[este artigo foi originalmente publicado a 6 de fevereiro de 2019, nos 25 anos do concerto]
Pavilhão do Dramático de Cascais, 6 de fevereiro de 1994. Os bilhetes custavam 4 mil escudos. 4500 se comprados no dia do concerto. Esgotaram rapidamente. Muitos foram para a porta do pavilhão à procura de uma hipótese de entrar, poucos conseguiram. Os Nirvana estavam em Portugal. Três anos depois de Nevermind, o segundo álbum, o disco que lhes deu a fama, para o bem e para o mal. E poucos meses após a edição de In Utero, a tentativa de fugir ao mainstream que a própria banda tinha criado anos antes.
Kurt Cobain era a maior estrela rock do planeta. Saído do underground para a capa de todas as revistas e jornais, o símbolo maior do grunge, o génio atormentado que debitava angústias sobre pop distorcida como poucos — como nenhum outro, nem antes, nem depois. E a maior estrela rock estava em Portugal, para a primeiro e única atuação dos Nirvana no nosso país, dois meses antes de morrer, a 5 de abril de 1994. O concerto tornou-se clássico, mítico, por todas as razões. E quem por lá esteve guarda fotos, memórias, bilhetes, relatos e histórias. Juntámos algumas.
David Fonseca
Músico
“Era um grande fã dos Nirvana na altura. Naquela época o grunge era ‘a cena’, a música número um dos adolescentes e jovens — e eu tinha 19 anos quando fui ao concerto, ainda era teenager. Os gostos do grunge dividiam-se em duas fações: Nirvana e Pearl Jam. Eu claramente era mais team Nirvana, apesar de também gostar dos Pearl Jam. Se calhar a preferência devia-se a ter chegado aos Nirvana já como grande fã dos Pixies. O Kurt Cobain era um grande fã dos Pixies, até disse muitas vezes que emulou canções deles. Nessa altura, essas eram as duas bandas que mais ouvia e fiquei muito contente quando soube que os Nirvana vinham a Portugal.
Soube do concerto através de amigos. Na altura estava a estudar em Lisboa, numa residência de estudantes. Houve alguém que entrou no meu quarto e disse que ia haver um concerto dos Nirvana em Cascais. Alguém da residência, não me lembro quem, voluntariou-se para recolher o dinheiro de todos e ir comprar os bilhetes. Éramos uns oito ou nove a querer ir e não foi preciso pensar, a oportunidade de ver os Nirvana era única.
Nesse dia provavelmente devo ter ido às aulas, andava a estudar na Faculdade de Belas Artes. À noite fomos todos de comboio para Cascais. Lembro-me de estar no comboio e perceber que a maior parte das pessoas estava a ir para o concerto. Um pormenor curioso: como sempre fui magrinho, um bocado esquelético, sabia que o mosh pit ia ser violento para mim. Por isso, nesse dia, levei duas camisas de flanela para ver se aguentava a cacetada toda que ia levar.
Houve uma pessoa do nosso grupo que à última hora resolveu não ir. Ou não queria ou não podia, teria talvez um exame ou algo assim. Ficámos com um bilhete a mais. Quando chegámos ao Dramático de Cascais, começámos a pensar no que faríamos ao bilhete, porque era ilegal vendê-lo à porta. Vi um grupo de malta com cabelos compridos e camisas de flanela, fui lá e perguntei se alguém ali não tinha bilhete. Houve um tipo que saltou e agarrou-se logo a mim a dizer: não me digas que tens um bilhete! Acabámos por vendê-lo exatamente pelo preço que tinha custado. O tipo ainda desconfiou, achou que o bilhete era falso, ainda troquei o meu com o dele por via das dúvidas. Acabou agarrado a mim quase a chorar e a agradecer.
Há uma coisa de que não me esqueço. Entrei no pavilhão com pressa para ficar o mais à frente possível e quando entrei tive um choque: o que estava cheio era a zona das bancadas, não a zona do mosh pit. Pensei que os fãs dos Nirvana iam todos querer estar aos encontrões e tive essa perceção errada, porque cá em baixo estava praticamente vazio.
