789kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Camarada Arlete a Belém! A trotskista vigarista

Arlete Vieira da Silva esteve quase a fazer história há 40 anos. Em 1976, foi a candidata dos partidos trotskistas - PRT e LCI - a Presidente. Mas, afinal, em vez de antifascista era uma caloteira.

A 10 de Maio de 1976, há exatamente 40 anos, dois partidos trotskistas – a Liga Comunista Internacionalista (LCI) e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) – ultrapassaram tudo e todos e apresentaram uma candidatura própria às eleições presidenciais marcadas para 27 de Junho daquele ano. A candidata era Arlete Vieira da Silva, 36 anos, uma ilustre desconhecida até, como os acontecimentos seguintes iriam provar, para os partidos que a apoiavam. Seria a primeira mulher a candidatar-se ao mais alto cargo da nação.

O cenário político

Os resultados das legislativas de 25 de Abril de 1976 não tinham sido famosos para os trotskistas. Juntos, a LCI e o PRT, tinham obtido menos de 0,4% dos votos (21.440 eleitores) e o PRT foi mesmo o partido menos votado de entre os 14 que se apresentaram a eleições. Isso não os impediu de cantar a vitória do socialismo: o PS de Mário Soares ganhara as eleições e o PCP tinha sido a quarta força política mais votada. Mas como um acordo entre socialistas e comunistas não era garantido, a esquerda radical temia que a direita aproveitasse as eleições presidenciais para conquistar o que perdera nas legislativas.

Arlete1

Arlete Vieira da Silva não chegou a ser candidata da LCI e do PRT em 1976, mas teve cartaz. Crédito: Ephemera

A situação política era confusa. Todas as possibilidades estavam em aberto. O PS podia formar um governo minoritário, em coligação com o PCP ou mesmo com um dos partidos da direita. No 1º de maio daquele ano, menos de uma semana após as eleições, o povo tinha saído à rua gritando palavras de ordem como “unidade contra a reacção”. No Barreiro, eterno bastião comunista, Manuel Pacheco Sequeira, dirigente metalúrgico, discursou: “As eleições passadas vieram dizer-nos – dissemos nós nas eleições – que o povo trabalhador tem sede de justiça e por isso votou na esquerda e no socialismo.” Vencida a batalha havia que reunir as tropas para novo confronto: “Esse povo que votou na esquerda não pode ser atraiçoado. O governo que se seguirá terá de ser um governo de esquerda e só nessa qualidade merecerá o nosso apoio.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Carlos Carvalhas, em artigo publicado n’O Diário (jornal conotado com o PC) de 5 de maio, afirmava a posição inequívoca dos comunistas: “Enganam-se os ‘independentistas’ que aparecem agora a reclamar (mais papistas do que o próprio Papa) um governo PS e só PS. Um tal governo será incapaz de resolver os problemas nacionais, será incapaz de galvanizar as massas populares. Será um fracasso.”

“A candidata que nós, trotsquistas [sic] portugueses, apoiamos, a camarada Arlete Vieira da Silva, compromete-se a lutar pela independência política da classe operária e a respeitar todas as expressões da vontade popular"
O Combate Socialista, órgão oficial do PRT

O Presidente que viesse a ser eleito seria, pois, um elemento determinante para o desfecho da batalha. Neste contexto político de indefinição, a direita também tinha consciência da importância das presidenciais. Por isso, o PPD de Sá Carneiro tratou logo de declarar o seu apoio ao general Ramalho Eanes, ainda antes de este ter confirmado a candidatura. Para o PCP, esse apoio era “precipitado e oportunista” e, para a maioria da esquerda, tinha duas leituras possíveis: ou o PPD queria aparecer como promotor da candidatura de Eanes ou, anunciando o seu apoio, queria condicioná-lo e, eventualmente, forçá-lo a não se candidatar para evitar uma colagem partidária. Os trotskistas estavam mais próximos da primeira interpretação.

António Sá Leal, dirigente do PRT, em declarações ao Diário de Notícias de 10 de Maio, dizia não ser novidade que a burguesia já tinha escolhido o seu candidato presidencial: “Foi o PPD quem deu o sinal de partida. O CDS disse logo que estava de acordo. Os dois estão de acordo em propor Ramalho Eanes para a Presidência.” Os trotskistas discordavam da interpretação de que o apoio precoce do PPD a uma candidatura de Eanes fosse uma manobra para comprometer uma “figura de prestígio nacional.” Para o PRT, a questão era mais simples: “Sá Carneiro propõe Ramalho Eanes porque tem confiança nele.” O perigo era outro, o de querer “impor com as eleições presidenciais […] o governo autoritário e direitista que não conseguiu impor com as eleições legislativas.” Sá Leal dava a garantia de que, em conjunto com a LCI, apresentaria um candidato presidencial porque havia a possibilidade de também o PS e o PC virem a apoiar Eanes. Como o anúncio foi feito na segunda-feira seguinte, é muito provável que a decisão sobre a candidata tenha sido tomada no fim de semana de 8 e 9 de Maio.

