A constatação de determinadas circunstâncias motiva o arranque das pesquisas.
Primeiro, a evidência: as doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no mundo, representando cerca de um terço do total de óbitos. O aviso é da Organização Mundial da Saúde. Segundo, as dificuldades: o número reduzido de marcadores biológicos — componentes que podem detetar alterações celulares e moleculares — de avaliação do risco cardiovascular tem limitado a redução do impacto dessas doenças. Terceiro, a pertinência de uma análise detalhada. Quarto, o contributo para melhores decisões clínicas.
Nuno Correia Santos é bioquímico e coordena uma equipa multidisciplinar de investigadores — de áreas como bioquímica, medicina, engenharia química, biotecnologia e biologia — que se debruça sobre este problema no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), em Lisboa. Os resultados são promissores e ajudam no prognóstico clínico. Na decisão de operar ou não operar. No limite, salvar vidas.
Elevados níveis de fibrinogénio, uma proteína do sangue crucial no processo de coagulação, têm sido apontados como potenciais indicadores de risco de doença cardiovascular — como insuficiência cardíaca, enfarte de miocárdio, hipertensão, arritmia, miocardite. Numa investigação, há sempre um ponto de partida e vários dados sobre a mesa. Nuno C. Santos debruça-se sobre essa matéria e utiliza uma técnica chamada microscopia de força atómica, semelhante ao que acontece quando se usa uma cana de pesca. É a melhor analogia para perceber essa técnica de nanotecnologia.
Usando uma única molécula de fibrinogénio para tocar na superfície do glóbulo vermelho, “o equipamento vai funcionar como a cana de pesca e esse fibrinogénio como o isco no anzol”, explica o investigador. “No fundo, vamos tocar na célula até que o peixe morda o anzol, que o peixe ligue ao fibrinogénio. E não é um ponto qualquer da célula, é esse recetor que se liga ao fibrinogénio que está na superfície de célula.”
Cana lançada, vê-se o que acontece. “Depois dessa ligação, o próprio aparelho permite aplicar uma força para levantar, como se fosse tirar a cana de pesca da água, e medir a força necessária para fazer este levantamento.” E é aqui que está a questão. “É a intensidade dessa força necessária para sacar o peixe que se relaciona com o risco de um doente cardiovascular ter complicações no futuro próximo, durante o ano seguinte.”
Quanto mais essa força, pior. Quanto maior a resistência, maior o risco. “Quanto maior for essa adesão, essa ligação do fibrinogénio, maior é o risco cardiovascular.” Tem tudo a ver com a elasticidade também. “O que conseguimos ver é que os glóbulos vermelhos têm uma redução da capacidade de se deformar exatamente na situação em que precisam mais de se deformar, que é quando atravessam os os vasos sanguíneos mais estreitos, de menor calibre.”
Na prática, isso contribui para o maior risco cardiovascular e maior risco de complicações para estes doentes. O investigador, licenciado em Bioquímica pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fez o projeto final de curso no Instituto Superior Técnico, onde iniciou o doutoramento que depois concluiu na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, EUA, onde aprendeu a técnica de microscopia de força atómica. Voltou para Portugal, trabalhou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e, no iMM, criou o seu grupo de investigação, atualmente com 16 elementos que, além do trabalho em doenças cardiovasculares, estão também envolvidos em pesquisa em doenças infeciosas e respetivo tratamento.
Outros doentes, a mesma técnica
Neste momento, três investigadores do iMM, sob coordenação de Nuno C. Santos, utilizam essa técnica para avaliar a evolução da doença da artéria carótida, condição em que estes grandes vasos sanguíneos ficam estreitos devido à formação de placas de gordura e cálcio no interior. A redução do fluxo sanguíneo nas carótidas é um grande fator de risco para Acidentes Vasculares Cerebrais. “Estes doentes têm acumulação de depósitos de gordura na artéria carótida, com formação de placas de aterosclerose. Estas placas podem ser removidas com recurso a uma cirurgia preventiva.” A operação, endarterectomia, remove essas placas de gordura e restaura o fluxo normal de sangue para o cérebro. “No entanto, há uma necessidade clínica de melhores critérios de decisão na escolha de que doentes devem ser submetidos a esta cirurgia.”