Assim que os Buzzcocks [importante banda inglesa de punk-rock, que fez o concerto de abertura daquela noite] começaram, aquilo tornou-se um moshpit gigante e imediato. Danças, maluquices, moshpit… era mesmo real, era punk-rock! Passados cinco minutos já não via ninguém que tinha entrado comigo. Tínhamos combinado um sítio para nos encontrarmos depois, porque não havia telemóveis [risos]. Lembro-me que houve um tipo que caiu em cima da minha cabeça com botas de tropa. Caí no chão, fiquei ali meio tonto e fui lá para cima para as bancadas, à espera que aquilo passasse.
Entretanto os Buzzcocks acabaram o concerto. Começaram os Nirvana e ainda vi os primeiros dois ou três temas nas bancadas. Assim que começaram a tocar a “Smells Like Teen Spirit” fui a correr lá para baixo.
O som estava horrível, uma coisa pavorosa. Acho que o Kurt Cobain não disse uma palavra o tempo todo. Se disse, disse poucas. Quem falava ao microfone era o baixista [Krist Novoselic]. O Dave Grohl também atirava umas larachas, mas o Kurt não disse praticamente nada, parecia estar a fazer um concerto para cumprir calendário.
É preciso perceber também que estas coisas das chamas nos espetáculos, como os Arcade Fire agora fazem, eram uma coisa inusitada, não existia, também porque ninguém queria ver isso ali. O punk-rock e a música mais abrasiva não se coadunavam muito com essa ideia de “espetáculo”. Coadunavam-se com outras coisas: tenho um amigo que ficou com as grades marcadas no peito, tal a pressão que o mosh pit fazia no pessoal junto às grades.
No final do concerto viemos todos para a residência outra vez, completamente excitados. Acho que o concerto foi a meio da semana [foi domingo, 6 de fevereiro] e no dia seguinte tinha aulas, não sei se teria exame. Depois ainda falámos daquilo durante uns dias, ainda recortei a crítica ao concerto do [então ainda jornal] Blitz e pus na parede. Tinha muitas coisas dos Nirvana na parede.
Costumo dizer que a única pessoa que tive enquadrada num quadro pendurado na minha parede durante muitos anos foi o Kurt Cobain. Tinha-o já e continuei a tê-lo até aos 20 e tal anos. Gostava muito da música que ele fazia e do que ele escrevia. Ninguém imaginava que ele morresse logo a seguir, uma pessoa nunca pensa que isso vai acontecer quando se trata de alguém tão novo.
Soube que ele tinha morrido na cozinha dos meus pais. Havia lá uma televisão a preto e branco a um canto. Era de noite, talvez uma e tal da manhã, eu tinha acabado de chegar a casa. Olho para a televisão e vejo a notícia num jornal da noite. Lembro-me de ficar encostado à mesa da cozinha a pensar que devia haver algum engano, que não podia ser verdade.
Na altura não havia telemóveis e não comentei isso com ninguém, só falei daquilo no dia seguinte. Foi o assunto de mesa de quase toda a gente da minha idade. Hoje é complicado acontecer algo assim, a internet veio fragmentar o mundo todo, mas naquele momento era “a banda” da altura, a mais importante para uma geração entre os 16 anos e, sei lá, os 21 anos.
Nunca se tinha falado tanto de toxicodependência, aquilo passou a ser um assunto muito presente entre jovens. Como é que ele tinha chegado ali? Isso era muito pouco valorizado mas de repente tornou-se algo muito real e duro, o facto de ele ser um tipo que sofria imenso, que tinha uma filha… eu achava tudo aquilo meio escabroso. Se já andava toda a gente sorumbática antes, mais ficou. A música que ouvíamos era música para derreter toda a gente. Não era música sexy, leve. Era tudo muito duro. Já éramos todos sorumbáticos, mais ficámos.“
Cristina Espírito Santo
Antiga chefe de promoção da BMG
“Às sexta-feiras, tínhamos uma reunião geral de apresentação de novos discos na BMG [atual Sony Music Portugal], discos que iríamos editar em Portugal. Lembro-me de uma reunião em que estavam promotores, vendedores e o diretor de marketing [da editora]. Nessa reunião mostraram-nos um videoclip dos Nirvana, o vídeo do “Smells Like Teen Spirit”. Fiquei logo super entusiasmada, pensei: isto vai rebentar. Os vendedores ficaram reticentes, diziam que aquilo era só barulho. ‘Lá estás tu com as tuas manias’. Eu e um colega dissemos: a sério, isto vai rebentar. A opinião não vingou e fizeram uma encomenda mínima de discos para vender. Entretanto começámos a fazer a promoção do disco [Nevermind, editado em 1991] e a primeira encomenda esgotou logo.
