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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Carpool com o comandante dos Bombeiros de Figueiró dos Vinhos. "Víamos bolas de fogo cair e, de repente, estava tudo a arder"

O comandante dos bombeiros Paulo Renato passou 53 horas no fogo. Atravessou túneis de chamas e varreu o concelho pedindo às pessoas que lutassem. À boleia, cruzámos as mesmas localidades de há um ano.

Chegou ao quartel ao início da tarde de sábado, 17 de junho, para se fardar. Ia responder a um pedido de apoio para combater um incêndio em Pedrógão Grande mas não chegou sequer a arrancar na direção do concelho vizinho. Não teve tempo. Antes disso, o comandante dos Bombeiros de Figueiró foi interrompido por outro alerta, dessa vez em Figueiró dos Vinhos. As chamas já estavam no seu concelho.

“Isto aqui ardeu tudo” é, de longe, a expressão que mais repete, enquanto volta a percorrer, com o Observador, as estradas, localidades e recantos do concelho que viu arder de uma ponta à outra naqueles dias de junho. Faz agora um ano. O comandante Paulo Renato acabaria por passar as 53 horas seguintes no terreno, sem parar, percorrendo as várias freguesias, atravessando túneis de chamas e percebendo cada vez com mais clareza que todos os braços que tinha à sua disposição não chegavam para o que tinha pela frente. As chamas estavam em todo o lado. Ao início da tarde, nada fazia prever o que aí vinha.

“Um caixote do lixo de 800 litros pelo ar. Alguma coisa estava mal”

A primeira chamada que recebeu foi a do incêndio em Pedrógão Grande.
Recebi uma chamada do comando distrital. Estava com um colega meu, um oficial de Castanheira de Pera que, entretanto, até foi para o Posto de Comando. Estávamos em casa dele e recebo uma chamada do comando distrital para me deslocar ao incêndio de Pedrógão Grande, por volta das 14h35, para dar apoio [na gestão] dos meios aéreos. Vim para o quartel para fardar-me e arrancar para esse teatro de operações.

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Qual é o cenário que lhe pintam nesse primeiro contacto?
Entre os vários concelhos, quando há um incêndio, ligamos uns aos outros e apoiamo-nos. Eu ligo para o comandante de Pedrógão Grande e digo que vou para lá dar um apoio. Estou-me a fardar, no quartel, quando cai um aviso de um incêndio nos Moinhos Cimeiros, no meu concelho.

"Um caixote do lixo de 800 litros, chapas pelo ar, muito vento, alguma coisa estava mal. Para não haver danos nos carros, mandei-os parar e avancei rapidamente com o meu adjunto. O fumo estava muito denso, uma cortina"

Ainda nem tinha conseguido responder à primeira chamada.
Estava a fardar-me para ir para Pedrógão Grande.

Parecia ser apenas mais um incêndio. Naqueles primeiros minutos, o comandante de Figueiró dos Vinhos limitava-se a repetir os mesmos procedimentos de sempre. Houve uma chamada, prepararam-se os meios, foi dada a ordem para as equipas arrancarem.

As primeiras chamas que deflagraram no concelho de Figueiró foram combatidas sem grande dificuldade. Com o apoio de um helicóptero, que atuou logo nos primeiros minutos, o fogo foi rapidamente controlado. Com a casa arrumada, Paulo Renato podia por-se a caminho de Pedrógão Grande para dar apoio a um incêndio que já tinha começado há várias horas e que continuava a dar luta aos bombeiros do concelho vizinho.

Seis horas depois do primeiro pedido de ajuda, estava a dirigir-se para Pedrógão Grande. Mas já não conseguiu chegar ao destino.
Quando chego aqui, por volta das 19h30/19h45, vejo um caixote do lixo a passar pelo ar em direção a uns pinheiros lá atrás.

O caixote voou uns 60/70metros?
Talvez 100 metros. Começo a ver umas chapas que ainda passaram aqui. Um telhado foi arrancado. Mando parar os carros. Não havia incêndio nenhum, não havia fogo nenhum, mas mandei parar os carros e avancei.