Quem avança?

Apesar de tudo, no início do mês ainda não era certo que Eanes se candidatasse. Era tempo de contar espingardas. Tudo dependeria da existência de um consenso nas esferas militares, que não era improvável. O brigadeiro Vasco Lourenço, por exemplo, dizia que “pessoalmente […] se o sr. General Ramalho Eanes se candidatar o meu voto irá para ele.” O General Costa Gomes, que começava a reunir alguns apoios, era outro dos potenciais candidatos. Noventa e duas personalidades, entre as quais Romeu Correia, Jacinto Prado Coelho e Matilde Rosa Araújo, tinham enviado uma carta ao Conselho da Revolução a apoiar Costa Gomes, um homem que podia realizar “a unidade entre os portugueses.” Confrontado com a possibilidade de Costa Gomes ir a eleições, Eanes limitava-se a dizer que “se for imperativo candidato-me independentemente de quem se candidatar.” Outros candidatos que se perfilavam embora sem confirmação oficial eram o almirante Pinheiro de Azevedo, então primeiro-ministro, e Otelo Saraiva de Carvalho.

A 6 de maio, ainda ninguém, civil ou militar, se lançara oficialmente na corrida a Belém. Os partidos, conhecedores das movimentações dos hipotéticos candidatos, semeavam avisos. Álvaro Cunhal, líder dos comunistas, assegurava que não apoiaria qualquer candidatura militar “apresentada por grupos esquerdistas”, ao mesmo tempo que recusava a ideia de um governo único do PS. Nestes múltiplos jogos de várias frentes, os comunistas também pressionavam o PS na questão das presidenciais. Quando se falou na eventual candidatura do almirante Pinheiro de Azevedo, o Diário manifestou estranheza por os socialistas não o terem apoiado de imediato.

A reacção do PS foi rápida. Os socialistas recusavam um governo coligado e apoiariam Eanes. A justificação era cristalina e sensata, como se não houvesse alternativa: “Porque o Presidente da República é, também, por inerência, o Presidente do Conselho da Revolução, pareceu-nos indicado que, nos próximos quatro anos, não fosse um civil a desempenhar esse cargo, como seria numa democracia plena, mas uma figura militar que tivesse o consenso das Forças Armadas e funcionasse como fator de coesão e unidade.” Não havia dúvidas de que Eanes era o único que reunia essas condições.

Camarada Arlete

Foi então que a LCI e o PRT avançaram com a candidatura de Arlete Pereira da Silva, anúncio que mereceu amplo destaque em jornais como o Diário de Lisboa (com uma fotografia da candidata na primeira página) e o Diário de Notícias, este também com uma chamada na primeira página: “Trotskistas apresentam primeiro candidato – Durante uma conferência de imprensa, Maria Arlete Vieira da Silva, formada em História e Filosofia, foi apresentada ontem como candidata da LCI e PRT à Presidência da República. Arlete foi militante até há pouco do Partido Comunista Português.” No interior, a notícia era desenvolvida com declarações dos representantes dos partidos que tinham estado presentes na conferência. Além de Sá Leal, do PRT, tinham participado, pela LCI, João Cabral Fernandes e José Ferreira Fernandes. Ao jornal em que haveria de trabalhar anos mais tarde, Ferreira Fernandes dizia que o “Pacto amarrou o PS e o PCP às organizações e estratégia da burguesia e os trabalhadores devem trilhar o seu próprio caminho independente, pela via justa e possível, dados os resultados eleitorais das organizações operárias, que tiveram maioria absoluta.” A escassez de militantes com mais de 35 anos (logo, em condições de se candidatarem à Presidência) e a urgência na apresentação de uma candidatura obrigaram a LCI a ultrapassar as reticências em relação a uma candidata oriunda do PRT, mas que tinha a seu favor o passado de resistente ao fascismo. O mais importante era marcar território.

kr

Os jornais publicavam a sua história heróica de prisões e tortura pela PIDE. Só O Diário, afeto ao PCP, duvidou da narrativa