Quando começámos a promover o disco junto dos media, a reação foi a mesma da maioria dos vendedores: isto é um bocado barulho e tal. Excluindo as pessoas do costume — o António Sérgio e as pessoas que tinham programas de rádio de autor mais alternativos –, os media não deram grande atenção no início. Enviámos os discos para a imprensa e ninguém ligou nenhuma. Quando os Nirvana rebentaram, toda a gente começou a ligar a pedir os discos. Eu era a chefe de promoção e disse: não vão receber porque este disco já foi enviado, vocês é que não o quiseram ouvir. Procurem onde está, vão ao baú. Também trabalhei sempre música mais alternativa, já estava habituada a não ter recetividade dos media.
O nosso contacto com a banda era indireto, era muito através dos nossos colegas [promotores] lá de fora. Inclusive muitos desses colegas vieram para o concerto em Cascais, porque nessa altura, em 1994, a banda já era muito importante. Nos dias antes do concerto aconteceu o costume: tudo a telefone a pedir bilhetes e convites, porque estava esgotado. Toda a gente queria passes de imprensa, estava tudo eufórico. Lá se resolveu tudo.
Houve algumas restrições à promoção do concerto em Cascais com os Nirvana porque o Kurt Cobain não estava muito aberto a entrevistas. Tive oportunidade de falar com eles porque fui ao backstage cumprimentar a banda. O Kurt Cobain estava deitado de costas, só se voltou para dizer ‘hi’ [olá] e voltou-se outra vez de costas para nós. Ele estava mesmo nas tintas, queria era estar sossegado. Já o achei um bocado… mas do que sempre achei e li sobre ele, ele também foi sempre muito contra estas coisas todas, a fama e tal, era um suplício para ele.
Já o Dave Grohl foi cinco estrelas, era uma pessoa super acessível. Chegava-se à frente para compensar a apatia do Kurt Cobain naquela altura. Satisfazia os media, apesar de toda a gente querer falar com o Kurt Cobain. Inclusivamente tenho um cartaz de um concerto dos Nirvana em Madrid cá em casa autografado pelo Dave Grohl. Acabei por revê-lo mais tarde depois de um concerto dos Garbage em Lisboa — ele apareceu no backstage, reconheceu-me logo, estava muito bêbado [risos].
Estive no Dramático de Cascais praticamente desde manhã. Via-se montes de gente, uma fila interminável para entrar. Estava gente de várias faixas etárias, mas a faixa etária predominante era dos adolescentes, todos a tentarem vestir-se como o Kurt Cobain, todos malucos. Foi um desassossego até as portas abrirem, estava-se a tentar evitar perigos. Ainda houve um episódio: acho que estava lá um miúdo qualquer com uma arma, que creio que não estava carregada. Chamou-se logo a polícia, resolveu-se.
Passei o concerto a tentar controlar as coisas, os fotógrafos — que puderam fotografar as três primeiras músicas, salvo erro –, toda a logística. O Kurt Cobain manteve-se sempre apático, até esteve algum tempo de costas para as pessoas. Há artistas que não lidam bem com esta notoriedade acrescida e a mim parecia-me que ele queria estar sossegado. Não era uma pessoa extrovertida mas achei-o mesmo ausente e apático durante todo o concerto. Houve lá uns bocados em que me pareceu que ele nem estava lá, estava ali a debitar umas coisas, a cantar e a tocar, mas não estava lá.
Ainda assim, o concerto correu bem. O som era um bocado mau, mas ali nunca era grande coisa. Até estive muito tempo na mesa de som com os técnicos. Acho que deveria ter havido mais um concerto, este correu bem mas poderia ter sido um bocadinho melhor. Excluindo os U2, de todos os concertos internacionais que ‘tive’ cá o dos Nirvana foi aquele em que notei mais entusiasmo, que me pareceu ter tido mais impacto junto do público.
Depois de o ter visto tão apático em Cascais, quando soube que tinha morrido não estranhei. Ouvi a notícia na Gartejo, em Alcântara, que depois se passou a chamar Garage. Fui lá para um jantar de serviço, um evento. Lembro-me que quem veio ter comigo e dar-me a notícia foi o Pedro Boucherie Mendes. Disse-me que o Kurt Cobain tinha morrido, que estava a dar a notícia na MTV. Apesar de não achar muito inesperado, fiquei triste, claro.