Não havendo chamas nesta zona, por que razão mandou parar os carros?
Vi que havia qualquer coisa. Um caixote do lixo de 800 litros, chapas pelo ar, muito vento, alguma coisa estava mal. Para não haver danos nos carros, mandei-os parar e avancei rapidamente com o meu adjunto. O fumo estava muito denso, uma cortina. Nos Moinhos Cimeiros já se via a coluna de fumo de Pedrógão Grande. São oito quilómetros em linha reta [entre os dois pontos], no mapa.

Já havia chamas, nesse momento?
Não, o fumo era muito denso, estava muito baixo e não se via as chamas. Vou por aqui [em direção a Pedrógão], junto com um carro de logística, e quase não se vê nada. Chegamos a um cruzamento e já havia um carro a arder. Não havia lume mas estava uma carrinha a arder, de uma senhora inglesa, com dois cães. O carro de apoio apanha-a e leva-a para Figueiró.

Um carro em chamas sem qualquer incêndio à volta. Foi o primeiro sinal de que as horas seguintes seriam tudo menos uma tarde normal de junho em vários concelhos da região centro. Com o alerta de Pedrógão Grande a ecoar na mente, Paulo Renato continuava decido a chegar perto dos bombeiros que combatiam as chamas como podiam. Estava a chegar a hora mais fatídica daquele dia.

[“Andei 53 horas seguidas no combate ao fogo”. Veja no vídeo o Carpool com o Comandante dos Bombeiros, um ano depois]

“Nunca tivemos noção do que estava em causa”

Depois de se cruzar com o carro em chamas, ainda avançou algumas centenas de metros.
Neste ponto, deparo-me com uma grande bola de fogo. “Epá, o que se passa aqui?” As chamas estavam a começar a entrar aqui. Já não via nada, só fogo. Virámos aqui e voltámos para trás. Quando cheguei ao parque industrial onde tinha deixado os meus carros, os homens já estavam a trabalhar. Eu demorei dois minutos. Já estavam a combater junto aos pneus. Estava lá o meu chefe adjunto. Estava tudo a arder ao mesmo tempo.

Começam também a ser identificadas as primeiras vítimas do incêndio. O INEM já estava no terreno, somam-se ambulâncias que vão com corpos queimados pelo fogo e que voltam para apanhar mais feridos das chamas que vão consumindo Pedrógão Grande.

Entre as vítimas estava Carlos. Ele foi o ferido mais grave da tragédia de junho. Teve 80% do corpo queimado e teve de ser transportado para Espanha porque em Portugal não havia meios para fazer um tão extenso transplante de pele. Deviam ter seguido de helicóptero, mas o aparelho nunca chegou a aterrar ali. Seguiram por estrada, pelas poucas estradas onde ainda se podia passar para escapar ao inferno.

Mesmo ali ao lado fica a estrada mais negra.

Já estamos na chamada “Estrada da Morte”.
A estrada da morte é um acidente. Quando o fumo vem à terra, com a pressão atmosférica há uma explosão de fumos.

Passou por esta zona às 4 horas da manhã. Ainda conseguiu passar?
Já não consegui passar. Estava aqui a autoridade, faço marcha-atrás e já não consegui passar.

Quando recebeu a primeira chamada, por volta das duas da tarde, alguma coisa lhe permitia perceber o que aí vinha?
Não, não há perceção nenhuma porque é um incêndio normal, como eu tive nos Moinhos.

Aquele que resolveu rapidamente?
Sim, tive a sorte de lá ter os meios e de ter [a corporação de] Penela logo ali perto, pré-posicionada naquela zona da serra. Se calhar, tive a sorte de ter lá muitos meios, porque só eles traziam dez carros. Eu trazia mais três ou quatro meus.