Na conferência de imprensa os jornalistas receberam os elementos biográficos da candidata. Arlete tinha nascido em Lisboa, em 1940, e era formada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, onde se tinha destacado no movimento de contestação estudantil de 1961. Participara na campanha do general Humberto Delgado, altura em que ingressara no PCP. Tinha feito parte das comissões de apoio aos congressos democráticos de Aveiro em 1969 e 73. Vivera cerca de três anos na clandestinidade e passara quatro na prisão de Caxias, onde fora torturada pela PIDE. Enquanto militante comunista, tinha visitado a União Soviética e outros países da Europa de Leste. Em Portugal, desenvolvera a sua atividade política sobretudo nas zonas da Marinha Grande, Barreiro, Sintra e na cintura industrial de Lisboa. No final de 1975, “abandonou o PCP porque discordava da sua colaboração com a burguesia, os seus generais e políticos.” Os trotskistas iam com Arlete para a batalha das presidenciais.

Eanes avança

Como se esperava, o general Ramalho Eanes avançou mesmo. A candidatura foi anunciada a 14 de Maio, mas havia muito que estava em andamento porque já existia uma Comissão Nacional da qual faziam parte figuras como Miguel Torga, Vitorino Magalhães Godinho e Rodrigues Lapa.

O CDS, que já antes tinha demonstrado a preferência por Eanes, reforçou o seu apoio pela voz do líder, Freitas do Amaral, que sublinhava a importância de um candidato suprapartidário que garantisse o cumprimento da Constituição e o respeito pela democracia. A referência à Constituição motivou acusações de hipocrisia por parte dos comunistas.

“Sá Carneiro propõe Ramalho Eanes porque tem confiança nele.” Para o PRT e a LCI, perigo era outro: o de querer “impor com as eleições presidenciais […] o governo autoritário e direitista que não conseguiu impor com as eleições legislativas”
Sá Leal, dirigente do PRT

Em entrevista à Newsweek, Pinheiro de Azevedo apresentou-se como candidato. Mais tarde, em declarações à imprensa nacional, mostrou-se confiante no resultado, no tom nacional-porreirista que lhe era habitual: “Ganho com certeza. Na primeira volta não sei. Não sou jogador tão forte como isso. Até prefiro a segunda volta.” E tecia considerações sobre as candidaturas de Arlete e de Eanes. Para Pinheiro de Azevedo, a de Eanes era “verdadeira” e a outra, “falsa”: “Candidatos sem passado político é melhor ficarem em casa”, aconselhava, algo enigmático. Enquanto isso, Otelo Saraiva de Carvalho, hesitante, pedia uma vaga popular que o ajudasse a decidir.
Os trotskistas admitiam retirar a candidatura de Arlete caso o PS e o PC, “os partidos mais influentes no seio dos trabalhadores”, apresentassem uma candidatura civil. A candidatura civil foi apresentada a 18 de Maio, mas era exclusiva do PC. Octávio Pato foi o escolhido. Os comunistas resolviam assim a questão de ficarem entre Eanes e Azevedo e, apesar de se dizer que Pato desistiria perto das eleições, a candidatura foi mesmo até ao fim.

No que, a esta distância, se pode ver como uma bicada à candidata dos trotskistas, era realçado o percurso político de resistência ao fascismo de Octávio Pato, que estivera preso “quase nove anos, após ter sido barbaramente torturado nas masmorras da PIDE e espancado mesmo durante o seu julgamento, em pleno tribunal.” O Diário disparava em várias direções e criticava os jornais que davam “honras de primeira página e decímetros de prosa às candidaturas à presidência de táxi-partidos como o PRT.” Deve ter sido uma das primeiras vezes que a expressão foi utilizada e, curiosamente, o destinatário não era o CDS (partido que, aliás, tinha ficado à frente do PC nas eleições legislativas). Otelo também apanhava. A sua candidatura, afirmava o diário, era apoiada por forças apostadas em “criar divisionismo e lançar a confusão entre as massas trabalhadoras.”