Depois, tratámos de questões habituais nessas alturas: trocas de mensagens de condolências para os media de todo o mundo, um comunicado da editora a lamentar o sucedido. Havia outra coisa a tratar: começar a acelerar as reedições…“
Henrique Amaro
Radialista
“Não sei se na altura trabalhava na Rádio Energia ou se já trabalhava na Antena 3. Sei que estava muito próximo do pessoal do Johnny Guitar nessa época, era DJ lá. O Zé Pedro foi uma das primeiras pessoas em Portugal a ter o disco [Nevermind] e a tocá-lo publicamente. Antes de ser um ‘hit’ [êxito], já o era no Johnny Guittar.
Antes de chegar aos Nirvana tinha ouvido bandas anteriores às quais os Nirvana foram beber algumas coisas, como os Pixies e os Sonic Youth. Mas o Nevermind foi um disco que mexeu comigo, é um disco que marcou grande parte dos adolescentes e jovens adultos daquela altura. Tornaram-se uma das minhas bandas preferidas. Depois fui procurar o que aqueles rapazes tinham feito antes, fui buscar o Bleach e fui comprar todos os singles disponíveis, que eram vendidos numa discoteca [loja de discos] que ficava ali no centro comercial terminal do Rossio, a Torpedo. Cheguei a ter a versão single do “Smells Like Teen Spirit” em vinil, os singles seguintes já comprei em CD. Despertei para um mundo novo. De repente quis saber quem eram, que editora era aquela que lançava o disco [David Geffen Company, ou DGC], o que havia parecido com o Nevermind.
Um clube de rock é bom para testar novidades e a ‘Smells Like Teen Spirit’ era uma espécie de antídoto para uma noite que estivesse a correr mal no Johnny Guitar. A noite transformava-se. Aquilo era um ótimo tubo de ensaio para ver o impacto das bandas e logo nas primeiras vezes que o Zé Pedro passou o tema percebemos que estava ali uma coisa completamente diferente, transversal. Depois a MTV começou a passar o vídeo, que era por si só cativante, muito diferente. Passado pouco tempo já iam pessoas à cabine pedir a ‘In Bloom’, a ‘faixa dois ou três do disco’. Não era comum isso acontecer com uma banda emergente, que muita gente nem sabia que já tinha feito o [disco] Bleach anteriormente. Acontecia com os Metallica e o Black Album, com mais alguns discos de algumas bandas, mas não era habitual. Dava para perceber que estava a acontecer algo novo, que chegava mesmo às pessoas.
Ir ver os Nirvana em 1994 era uma coisa obrigatória para quem conhecia a banda, era a banda do momento, aquela que todos queríamos ver. Fui numa comitiva de umas oito ou nove pessoas, iam namoradas, mulheres e assim. Estavam lá também muitos amigos com quem não tínhamos combinado ir. Músicos, por exemplo — lembro-me do Tó Trips. Era um concerto obrigatório e transversal, que por causa disso reuniu a comunidade musical.
Não sabíamos exatamente qual era o estado do Kurt Cobain antes daquele concerto. A informação não era fluída, não se conhecia tão ao pormenor as decadências pessoais dos músicos e as crises existenciais das bandas. Hoje é mais fluído, sabe-se mais coisas. Na altura a questão principal era: como é que ele vai chegar? A informação que se tinha vinha dos jornais ingleses e não era muito pormenorizada. Havia uma incógnita sobre que banda é que iríamos encontrar ali.
Tenho ideia de aquela ter sido uma noite meio chuvosa e só tenho uma vaga ideia do concerto dos Buzzcocks, que fizeram a primeira parte. Lembro-me que nessa noite o Benfica jogava em casa com o F.C. Porto e estava muito curioso de saber como as coisas estavam a correr. Era uma altura difícil para o Benfica, vencer o F.C. Porto não era fácil naquela altura. Lembro-me de estar a acompanhar o jogo ao lado do Kalú, que era portista e estava ansioso. Havia uma pessoa no pavilhão que tinha um rádio e ficámos um pouco cá para trás, para estarmos atentos ao desenrolar do jogo. O Benfica ganhou 1-0 com um golo do Rui Costa [na verdade, venceu 2-0, com golos de Rui Costa e Ailton].