Os marcos da tragédia sucedem-se e é difícil acompanhar todas as histórias que cada metro daquele território agora assinala. Na mesma estrada que liga Figueiró a Pedrógão, uma mancha na estrada mais negra que o alcatrão chama a atenção. É o local onde morreu um bombeiro de Castanheira de Pera, depois de ter embatido num carro já acidentado cujo condutor perdera o controlo, uma consequência do fumo que impedia ver alguma coisa para lá de um par de metros.

“Eu tinha o incêndio nas quatro freguesias”

Era uma equipa que tinha estado a apoiar os seus bombeiros em Figueiró?
O segundo comandante deles ligou-me e pediu-me que mandasse a equipa para cima. Eles iam para o Vermelho, uma povoação muito próxima de onde o incêndio começa.

Há quilómetros e quilómetros de terra queimada. Isto dá-nos uma noção da dimensão do incêndio naquelas horas.
Cerca das 20h30, eu recebo uma comunicação da central em que me dão conta de que há 10 a 12 povoações a pedirem ajuda ao mesmo tempo.

"Quando vou [em direção aos outros carros] já não saí do meu concelho. Estou no limite do concelho, onde tudo começou a arder ao mesmo tempo. Foi nesse momento que disse que o incêndio estava enorme"

Como é que se dava resposta a todos esses pedidos?
Eu estava com os meus ajudante de comando, vou ouvindo as comunicações, sei que o incêndio está a evoluir, há pedido de meios, equipas, grupos. Eles vêm consoante a disponibilidade.

Quando começa a ter noção do que estava em causa? Se é que em algum momento tem essa noção?
Nunca tivemos porque o combate está a ser feito, o fogo está a ser flanqueado, está a ser pedido um apoio de meios e eu só me dou conta de que o incêndio está tão grande quando venho para apoiar o grande incêndio de Pedrógão Grande. Quando vou [em direção ao local] já não saí do meu concelho. Estou no limite do concelho, onde tudo começou a arder ao mesmo tempo. Foi nesse momento que disse que o incêndio estava enorme. Estava dos Escalos para cá, que em linha reta são quatro ou cinco quilómetros. Com os altos e baixos perfaz uns 12 ou mais quilómetros em estrada.

É nesse momento que Paulo Renato liga ao seu segundo comandante. Havia chamas “praticamente de uma ponta à outra do concelho”, numa área que se estendia por cerca de 40 quilómetros.

Isso acontece ainda na noite de sábado, ou já de madrugada?
Isto tudo [acontece] às 20h, 21h. As oito da noite foi o ponto-chave. A nuvem de fumo baixou, e é quando começa a arder tudo ao mesmo tempo e o adjunto de comando começa a dizer que tem feridos no Mosteiro, na Graça. Há um segundo carro que vai para a Graça, por volta das 19 horas, e que já não consegue passar. A dimensão já era enorme.

Há um momento durante aqueles dias em que o comandante diz que o incêndio estava por todo o concelho. Isto não era um exagero?
Não é exagero, eu tinha o incêndio nas quatro freguesias.

E, do ponto de vista do comando, o que é que lhe é possível fazer? Baixar os braços, deixar arder?
Não é deixar arder. Quando venho com o segundo comandante, cerca das 21h, defini estrategicamente que [o objetivo] era fazer defesa perimétrica, nada mais podíamos fazer. Salvar pessoas e bens é o nosso lema, esquecendo de momento a floresta.

Mas há pessoas a viver nesta zona.
Aqui houve alguns danos, mas foi da ventania. Também houve um casal que faleceu. Vinham a sair do incêndio, tiveram um despiste.

Estavam a fugir das chamas?
Estavam e tiveram um acidente. Seguiram a pé, porque o carro ficou danificado, e acabaram por falecer aqui. Nem foi queimadas, foi por inalação de fumos. Tiveram o acidente, fugiram para a aldeia e, como vê, a aldeia nem está danificada.

Conhecia essas pessoas?
Não, não conhecia. Eram de Lisboa, estavam aqui de fim de semana mas não eram conhecidas.

