais sabem a quem pertence. “Já ouvi dizer que é tudo da filha do Presidente e do Joe Berardo”, diz um transeunte que vem a passar, arriscando uma resposta. E nem quem usufrui de espaços cedidos pelos donos, como os pescadores que lá estão em permanência há 30 anos, e que guardam material nos edifícios mais seguros, próximos do cais de embarque para Lisboa, têm exata noção de quem manda ali. “São dois irmãos açorianos”, respondem.
A verdade é que mesmo que poucos saibam quem são, os donos do Ginjal existem e a Câmara Municipal de Almada sabe quem são. Tem até “procedido a notificações consecutivas da proprietária no sentido de serem concretizadas as intervenções de conservação e proteção necessárias à prevenção de quaisquer acidentes”, sem contudo obter qualquer resposta. Com o Cais cada vez mais degradado e mais perigoso para as pessoas, sobretudo turistas, que diariamente se passeiam junto ao Tejo, a autarquia tem aumentado o número de avisos de risco de derrocada.
Em fevereiro último, a Câmara Municipal de Almada, a Agência Portuguesa do Ambiente e a Administração do Porto de Lisboa fizeram uma vistoria ao local, tendo concluído pela urgência de uma intervenção imediata com obras de contenção do cais. Chegaram a colocar sinais a indicar a proibição de circulação de carros, mas esses sinais foram roubados e as proteções desviadas. O pior aconteceu a 25 de abril de 2015. Um carro capotou numa zona do cais onde uma parte do chão já tinha abatido anteriormente. O estrago foi agora bem maior e a viatura mantém-se no local, pois terá de ser o proprietário a retirá-la.
Com um cenário cada vez pior, a Câmara já anunciou que vai avançar com algumas obras no Cais, nas zonas de maior perigo, designadamente onde se encontra caído o veículo. Porém, questionada, não diz quando, nem onde, nem o que vai ser feito.
Quem anseia por obras são os gerentes de dois restaurantes no Cais do Ginjal, que ocupam duas antigas casas de pasto que tornavam aquele local ainda mais apetitoso para os pescadores e navegadores, há mais de 50 anos. Hoje, os clientes são maioritariamente turistas estrangeiros que questionam o que havia ali antes e o porquê de a zona estar tão degradada. Mas o ambiente devoluto não os afasta, garantem. “Os turistas adoram isto. Tudo, desde a comida, à paisagem para Lisboa, ao facto de estarem a comer perto do rio e com sol”, relata Dulcínia Coelho, sócia-gerente do restaurante Ponto Final.
“Mas gostávamos que isto fosse revitalizado. O Cais ganharia outra vida. Afinal, esta é uma das portas de Almada. Se fosse revitalizada, ganharíamos todos”, remata.