As minhas memórias do concerto são de não ir para as bancadas [superiores], de ficar cá em baixo na plateia. Não tenho uma memória muito vincada do espetáculo, lembro-me de estar mais para trás da mesa de som. Também tinham lançado um disco que estava fresquinho, o In Utero. Ainda não o conhecia tão bem como o Nevermind e o Bleach, não me era tão familiar. Mas vi o concerto e guardei o bilhete religiosamente.
A notícia da morte do Kurt Cobain recebi por telefone. Alguém ligou para uma pessoa que estava comigo num jantar na Costa da Caparica, que fizemos antes de ir para o Johnny Guitar. Alguém soube a notícia e comunicou. Chegou-me a notícia a meio do jantar e caiu como uma bomba, ficámos todos meio em choque. Ficou uma noite pesada e notou-se no Johnny Guitar, todas as pessoas que chegavam lá e não sabiam eram interpeladas: ‘já sabes o que aconteceu?’ Tocámos vários temas dos Nirvana nessa noite, foi uma espécie de homenagem feita a quente no sítio onde as coisas tinham começado. No fundo, era um ídolo que tinha partido.“
Ricardo Casimiro
Organizador
“Trabalhávamos com o agente dos Nirvana há muito tempo e há muito tempo que mostrávamos interesse em que viessem a Portugal. O problema era que eles não vinham a Portugal diretos dos Estados Unidos da América, vinham no âmbito de uma digressão [europeia]. Queríamos trazê-los há mais tempo, mas a digressão proporcionou-se naquela altura, a propósito do álbum In Utero.
Normalmente, quando se trabalhava com um promotor trabalhava-se quase em exclusividade, criava-se essa relação com agentes. No caso dos Nirvana talvez tenham sido uma das bandas que mais gostei de trazer a Portugal, porque identificava-me com a música deles. Quando organizamos concertos de bandas de que gostamos e de que as pessoas gostam é fantástico. trazer os Nirvana foi um dos pontos altos da minha carreira. Profissionalmente, abstemo-nos um pouco do nosso gosto, queremos é que corra tudo bem com os concertos, que sejam grandes êxitos, mas ali coincidiu o gosto com o sucesso.
Era a banda mais pedida pelas pessoas, aquela que as pessoas ainda não tinham visto e queriam ver. Talvez por isso tenha havido uma corrida aos bilhetes. Naquela altura vender bilhetes era mais difícil do que atualmente, eram bilhetes impressos em papel em tipografias e eram distribuídos por menos pontos de venda, alguns dos quais pouco tinham a ver com música. Para concertos ali no Dramático de Cascais os bilhetes eram vendidos em pontos estratégicos em Lisboa e junto à cidade. O concerto esgotou com uma grande antecedência, o ritmo das vendas foi aceleradíssimo.
Lembro-me que ainda falei com o Kurt Cobain em Cascais por uma razão muito engraçada. Há sempre um conjunto de requisitos técnicos pedido pelas bandas e lembro-me que os Nirvana solicitaram duas casas de banho com água quente. Tivemo-las. Depois quando estavam já no local pediram-nos uma terceira casa de banho com água quente, que não existia. Não havia grandes facilidades logísticas para isso no Dramático de Cascais, tivemos de inventar à última hora uma terceira casa de banho.
Era preciso entrar no camarim em que a banda estava e fui lá. Levei um canalizador e fomos ver o que é que se devia fazer para dividir uma das casas de banho em duas. Ele estava lá, lembro-me que estava sentado a fumar. Pedi licença, entrei e apresentei-me, expliquei porque é que estava ali, disse que íamos fazer o melhor que conseguíssemos. Lá conseguimos desdobrar aquilo em tempo recorde e fazer uma terceira casa de banho. Eles ficaram agradecidos porque sabiam que aquilo não estava nos pedidos iniciais [contratualizados].
O Kurt Cobain parecia uma pessoa um bocado reservada. Fumava muito e não saiu do camarim nas horas anteriores ao concerto. O concerto realizou-se pouco tempo antes de ele se suicidar. Falei com ele mas jamais me passou pela cabeça que uma coisa daquelas [suicídio] estivesse iminente, acho que não passava pela cabeça de ninguém, eles estavam no auge da fama.