O casal não foi caso único. No concelho de Figueiró, o comandante dos bombeiros continua sem baixas. Mas, através do canal de comunicações que o ligava ao comando distrital, Paulo Renato vai ouvindo cair os pedidos de socorro de outras pessoas rodeadas por chamas nos concelhos vizinhos. Também percebe que os feridos estão a multiplicar-se ao minuto em Pedrógão, Castanheira de Pera e noutros pontos. E que já há mortes.

“Só com a ajuda das populações conseguimos fazer alguma coisa”

Por volta da uma da manhã, os comandantes réunem-se. Onde aconteceu essa reunião?
Reunimos no posto de comando, que estava na zona industrial de Pedrógão Grande. Damos o ponto de situação e, nessa altura, já toda esta área estava envolvida em chamas.

"Não posso combater a floresta mas tenho de, de alguma forma, tentar diminuir a parte que envolve as populações. E, isto, com a dimensão que tinha, só com a ajuda das populações conseguimos fazer alguma coisa"

Andava por aqui à procura de pessoas que estivessem a fazer o combate?
Não tendo mais viaturas, porque só tenho quatro carros de combate pesados, um ligeiro de combate e um auto-tanque, e tendo esses meios em Pedrógão (dois), em Pombal (outros dois) e os meus ligeiros também empregues, [foquei-me no] parque industrial. Pela dimensão do incêndio, pela dimensão das empresas, pela prioridade que tinha um depósito de gás, um depósito de pneus, outro de alumínios, um tanque de gás com alguma capacidade…

Havia ali demasiados riscos.
Eu tinha de fazer a proteção e combate daquela povoação de Castanheira de Figueiró, Carameleiro, parque industrial, toda aquela área. Encontro-me com o meu segundo comandante cara a cara, no parque industrial, e digo-lhe para ficar com Figueiró Sul, que eu ficava com Figueiró Norte. A nossa estratégia era ir lugar a lugar, sensibilizar as pessoas para não saírem, para combaterem elas próprias o incêndio.

Percebeu que não tinha meios para ir a todo o lado?
Não tinha, não tinha. A progressão do incêndio era muito grande. Recebi uma chamada da central a dizer que tínhamos incêndio em Vilas de Pedro, Fontão, Serrada, Póvoa, Moinhos. Tinha acabado de sair de lá e já lá estava um incêndio. Coelheiras, Castanheira de Figueiró, Carapinhal.

O fogo estava por todo o lado.
Isto já abarcava as três freguesias, Figueiró, Campelo e Agulha.

E quantos elementos tinha no terreno?
[Paulo Renato vai fazendo as contas] Combatentes, tinha duas viaturas de Pombal, portanto, dez elementos. Mais dois [meios de combate] meus, 20 [bombeiros], 22, 25. Cerca de 30 elementos a rondar aqui a zona.

30 bombeiros para o concelho todo?
Entre as 20 e as 21 horas é quando tenho aqui tudo.

Nesse momento, pensa que não pode fazer nada para combater aquele fogo?
Sim. Não posso combater a floresta mas tenho, de alguma forma, de tentar diminuir a parte que envolve as populações. E, isto, com a dimensão que tinha, só com a ajuda das populações conseguimos fazer alguma coisa. Arderam algumas coisas mas, felizmente, não morreram pessoas no meu incêndio. Isto é fundamental. Há alguns acidentes. Uma senhora é atropelada, em fuga, e vai para o hospital.

"As pessoas diziam-me: "Vamos morrer". Eu respondia: "Não vão morrer nada. Vão tirar a mangueira e vão fazer este combate". O incêndio passou a toda aldeia, andou a toda a volta mas foram as pessoas que fizeram o combate"

Neste momento da conversa, o comandante dos Bombeiros de Figueiró leva o Observador até um ponto elevado do terreno. Boa parte do concelho é visível ao longo dos vales. “Aquela povoação ali atrás, Moinhos Cimeiros”, diz Paulo Renato, enquanto aponta para uma das localidades, “lá é que combati o incêndio”, recorda. “Se reparar, há uma zona verde mais acima, foi onde fizemos o primeiro combate”, na primeiras horas daquele sábado.