Arlete em campanha

Nos dias seguintes, a campanha conjunta da LCI e do PRT esforçou-se por provar que a camarada Arlete era a candidata ideal, o rosto da “única candidatura operária surgida até agora.” O Combate Socialista, órgão do PRT, ressalvava que aquela era uma candidatura diferente das outras, “burguesas ou militares”, e que serviria de tampão à possível ofensiva da direita: “A candidata que nós, trotsquistas [sic] portugueses, apoiamos, a camarada Arlete Vieira da Silva, compromete-se a lutar pela independência política da classe operária e a respeitar todas as expressões da vontade popular, nomeadamente os votos socialistas e comunistas das últimas eleições.”
O suplemento conjunto dos órgãos oficiais dos dois partidos trabalhava na hagiografia revolucionária da candidata: “Contra a candidatura dos capitalistas e dos generais”. Ao lado, uma fotografia de Arlete, rosto de heroína soviética. Ao centro, em letras garrafais: “Arlete, Uma Mulher, Uma Trabalhadora, Uma Revolucionária.” No interior, mais pedagogia para as massas. Com Arlete não estariam em risco as recentes conquistas dos trabalhadores como o “controlo operário nas empresas, a reforma agrária nos campos, os direitos políticos e sindicais dos trabalhadores”, além do “direito fundamental de dizermos que não queremos mais exploração, que estamos fartos da miséria capitalista, que não aceitamos os generais e capitalistas no poder!”

Arlete2

Arlete teria sido a primeira candidata mulher a Presidente da República, 10 anos antes de Maria de Lourdes Pintasilgo. Crédito: Ephemera

Arlete participava em comícios, visitava fábricas e pregava aos trabalhadores. A comissão de apoio, que redigia discursos, comunicados e a preparava para as entrevistas, chamava a atenção para o facto de a candidata ser uma mulher, afirmando que a escolha fora propositada porque pretendiam alertar para as discriminações entre sexos.

A LCI e o PRT ripostaram aos ataques de que tinham sido alvo, atacando todas as outras candidaturas. Recusavam apoiar Otelo Saraiva de Carvalho porque “os trabalhadores não [podiam] ficar dependentes de um ou de outro oficial, por mais progressista” que fosse. Já Ramalho Eanes era considerado o candidato dos “generais e dos capitalistas”. Para a LCI e o PRT, o silêncio de Álvaro Cunhal e o apoio de Mário Soares ao general do “Estado de Sítio e do congelamento dos CCT” eram incompreensíveis e inaceitáveis. Em comparação com os dois, Arlete era elevada a símbolo da resistência anti-fascista: «Enquanto Otelo mantinha ligações bastante duvidosas, enquanto Ramalho Eanes cumpria nas colónias a sua obrigação de oficial do Exército, a camarada Arlete Silva cumpria na clandestinidade, nas masmorras da Pide, na tortura do sono, a sua obrigação de militante comunista».

As suspeitas

Numa breve nota no editorial de 20 de maio, com o título “As Candidaturas de Oposição”, o Diário lançava uma primeira suspeita: “As candidaturas de oposição, aquelas que visam a dividir as Forças Armadas, são patrocinadas por minipartidos que proclamam bater-se pelo socialismo, mas lançam candidatos que ou demonstraram não saber lutar pela revolução, ou têm antecedentes pouco limpos.” No final, ficava a ameaça: “Voltaremos por isso ao assunto.”

“Apareceu, por exemplo, uma senhora de cuja existência no país só tinha conhecimento o restrito círculo dos seus familiares e amigos. Quer ser Presidente da República e invoca um curriculum vitae que faria dela uma heroína da resistência. Trata-se, pelo visto, de uma pessoa de fértil imaginação, pois não há notícia dos feitos desta émula da padeira de Aljubarrota, nem registo da sua passagem pelas cadeias da PIDE".
Editorial de O Diário

A ameaça foi concretizada no editorial de 24 de Maio, intitulado “Candidatos da Confusão”. Esses candidatos não defendiam princípios, nem tinham princípios: “Apareceu, por exemplo, uma senhora de cuja existência no país só tinha conhecimento o restrito círculo dos seus familiares e amigos. Quer ser Presidente da República e invoca um curriculum vitae que faria dela uma heroína da resistência. Trata-se, pelo visto, de uma pessoa de fértil imaginação, pois não há notícia dos feitos desta émula da padeira de Aljubarrota, nem registo da sua passagem pelas cadeias da PIDE. Terá andado por outros presídios, mas por motivos diferentes e menos honrosos.” Lembremos que Arlete tinha sido apresentada como ex-militante do PC. Era evidente que os comunistas sabiam mais sobre a candidata dos trotskistas do que estes estavam dispostos a admitir.