Com a microscopia de força atómica, a tal cana de pesca, mede-se a força de ligação do fibrinogénio ao glóbulo vermelho. “Doentes com artéria carótida apresentam diminuição da elasticidade dos glóbulos vermelhos e aumento da força de ligação fibrinogénio-glóbulo vermelho”. O estudo, que ainda está a decorrer em parceria com o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria, é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e acompanhou 44 doentes e 42 voluntários saudáveis ao longo de três anos pós-cirurgia de remoção da placa de aterosclerose. Foram estudados doentes após sofrerem um AVC e doentes sem sintomas.
E como isso é feito? “Avaliámos depois da cirurgia, a cada seis meses, até completar três anos (algo que ainda não completámos para todos os doentes), um conjunto diversificado de parâmetros, incluindo os obtidos por medidas de microscopia de força atómica, mas também medidas de viscosidade sanguínea, agregação eritrocitária, deformabilidade eritrocitária, concentração plasmática de fibrinogénio total e de fibrinogénio gama.”
A investigação está numa fase avançada e o trabalho experimental precisará de mais seis a nove meses para estar terminado. “Esperamos conseguir detetar novas formas de identificar quais dos doentes que estão em maior risco e quais deverão ser preferencialmente selecionados para a cirurgia profilática (endarterectomia carotídea).”
Não se trata de uma forma de diagnóstico. É outra coisa. “É, no fundo, uma forma de conseguir um prognóstico clínico, uma forma de identificar quais os doentes que estão em maior risco de terem complicações, potencialmente mortais, ou envolver o mínimo de hospitalizações durante os meses seguintes. Se o médico souber quais são esses doentes, terá a possibilidade de procurar uma abordagem mais próxima que permita evitar esse desfecho.”
A investigação do iMM abre caminho para os cardiologistas e cirurgiões vasculares decidirem quais os doentes que precisam ou não de ser operados. Ou seja, quais os que estão em elevado risco e quais os que devem ser selecionados para cirurgia, a endarterectomia carotídea. “Ao saberem quais os doentes que estão numa situação de maior risco, conseguem ver quais os que precisam mais rapidamente, ou com maior urgência, de uma intervenção. Não somos nós que dizemos ao médico o que é que tem de fazer. O que nós dizemos é tem aqui uma situação de risco em que é preciso atuar de alguma forma. A decisão estará, obviamente, do lado do clínico.”
Há mais pesquisas realizadas nesta área pela equipa de Nuno C. Santos. Uma investigação feita com a técnica da cana de pesca, que terminou em 2016, mostrou que a força necessária para romper a ligação entre fibrinogénio e glóbulo vermelho foi consideravelmente maior em doentes com insuficiência cardíaca crónica do que em pessoas saudáveis – foram estudados 40 doentes e 40 dadores saudáveis. Além disso, os glóbulos vermelhos destes doentes exibiram alterações significativas na sua elasticidade e comportamento circulatório.
“Os doentes em que foi inicialmente necessária uma maior força para libertar o ‘isco’ (fibrinogénio) do glóbulo vermelho mostraram uma probabilidade significativamente maior de serem hospitalizados devido a complicações cardiovasculares nos 12 meses seguintes.” E não só. “Também em doentes após sofrerem um AVC, os resultados indicam alterações na elasticidade dos glóbulos vermelhos e na ligação do fibrinogénio.”
O iMM expandiu a investigação para outras patologias. Em doentes de hipertensão arterial, para além do estudo de “cana de pesca” e “isco” (interação fibrinogénio-glóbulo vermelho), estudou-se a adesão entre dois glóbulos vermelhos. “Estas células aderem entre si com dois ímanes, medindo-se a força necessária para os separar. Estes resultados mostraram que os glóbulos vermelhos dos doentes com hipertensão arterial aderem mais fortemente entre si do que para os dadores saudáveis.” Por outras palavras, essa maior adesão entre eritrócitos (glóbulos vermelhos) dificulta a sua movimentação na corrente sanguínea, aumentando, portanto, o risco cardiovascular.
Há poucas semanas, Nuno C. Santos, esteve num congresso na Bélgica a apresentar alguns dados das pesquisas feitas pelo seu grupo de trabalho. Tem-no feito várias vezes até para mostrar a aplicabilidade da investigação. “Apresentámos e publicámos os resultados em revistas científicas e em congressos de referência, em congressos nacionais, em pequenos encontros. Mas, obviamente, não tenho a pretensão de que toda a gente conheça os nossos resultados.” Entretanto, as investigações prosseguem no iMM. E, se tudo correr bem, dentro de uns meses haverá mais resultados.
Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.
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