Mais tarde, passaria pelo mesmo local onde o jipe está agora parado. “Quando chego aqui, tenho o incêndio a arder todo deste lado, com projeções para a aldeia da Coelheira, e já tenho uma projeção entre Moinhos Cimeiros e Moinhos Fundeiros e aqui atrás, já do lado de Campelo, outra projeção”. As chamas também já estavam em Penela. O inferno tinha tomado conta do concelho. Foi aí que decidiu passar pelas aldeias, uma a uma, para sensibilizar as populações. Deviam ficar, combater.

“As pessoas vêem chegar os bombeiros, desviam-se e trazem as máquinas fotográficas”

Como estavam as pessoas com que se cruzou?
As pessoas perguntavam-se: “O que se está a passar? Os bombeiros vêm?” Quando eu chego, digo-lhes: “Nós não temos viaturas, o incêndio está por todo o lado. Temos de ter aqui pessoas. Vocês têm de lutar e fazer vocês próprios o combate. Não gastar muita água para quando o incêndio se aproximar fazer o combate. [Dei indicações para] regar em cima das casas, os telhados das casas mais habitadas”. Eu parei junto a esta casa. A senhora até é da minha família. Eu digo-lhe para terem calma.

As chamas estavam em cima da casa.
As pessoas diziam-me: “Vamos morrer”. Eu respondia: “Não vão morrer nada. Vão tirar a mangueira e vão fazer este combate”. O incêndio passou a toda aldeia, andou a toda a volta mas foram as pessoas que fizeram o combate. Porque é nossa responsabilidade sensibilizar as pessoas. Aqui não ardeu nada, nenhuma habitação ficou queimada.

Naqueles dias deu uma entrevista em que pedia desculpa à população mas dizia que não havia, de facto, forma de chegar a todo o lado. Isso traz-lhe alguma angústia naquele momento?
Obviamente que sim, porque as pessoas estão à espera dos bombeiros e estão muito habituadas — por vezes, é mais esse o conceito — a que os bombeiros cheguem e resolvam.

Também não estão preparadas para fazer o combate.
Exatamente. É o nosso problema. Porque, hoje em dia, se as pessoas virem o incêndio e chegarem os bombeiros, desviam-se para o lado e trazem as máquinas fotográficas, vêm de calções, vêm de t-shirt. Às vezes, eu sou um pouco rude. E, por vezes, até um pouco arrogante na forma como falo porque as pessoas não querem colaborar, não lhes apetece colaborar. Pelo menos a puxar mangueira! Há um carro que mete 300 metros de mangueira ou 400 metros, e são três elementos a puxar mangueira. O chefe anda a fazer o reconhecimento e vai dando algum apoio a puxar mangueira; o motorista tem de estar a meter água e a meter mangueiras e há três elementos que fazem o trabalho todo no espaço de 300 metros. É muita coisa.

Já disse várias vezes que houve vários momentos em que teve de cruzar as chamas com o carro. Como é essa experiência?
Nós conhecemos um pouco o terreno e temos facilidade em percorrer algumas estradas, porque fazemos reconhecimento durante o inverno. A temperatura está elevada. Era este o carro que eu trazia, o meu adjunto vinha comigo. Isto não tem qualquer proteção, é um carro normal, mas há a sorte, alguém que está por trás de nós, temos essa confiança.

Um anjo da guarda?
Sim, podemos chamar o que entendermos.

Teve muitos à sua volta?
Houve muitos, naquele dia.

Paulo Renato, os seus combatentes e os dos concelhos à volta de Figueiró dos Vinhos viveram, no terreno, aquilo que a maior parte do país acompanhou à distância, em segurança.

O incêndio só foi considerado extinto uma semana depois de as primeiras chamas se terem acendido, mas os primeiros dias foram os mais dramáticos, quando se exigiu mais daqueles de quem se espera ação. Homens e mulheres que, por vezes, também têm a família em risco.

Quantas horas seguidas andou no terreno?
53.

Portanto, de sábado a segunda-feira, sem parar.
No domingo à noite, mandei o meu segundo comandante descansar para não perdermos o controlo sobre a área. Foram descansar, ficaram os oficiais.

A população ainda deu uma ajuda importante no combate?
Sim, eles próprios levam-se a fazer algum esforço.

O comandante vive em Figueiró?
No centro de Figueiró.

A determinada altura, deve ter pensado que podia haver familiares seus em perigo.
Sim. A casa dos meus pais. Passei lá mais tarde. Já tinha o conhecimento do incêndio de 2005 e falei com o meu irmão para ele fazer o tipo de combate defensivo que acabou por fazer. E não ardeu.

E consegue separar as águas?
Temos de separar. Nós estamos a fazer um trabalho, estamos num combate e sabemos que os familiares também se conseguem defender de alguma forma, pelo ensinamento que lhes passamos, pela troca de ideias.

"Não, nós não pensamos nisso. Pensamos que conhecemos o terreno e que conseguimos sair. Não pensamos que ficamos porque estamos a defender alguém que precisa de nós e temos de estar lá, obrigatoriamente"

A meio da noite, o comandante de Figueiró continua às voltas pelo concelho. Um grupo de carros de bombeiros que vem de Évora para reforçar o combate sai do IC8 e já não consegue chegar ao destino. Em segundos, parados num cruzamento, estão rodeados de chamas.

Paulo Renato cruza-se com o grupo nesse momento. Há uma enorme serração do concelho em perigo e é esse ponto que o comandante tem em mente, é lá que quer centrar todos os esforços e aproveita aquele reforço de meios para salvar as pilhas de madeira.

É colocado um carro de combate junto à serração, mas não chega. “É insuficiente” face à dimensão das chamas, recorda. O comandante de Évora dá nova ordem para que seja colocado mais um carro na proteção às toneladas de madeira, mas já nem consegue chegar perto do local. O cenário mudava radicalmente e em poucos segundos. As chamas ainda atingiram as pilhas, mas a maior parte salvou-se.

“O medo nunca funcionou comigo”

Houve algum momento em que tenha pensado que já não conseguia sair dali?
Não, nós não pensamos nisso. Pensamos que conhecemos o terreno e que conseguimos sair. Não pensamos que ficamos porque estamos a defender alguém que precisa de nós e temos de estar lá, obrigatoriamente.

Não existe medo?
O medo nunca funcionou comigo. Receio, sim. E, por vezes, apanhamos certos apertos.

Apanhou vários, nesses dias?
Claro, apanhei vários. E é sorte. Todos nós trabalhamos a sorte. Se temos a infelicidade de que nos aconteça o que aconteceu com a viatura de Castanheira de Pera… Há sempre um fator sorte. Eu vou tendo alguma.

É essa a sua explicação para não ter acontecido nada de mais grave por aqui?
É sorte, nada mais que sorte. Não é o saber, aquilo de podemos entender como o conhecimento do território, das estradas, se a curva é para esquerda ou para a direita, ter a noção de onde estamos. É a sorte, nada mais.

E os seus bombeiros? Não houve feridos?
O único foi um moço que estava com o carro de apoio e que, ao sair da cabine para abastecer os carros, escorregou, bateu mal com a mão e fraturou o braço. Nem entrou em perigo.

Aquilo que lhe perguntava há pouco também se aplica aos seus bombeiros. Eles têm família no terreno.
Sim, sim. Há as namoradas, os sogros, toda essa gente. Quando temos um incêndio, as pessoas [os elementos da corporação] começam a vir [para o quartel, para ajudar no combate]. Eu tenho 74 elementos no corpo ativo, sem contar com os elementos de comando que, com a calamidade, começam a vir ao encontro do corpo de bombeiros para dar o seu apoio. Claro que não temos viaturas para toda a gente. Eles telefonam e perguntam: “Comandante, posso ir fardado para casa dos meus pais?” E eu digo: “É isso mesmo, vais lá e sensibilizas”.