kr

Da sua história fazia parte a militância no PCP. Não era verdade

A LCI e o PRT reagiram como se esperava, atacando os inimigos, sugerindo conspirações e denunciando a ação de forças invisíveis apostadas em boicotar a candidatura. Reconheciam a existência de alguns problemas formais, mas culpavam os notários “que colocam entraves de toda a ordem, atrasando o reconhecimento de assinaturas e chegando mesmo a reter os respetivos bilhetes de identidade durante mais de um dia.” Também os funcionários do segundo bairro administrativo, de acordo com a LCI, faziam tudo para prejudicar a candidatura, levantando questões relacionadas com as certidões de eleitores de apoiantes de Arlete. A Câmara de Setúbal era particularmente visada por relegar para o fim “as nossas certidões, dando prioridade às do Eanes.” Não eram esquecidos os “boatos e calúnias” vindos do jornal afeto ao PCP, manobras que visavam descredibilizar a única candidatura operária pondo em causa o passado de militante anti-fascista de Arlete.

Perto da meta

Nesta altura, o cenário de pré-eleições começava a ficar mais claro. O General Kaúlza de Arriaga, que tinha sido apontado como eventual candidato, desistia definitivamente e aparecia Pompílio da Cruz, um retornado, protagonista de mais uma “candidatura caricatural” na opinião dos comunistas d’O Diário, que devem ter ficado horrorizados com o espaço que o Diário de Notícias dedicou a Arlete Vieira da Silva no dia 25 de Maio, um dia depois do editorial demolidor. O título do DN era “Arlete Vieira da Silva – uma alternativa de classe”. Publicado na sequência de uma entrevista à candidata realizada na sede do PRT, era um artigo mais longo e pormenorizado do que os anteriores. Além de factos que ainda não tinham aparecido noutras publicações – Arlete era casada, tinha uma filha de seis anos e era filha de um engenheiro e de uma licenciada em Letras (ambos falecidos) – repetiam-se os pormenores biográficos divulgados pelos partidos que a apoiavam, nomeadamente o seu passado de resistência “atestado por quatro anos de cadeia, três de clandestinidade e 18 de militância no PC, que viria a abandonar pouco depois do 25 de Abril de 1974.”

Arlete3

No fim da história, nunca mais se ouviu falar de Arlete, que pertencia ao PRT da Amadora. Crédito: Ephemera

Ser a única mulher entre os candidatos não a envaidecia nem perturbava. Para ela, a questão do género não era relevante porque a luta de classes devia unir indistintamente homens e mulheres na luta contra a exploração, embora aquilo que defendiam – como a contraceção, o aborto livre e serviços sociais eficientes e gratuitos – pudesse ter um grande impacto na vida das mulheres. Acima de tudo, Arlete via-se como uma alternativa de classe contra a burguesia, os generais e os capitalistas. O Pacto entre PS e PC era a prova de que os dois grandes partidos de esquerda colaboravam com o sistema. E era preciso contrariar isso. Não tinha a ilusão de “já estar a arrumar as mobílias em Belém”, mas não se dava por vencida. Caso fosse eleita trataria de respeitar a vontade do eleitorado, que votara maioritariamente na esquerda. O ideal seria um governo PS-PCP, mas mesmo que isso não acontecesse a prioridade era evitar um governo de capitalistas e generais.

Os generais eram o terror dos trotskistas. Arlete, que não era a favor do combate violento, não afastava a possibilidade do recurso à violência como via rápida para o socialismo. No entanto, demarcava-se dos partidos políticos que faziam “do gatilho e da pólvora a sua razão de existir.” Confrontada com a contradição de, em caso de vitória, defender um governo liderado por um dos partidos do pacto, Arlete não desarmava. Desde que não tivesse nem capitalistas, nem generais, tudo bem.

A reviravolta

Dois dias depois da publicação da entrevista no DN, e um dia antes de terminar o prazo para a formalização das candidaturas no Supremo Tribunal de Justiça, a LCI retirou inesperadamente o apoio à candidata. Em comunicado, dizia esperar que o PRT fizesse o mesmo, o que não demorou muito. O Diário rejubilava: “Arlete Vieira da Silva, que teve honras de página inteira em vários órgãos de informação, e acesso à TV e RDN, perdeu o apoio da LCI e PRT.”

"Arlete Vieira da Silva não tem nem o passado nem as condições mínimas que lhe permitam ser a intransigente defensora de um programa de unidade e de independência do movimento operário"
Declarações de um dirigente da LCI ao Expresso

Em nome das responsabilidades que lhe cabiam perante os trabalhadores, a LCI iniciara uma verificação do passado da candidata: “Embora estas diligências tivessem sido tardiamente levadas a cabo […] elas permitiram-nos chegar à conclusão que Arlete Vieira da Silva não tem nem o passado nem as condições mínimas que lhe permitam ser a intransigente defensora de um programa de unidade e de independência do movimento operário.”