Não sei se isso acontece com os outros [organizadores de concertos], mas no meu caso passava sempre o tempo quase todo nos bastidores, a fazer contas com a produção da banda, porque geralmente estes negócios são acordados à percentagem, tem a ver com o número de bilhetes vendidos. Essa ação contabilística demorava imenso tempo e geralmente não havia tempo para ver os concertos. Lembro-me de ter visto só um bocadinho e de notar que as pessoas estavam a delirar, em apoteose, mas não consigo precisar mais do que isso.“
Kalú
Músico (Xutos & Pontapés)
“Os Nirvana eram uma banda que passávamos muito no Johnny Guittar, de que era proprietário juntamente com o Zé Pedro e o Alex [Cortez] dos Rádio Macau. Era um espaço com capacidade para perto de 200 pessoas e ficava sempre tudo louco a ouvir os Nirvana. Tenho ideia que até a passámos lá em estreia nacional ou perto disso, porque o Zé Pedro tinha arranjado o disco antes da maioria e ele e o Henrique [Amaro] tinham um programa de rádio e testavam ali alguns discos, alguns temas de bandas desconhecidas.
O Zé Pedro estava atento aos concertos e fomos os dois para Cascais, não me lembro se de comboio ou de carro, mas somos capazes de ter ido de comboio. O Zé Pedro tratou dos convites e fomos.
Mesmo em 1994 confesso que não era um grande fã do Kurt Cobain e dos Nirvana. Gostava do tipo, claro, gostava do Dave Grohl e gostava de algumas coisas deles, mas não era um grande fã. O Zé Pedro dizia-me sempre: isto é que é uma banda, o movimento grunge e tal, tu vais ver! Eu não percebia nada daquilo, mas aquele concerto mudou completamente a minha opinião.
Quando os Nirvana começaram a tocar foi extraordinário. Lembro-me do Kurt Cobain estar com um colete de malha assim sem mangas, parecia um menino. A sério. Só me perguntava: como é que este gajo com este aspeto tem este power todo em cima do palco? No concerto ele fez umas coisas mais sozinho a tocar guitarra e fiquei cilindrado, aí compreendi os Nirvana. Foi aí que a banda me bateu e foi por causa daquela noite que fui logo comprar os discos todos.
Lembro-me que vimos o concerto cá em baixo. Eu e o Zé não fomos para a mochada, ficámos ali a meio da sala, assim próximo de um bar onde houvesse cerveja. Um bocadinho atrás da mesa de mistura, que é normalmente o sítio melhor para ver o concerto. Não me lembro ao certo, mas de certeza que depois do concerto voltámos para Lisboa e devemos ter ido para o Bairro Alto ou algo do género. Para casa não fomos de certeza, porque saímos de lá com uma excitação enorme.
Quando vi o aspeto do Kurt Cobain em palco dava a ideia de fim, mas uma pessoa não pensa nisso. Tenho a certeza que foi o Zé Pedro que depois me deu a notícia da morte, precisamente por termos partilhado aquele momento juntos. Fiquei tristíssimo, tinha acabado de conhecer melhor a banda, tinha acabado de a compreender finalmente e de repente desaparecia. Percebi logo que eles iam acabar depois daquilo, tive o mesmo sentimento depois quando o Mark Sandman dos Morphine morreu. Os Morphine ainda tocaram na minha ‘casa’ no Porto, o Hard Club. Adorava aquela banda.
Quando ele morreu, percebi realmente o que tinha visto ali: uma pessoa que provavelmente teria uma depressão enorme, que já era visível que não estava bem. Ele em Cascais tinha estado mais reservado e tranquilo e palco, meio alheado, mas o que fez foi magnífico, foi extraordinário. Essa memória ficou.“
António Melão (Cameraman Metálico)
Fotógrafo
“Para mim nunca foi um frete estar no ‘pit’, em concertos, a fotografar bandas. Tive colegas para quem era um frete, para mim não. Estar com aquela miudagem nos concertos rock para mim era um privilégio. Escolhi ser fotógrafo de música por gostar disso.
Não conhecia muito bem os Nirvana. No início pareceu-me mais uma banda de grunge, não me pareceu logo muito bom. Era um rock muito cru e estava mais habituado às bandas de heavy metal, que era o género que ouvia mais. Passei a gostar muito depois do concerto, porque além de ter sido bom — e estava cheio, esgotou — os Nirvana tocaram um tema que me diz muito, o ‘The Man Who Sold the World’ do David Bowie.
Fiz muitos concertos de bandas daquele tempo e daquele movimento: Soundgarden, Alice In Chains, Pearl Jam… até vi os Mudhoney em Cacilhas, num concerto ilegal! Para o concerto dos Nirvana em Cascais não me lembro ao certo mas devo ter ido de comboio. Não levava muito o carro para Cascais porque era difícil de parquear. Depois do comboio para o Dramático demorava-se uns dez minutos a pé.
Falava-se que a banda estava mal, se calhar também por causa disso é que o concerto gostou. No entanto, naquela altura havia tão poucos concertos que qualquer grande concerto em Cascais esgotava, fosse dos Sepultura, Pantera, Slayer… esgotavam todos porque havia poucos. O bilhete custava na altura quatro contos. Se fosse comprado no dia, já custava quatro contos e meio. Na altura era muito, era o dobro do preço de um LP, que custava uns dois mil contos. Esse valor mais a viagem para Cascais…
Lembro-me que o público era muito novo, como os Nirvana eram a banda da moda naquela época o público era bastante mais novo do que nos concertos de heavy metal. Ainda assim, estava muita gente que gostava de heavy metal no concerto dos Nirvana, lembro-me disso — se calhar, precisamente porque não havia muitos concertos.
O Kurt Cobain parecia que não estava ali, não parecia estar com muito interesse em cima do palco. Mas tocou. Lembro-me que tinha um casaco de malha, pude fotografá-los durante três temas e apanhei-o sempre de lado. Depois disso, saí do ‘pit’ e lembro-me que vi o concerto ao pé da minha amiga Cristina Espírito Santo. Até nos rimos quando ele tocou a canção do Bowie.
Foi um concerto engraçado, as pessoas gostaram. Tenho ideia que até houve moche, o que não era assim tão habitual com estas bandas. Lembro-me que num dos concertos dos Pearl Jam em Cascais [dois anos depois, em 1996] o Eddie Vedder tentou saltar a partir das colunas e caiu mal. Só não me lembro se foi no primeiro ou no segundo concerto que fizeram ali.
Depois do concerto comecei a ter álbuns dos Nirvana e a ouvir as canções. Passei a gostar praticamente de todas, cada uma tinha a sua harmonia, não havia nenhuma de que não gostasse. Nunca pensei que o Kurt Cobain estivesse a ponto de se matar, naquela altura.
Isilda Sanches
Radialista
Na altura do concerto dos Nirvana em Cascais já era jornalista, trabalhava no Se7e [entretanto extinto]. Soube do concerto quando foi anunciado, quando a informação chegou à redação por vias institucionais. Na altura gostava, mas não era histérica do grunge. O que gostava mesmo era de Sonic Youth e Mudhoney. Por Nirvana tinha alguma simpatia mas não era completamente louca por eles. A reação à notícia da ida deles a Cascais foi serena, como jornalista já tinha alguma distância.
Confesso que na altura já pensei: temos que ir ver antes que ele morra. As notícias de consumo de drogas estavam associadas aos Nirvana desde sempre. Sabia-se já que o Kurt Cobain era bipolar e ele tinha dado entrevistas em que falava do consumo de drogas. Lembro-me de ver relatos de dois ou três episódios mais extremos na imprensa. Ele já tinha aquela marca de mártir e suicida, já se sentia naquela aquela aura de jovens génios da música que morrem cedo.
Havia um lado trágico que aumentava a expectativa da maioria das pessoas. Claro que ninguém imaginava por essa altura que daí a dois meses estaria morto, o que existia era a sensação de que qualquer dia isso poderia acontecer. Penso que ninguém teve logo a sensação de que via ali um dos últimos concertos dos Nirvana. A urgência que existia na comparência também se devia à ideia de que não se sabia quando voltariam, à suspeita de que poderiam durar muito tempo. Mas dois meses? Ninguém antecipava isso.
Fui ao concerto com convite. Era jornalista há pouco tempo e ainda não estava muito entrosada no meio, mas lembro-me que a comunidade jornalística estava lá em peso. Também nos anos 1990 não havia assim tantos concertos em Portugal, eram bastante espaçados, não havia a abundância que há hoje. Por causa disso, os concertos que existiam eram quase sempre especiais.
Vi o concerto numa área mais elevada, precisamente com pessoas ligadas ao jornal em que trabalhava, o Se7e. Não posso dizer que tenha achado o concerto incrível. O sistema de som era mau e o Kurt Cobain estava com um ar meio apático, não parecia estar propriamente muito empenhado. Já o Dave Grohl, pelo contrário, parecia estar cheio de energia e muito motivado. O Kurt chegou ali e fez o papel dele, mas pessoalmente não senti que estivesse muito ali. Pareceu-me estar um bocado em modo piloto automático. Dito isto, o concerto não ter sido incrível não quer dizer que a noite não tenha ficado para a história. Ficou, claro.
Soube depois que ele morreu, passados dois meses, através da rádio. Morava no Cacém na altura e estava no comboio, a ouvir rádio, porque já me tinha mudado para a XFM entretanto. Comecei a ouvir que o Kurt Cobain tinha morrido. Foi uma coisa muito estranha para mim: tinha-o visto há muito pouco tempo ao vivo, foi esquisito. Naquele tempo não havia redes sociais, acredito que se existisse Facebook a onda de consternação teria sido mais visível. Ainda assim, nos liceus e faculdades houve muita gente a mostrar-se verdadeiramente triste. Depois multiplicaram-se as homenagens, começou um processo de mitificação…. como acontece sempre.
Tozé Brito
Músico e antigo administrador da BMG
Quando cheguei à BMG [atual Sony Music Portugal], já tínhamos os direitos de distribuição dos Nirvana em Portugal, porque a editora deles nos EUA, a DGC, era representada cá pela BMG. Fui para lá em 1990 e não conhecia a banda. Teria talvez ouvido na rádio, eventualmente, mas não posso dizer que os conhecesse. Normalmente a primeira coisa que fazemos quando chegamos a uma editora é conhecer o catálogo nacional e internacional. Artistas nacionais a BMG quase não tinha, tivemos de construir um catálogo praticamente do zero. O nosso catálogo internacional já tinha os Nirvana e coisas tão diferentes dos Nirvana quanto o Eros Ramazzotti.
O meu grande contacto com a banda aconteceu depois de ter chegado à editora. Percebi depois que estávamos perante um fenómeno grande, que havia toda uma estética musical e existencial, chamemos-lhe assim, que chegou ao mainstream através dos Nirvana e especialmente do Kurt Cobain. Eram a face de um movimento que trouxe uma postura social e visual completamente nova.
Vivemos muito um mimetismo na música: por norma, qualquer banda que chegue a número um nos EUA e em Inglaterra torna-se importante em Portugal. não me lembro de nenhuma banda que tenha tido tanto sucesso nesses mercados sem ter depois impacto neste país. Isto acontece porque a nossa rádio e a nossa imprensa eram e são altamente influenciadas pelo que se passa nos EUA e em Inglaterra. Com os Nirvana não foi diferente: tornaram-se gigantes internacionalmente e em Portugal sentiu-se o contágio. Praticamente não foi preciso promover os Nirvana em Portugal, o Nevermind teve logo vendas muito significativas.
A expectativa para o concerto em Cascais era gigante. Era a primeira vez que a banda vinha a Portugal e os Nirvana naquela altura eram gigantes. O primeiro concerto de uma banda como estas em Portugal — traço um paralelismo com os U2, outra banda que foi minha noutra companhia — desperta sempre uma curiosidade enorme e movimenta muita gente. Quando é a quarta, a quinta ou a sexta vez já se banaliza um pouco, chama muita gente mas já não há o efeito de novidade.
Fui ao concerto e o que posso dizer é que há bandas que em disco são uma coisa e ao vivo desiludem, ficam abaixo das expectativas, mas os Nirvana não. Tinham um magnetismo enorme e o Kurt Cobain tinha um carisma único. O que se passava em palco era tão bom como o que estava gravado em disco, o que é bom sinal. Foi um belo concerto.
Quando o Kurt Cobain morreu, aconteceu aos Nirvana a mesma coisa que aconteceu aos The Police quando o Sting saiu: morreram. Em bandas que são quintetos e sextetos pode desaparecer uma pessoa e a banda continuar, mas quando são trios é mais difícil. Alguém imagina os Queen sem o Freddie Mercury, os The Police sem o Sting ou os Nirvana sem o Kurt Cobain? Foi uma pena, mas os Nirvana deixaram um legado fantástico — e fizeram uma carreira brilhante enquanto o Kurt Cobain os liderou.
Fotos: Cameraman Metálico