São um elemento de referência.
Exato. E sabem e podem explicar todo o processo de uma defesa perimétrica à sua zona. Isso foi fundamental. Muitos bombeiros meus foram para casa dos familiares e, felizmente, não tiveram problemas.

Esse apoio foi importante para que a situação não se tivesse tornado ainda mais dramática?
Importantíssimo. Tivemos nove casas de primeira habitação em que não ardeu ninguém e [em que as chamas] não se alastraram. Agora, é claro que não se fez a prevenção, a limpeza à volta das habitações. Essa é que era a prioridade.

"Se tivermos um acidente com um encarcerado e atravessado com ferros, temos de ter sangue frio e, se for necessário, pegar no coração e meter no sítio dele. Para mim, é muito mais grave isso que um incêndio"

Alguma coisa mudou desde o ano passado. A mentalidade começou a mudar?
Já se vê algumas limpezas. Agora, continuo a dizer que, enquanto os combatentes estiverem preocupados em defender as populações, em defender as aldeias, não se consegue defender a floresta. A prevenção é o primeiro pilar, mandar limpar, obrigar, fazer cumprir. Se estiver tudo limpo, os tais 100 metros à volta das habitações, os combatentes vão à floresta e conseguem, com maior força, empregar os meios ali e não nas habitações. Esta mentalidade é que temos de mudar. Já começou a entrar, mas há que não deixar acabar isto.

Falou-me nas 53 horas que esteve no terreno. Há algum momento que lhe tenha ficado mais presente, passado um ano?
Tudo vai da nossa mente. O que se lamenta são as pessoas que morreram. Porque, se não morre ninguém, é um incêndio normal de 2005, um incêndio normal de 2003, um incêndio normal de 2006. Em 2005, a área [ardida] foi idêntica ou maior. Ok, ardeu por várias fases — uma parte numa semana, outra parte noutra semana. Não foi tão violento. Porque se não morre ninguém, se não há vítimas, era um incêndio normal. Claro que não foi considerado normal pelas condições meteorológicas. As chamas andavam à velocidade do vento.

Já tinha visto isso acontecer?
Não, nunca tinha visto nada assim. Víamos bolas de fogo cair e, de repente, estava tudo a arder. “Como é que é possível, se ainda agora passei e não estava nada a arder?” Tenho um espaço de dois ou três quilómetros em que nada arde e depois já arde. Mas porquê? Com uma dimensão brusca, com uma violência que nunca se viu. Tivemos aqui ventos a 110km/hora. As chamas foram a essa velocidade.

E os seus combatentes? Depois dessa experiência, como é que se volta ao terreno, como se volta a enfrentar um incêndio?
Estamos preparados. Preparamos as nossas mentes para isto, porque, bombeiro, não é qualquer pessoa que o é. Tem de se ter gosto, tem de se saber. Tem que se trabalhar a mente. Falamos em fogos florestais, que são 10% do nosso trabalho. Mas, se tivermos um acidente com um encarcerado e atravessado com ferros, temos de ter sangue frio e, se for necessário, pegar no coração e meter no sítio dele. Para mim, é muito mais grave isso que um incêndio.

Tem algum receio, neste momento? O que o preocupa relativamente à próxima época de incêndios?
A preocupação é sempre a de tentar defender as pessoas e bens.

Acha que o que aconteceu no ano passado pode repetir-se?
Não com tanta frequência. Mas se o clima e a meteorologia se mantiverem, claro que acontecerá.

Não estamos livres disso?
Não, claro que não. E se não se capacita as pessoas e se não as sensibiliza para a limpeza dos seus terrenos, acredito que dentro de três, quatro anos teremos a mesma situação.

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