Os detalhes surgiriam na edição de 29 de maio do jornal Expresso, que tinha apurado junto do PRT que a decisão de retirar o apoio à candidatura se fundava nas omissões e falsas informações prestadas por Arlete Vieira da Silva. Não havia registo de que Arlete tivesse estado presa durante três anos em Caxias e não havia qualquer processo político contra ela nos arquivos do Tribunal da Boa Hora. Era verdade que tinha estado presa em 1969 pois isso constava do seu registo criminal. Arlete ainda tentara defender-se junto dos seus camaradas, alegando que estivera presa por agredir um agente da Polícia Judiciária durante o período eleitoral daquele ano. Também não era verdade. Nos tribunais o único processo existente contra Arlete Vieira da Silva estava relacionado com falta de pagamento e desvio de vários eletrodomésticos. A resistente ao fascismo era, afinal, apenas uma caloteira.

Ao Expresso, um dirigente do PRT que não foi identificado, talvez atónito com o desfecho da candidatura, inaugurou a nova linha de defesa: Arlete seria uma agente provocadora a soldo não se se sabe de quem, mas com o objetivo claro de “impedir a existência de uma candidatura alternativa às dos generais, que defendesse efetivamente os interesses dos trabalhadores.” Mais surpreendente, e merecedor até de alguma comiseração, era o teor de uma nota divulgada pelo próprio PRT em que os seus dirigentes lamentavam que os jornalistas de O Diário, “conhecendo como conhecem a Arlete Vieira da Silva bastante melhor e há muito mais tempo que nós, não tenham avisado o nosso Partido de certos aspetos pouco claros da bibliografia [sic] apresentada inicialmente, optando por publicar em vez disso um Editorial com algumas insinuações equívocas.”

Não havia registo de que Arlete tivesse estado presa durante três anos em Caxias e não havia qualquer processo político contra ela. Tinha estado presa em 1969, mas nos tribunais o único processo existente contra ela estava relacionado com falta de pagamento e desvio de eletrodomésticos.

O caso teve eco nos meios trotskistas no estrangeiro. No nº 116 da Workers Vanguard, de 2 de Julho de 1976, apontava-se o caso Arlete como sintomático do “seguidismo” da LCI e do PRT, que não tinham hesitado em nomear uma desconhecida apenas com o suposto objetivo de captar alguns votos dos comunistas. Para este setor da esquerda radical, o problema não era a falta de unidade, mas a procura de uma unidade a todo o custo, que obrigava os partidos trotskistas a ir atrás dos maiores partidos, impedindo-os de apontar uma via própria e diferenciadora, mesmo quando eram atacados por PS e PC.

Depois do Adeus

A 28 de maio terminou o prazo para a apresentação das candidaturas no Supremo. Houve quatro candidatos: Ramalho Eanes, Pinheiro de Azevedo, Otelo Saraiva de Carvalho e Octávio Pato. Pompílio da Cruz, o retornado, não conseguiu reunir as 7.500 assinaturas necessárias para formalizar a candidatura. A 27 de junho, o general Ramalho Eanes foi eleito logo à primeira volta, com quase 62% dos votos. Nos anos seguintes teve muito trabalho. A 23 de julho, tomou posse o I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares. O PS não aceitou governar coligado. O governo durou até janeiro de 1978, caiu e, com o apoio do CDS, levantou-se para renascer como II Governo Constitucional. Também durou pouco. Em agosto daquele ano, tomou posse o primeiro de três governos de iniciativa presidencial. Em 1979, após a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente, realizaram-se eleições intercalares. A essas eleições concorreu um partido formado em 1978 e que resultara da fusão entre a LCI e o PRT: o Partido Socialista Revolucionário, um dos antepassados do Bloco de Esquerda. Francisco Louçã, antigo dirigente da LCI, foi o seu líder mais marcante. Foi preciso esperar pelas eleições presidenciais de 1986 para que uma mulher se candidatasse à Presidência da República: Maria de Lurdes Pintasilgo foi a pioneira e, depois dela, só Marisa Matias e Maria de Belém Roseira foram até ao fim. Nessa altura, já Arlete Vieira da Silva, que estivera a dois dias de ser a primeira mulher a candidatar-se à Presidência da República, desaparecera da política portuguesa sem deixar rasto.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora